13. Olhos por olho
Vagner acordou com a água gelada jogada em seu rosto. Piscou várias vezes para tentar enxergar onde estava, enquanto constatava que as mãos e os pés estavam atados à cadeira em que estava sentado.
— Vamos começar — Leônidas rosnou sentado em um tamborete diante dele. Na mão tinha uma navalha e no rosto um sorriso infausto.
Vagner olhou ao redor em desespero. Estava em uma sala mal iluminada, do que parecia ser um depósito.
— Não fui eu quem matou seu filho! Não fui eu!
— Claro que não foi você.
Leônidas deu a volta ao redor da cadeira e agachou-se, segurando o dedo mínimo do segurança.
— Não, não, por favor, não! — deu um grito animalesco quando a lâmina talhou seu dedo, partindo deu osso dolorosamente. — Seu animal! Já disse que não fui eu! Já disse que não fui eu!
Leônidas voltou a sentar-se em sua frente, segurando o dedo decepado, expressão calma no rosto.
— Quanta dor você acha que meu filho sentiu antes de finalmente morrer?
— Não fui eu quem matou! Não fui eu!
— O que deve ter se passado pela cabeça dele enquanto era torturado? Deve chegar um momento em que você começa a enlouquecer, concorda?
— Por favor, me ouça! Eu só deixei os olhos em sua geladeira, como me mandaram. Não tenho nada a ver com a morte de seu filho!
— Provavelmente não.
— Eu digo quem foi se você me deixar ir!
— Você vai dizer, de uma forma ou de outra.
— Por favor, ouça! Ouça o que tenho a falar!
— Dedo, orelha ou olho?
— O quê?
— Dedo, orelha ou olho?
— Seu maníaco desgraçado! Vai se foder!
— Olho, então.
Leônidas levantou-se.
— Dedo! Dedo!
Leônidas sorriu, deu a volta e arrancou mais um dedo, o médio da mesma mão, enquanto Vagner berrava. Voltou a sentar-se no tamborete, com os dois dedos nas mãos ensanguentadas.
— Eu já disse! Eu conto tudo o que quiser! Mas por favor, pare com isso!
— Comece a falar.
— Foi a Arlequim. Quem matou foi a Arlequim, a dançarina, a stripper da boate.
— Por que ela faria isso? — a voz fria como gelo permanecia ameaçadoramente calma.
— Eu não sei! Eu não sei! Apenas cumpri minhas ordens, que eram de entregar os olhos na sua casa! Ela quem pediu! Eu juro por Deus que não sei por quê!
— Dedo, orelha ou olho?
— Pelo amor de Deus! Calma! Calma! Eu falo tudo o que sei!
Leônidas permaneceu sentado.
— Seu filho não foi o primeiro e nem o último.
O ruivo franziu o cenho.
— Como assim?
— Seu filho foi apenas mais uma vítima dela. Ela é um demônio! É completamente insana!
— Está dizendo que o que ela fez com meu filho também fez com outras pessoas?
— Sim! Com vários. Ela usava torturas diferentes para cada um — ele arfava de dor, respirava aos tropeços.
— E por que não há nenhum caso como o do meu filho nos noticiários?
— Por que ela só quis que o seu filho fosse exposto! Ela fez questão, não só de deixar ele na rua como exigiu que eu deixasse os olhos dele em sua geladeira!
Leônidas bufou.
— Com qual propósito?
— Eu não sei, eu juro! Apenas seguia ordens do meu chefe, que fazia o que ela pedia.
Leônidas fitou-o nos olhos por alguns segundos, a fúria de um animal selvagem no olhar. Vagner sentia que a qualquer momento ele avançaria e o retalharia com a navalha. Mas a besta estava estranhamente contida.
— Ela apenas torturava e matava? Sem motivo?
— Ela não dizia se tinha motivações. Provavelmente é uma serial killer, sei lá. Todos tinham a mesma faixa etária do seu filho, o mesmo perfil...
— Como ela escolhia?
— Ela apenas dizia como encontrar e onde e nós íamos buscá-los pra ela. Mas eu era obrigado, ou meu chefe...
— CALADO! — gritou.
Vagner percebeu que seu algoz usava de força sobre-humana para se controlar. Mas estava prestes a estourar.
— Onde estão os outros corpos? — falou com a voz animalesca.
— Desovados em lugares diferentes. Todos dados como desaparecidos, mas nenhum foi encontrado. Como disse, apenas o do seu filho ela fez questão de expor...
— Quantos ao todo?
— Uns... uns seis ou sete...
— Onde ela torturava as vítimas?
— No Calvário. Um lugar apelidado de Calvário.
Calvário...
— Leve-me até ela.
— A Arlequim? Perdoe, mas ela desapareceu.
— Desapareceu?
— Sim, senhor, ela abandonou a boate.
— Onde ela mora?
— Nós não sabemos...
Leônidas enterrou a navalha na coxa de Vagner, que urrou absurdamente alto.
— Seu desgraçado! Seu filho da puta!
— Quer que eu acredite nessa história fantástica de uma serial killer que magicamente some sem deixar rastros? — gritou bem próximo ao rosto de Vagner, a saliva escapando-lhe da boca como um cão raivoso.
— É verdade! Nós não sabemos onde ela mora. Ela tinha um pacto com nosso chefe. Dançaria todos os sábados e escolheria alguém da plateia pra transar de graça. Isso lotava a boate sempre. Em troca nós daríamos a ela de mão beijada as vítimas que escolhesse! Só isso que eu sei!
— Besteira! Eu vou esfolar você se não me provar o que está dizendo!
— Posso levar você até o Calvário!
— Eu quero que me leve até ela!
— Meu chefe está atrás dela tanto quanto você! Ele precisa dela viva!
Leônidas passou a mão suja se sangue pelos cabelos, enquanto pensava. Respirou fundo.
— Olho ou pênis?
— O quê? Não, eu estou cooperando! Não faz isso! Por favor?
— Olho ou pênis?
— Dedo! Dedo! Por favor, dedo!
— Pênis — inclinou-se para abrir o zíper da calça do segurança, arrancando a lâmina da coxa.
— OLHO! Olho! Caralho! Olho! — começou a chorar convulsivamente.
Leônidas atendeu seu pedido. Com um golpe rápido fez um corte no olho esquerdo de Vagner. Os berreiros estridulosos duraram alguns segundos. O tempo que ele levou para cortar as cordas que imobilizavam os pés e as mãos do segurança. Quando Vagner se levantou, uma arma estava apontada para sua cabeça.
— Leve-me ao tal Calvário.
O carro passou pela fachada onde lia-se "Sítio Morro Velho" e continuou subindo a estrada de terra dentre a vegetação. Vagner comprimia o olho ferido com a mão e não mais chorava de dor, embora gemesse baixinho de forma cadencial e sentisse a febre dominar seu corpo; a mão com os dedos decepados estava enrolada com a camisa para estancar o sangramento. Sabia que ia morrer, mas não queria se entregar a valentias suicidas e apressar o inevitável. Esperaria o momento certo de agir, ou de um milagre salvá-lo daquele psicopata.
— Ali — Vagner apontou.
Leônidas estacionou o veículo em frente ao casarão aparentemente abandonado, repleto de mato à altura dos joelhos ao redor. Ficava no alto da colina, talvez daí o apelido de Calvário, deduziu.
O barbudo desceu do carro com a arma em punho. Vagner o imitou, mancando, indo em direção à porta de entrada.
— É aqui. Eu não tenho a chave.
Leônidas o ignorou. Vistoriou as laterais da casa para ter certeza de que não era uma armadilha. A grande varanda de madeira tinha uma rede armada e uma cadeira de balanço quebrada. Encostou o ouvido na porta, tentou a maçaneta, então deu um pontapé poderoso, seguido de outros dois, escancarando-a.
Uma nuvem de poeira subiu por causa do movimento brusco. Leônidas tossiu e fez um sinal com a arma para que Vagner entrasse primeiro.
Quase não havia móveis nos grandes cômodos. Além do mofo e poeira, apenas teias de aranhas e cupins dominavam o lugar, com raios de sol escapando pelas frestas e goteiras deixando a penumbra interromper a escuridão. Vagner guiou o barbudo até uma escada que levava a um cômodo subterrâneo.
— É lá embaixo.
Sinal com a arma. Vagner desceu na frente. A porta estava selada com um cadeado. Leônidas posicionou a arma e disparou. A porta abriu-se com um rangido.
Os dois taparam os narizes instantaneamente. Era um misto de fezes, urina, vômito e carniça. Vagner ligou o interruptor.
Os olhos ferozes de Leônidas tornaram-se os de uma criança assustada. Deixou o queixo cair enquanto olhava ao redor.
Era uma sala de tortura.
Nas paredes, correntes com algemas posicionadas de maneira a deixar alguém em formato de X. No chão havia fezes e manchas assustadoramente grandes de sangue coagulado. Uma mesa cirúrgica estava posicionada ali perto, também ensanguentada. Havia algumas caixas empilhadas, uma estante e pedaços de carne apodrecida pelo chão. No centro havia uma poltrona.
— Então é verdade... — a voz de Leônidas saiu num fio, queixo trêmulo, as lágrimas de dor impossíveis de conter transbordando. — Meu filho morreu aqui...
Vagner pensou em aproveitar o momento de choque de seu algoz para atacar, mas debilitado como estava, dificilmente conseguiria dominá-lo, e correr não era uma opção com a coxa ferida. Resolveu apenas observar, temendo o que viria a seguir.
— Vocês a ajudavam? — a voz grotesca tinha o tom casual.
— Não — apressou-se em responder. — Nós apenas trazíamos eles até aqui e prendíamos na parede ou na cama. Ela fazia o resto.
Leônidas virou o rosto para ele, os olhos vermelhos estuprando sua alma.
— Onde meu filho foi colocado? Parede ou cama?
— Eu... Eu não lembro. Eu disse, foram vários...
— Vários...
Vagner engoliu em seco.
— Não temos nenhum envolvimento com as vítimas dela. Só cumpríamos ordens do chefe.
— Vocês sequestravam jovens para serem torturados até a morte. Apenas o trabalho de vocês, não é?
— Já disse, nós...
— Você presenciou alguma tortura?
— Nunca. Não teria estômago pra isso... — sentiu uma pontada no olho cego e gemeu.
— Então ela fazia tudo sozinha?
— Sim. Sozinha.
— Meu filho estava irreconhecível. A perícia mostrou que foi torturado por dias. Dias! Como suportavam tanto tempo?
— Ela os alimentava... Para que... Para que durassem mais. Dava remédios, curava as feridas... E fazia tudo de novo. Às vezes ela chamava a gente pra tirar os corpos de um lugar e colocar no outro — apontou para a parede e para a cama cirúrgica. — Essa cama nós conseguimos para ela. Foi uma exigência... Quando a vítima finalmente morria, ela ligava para desovarmos os corpos. Aliás, ela não tinha contato direto com a gente. Ela ligava para o chefe e ele mandava a gente fazer — dava pausas para gemer de dor, a pontada no globo ocular tornando-se insuportável.
— E por que eu? Por que meu filho? Por que colocar os olhos dele na minha geladeira? O que fiz a essa mulher? O que meu filho fez a ela?
— Não... Não sei, senhor...
Leônidas andou pelo cômodo a passos curtos, lentamente, e por fim sentou-se na poltrona.
— Suponho que ela sentava-se aqui... Para assistir...
— Sim... Eu... Eu não entendo como ela tinha tanto sangue frio... como conseguia...
— Eu entendo.
Vagner calou-se. Leônidas continuou:
— É exatamente o que pretendo fazer com ela. Dar um tiro me frustraria imensuravelmente. Não... Eu a torturaria por dias, semanas, pela eternidade se ela suportasse. E sentaria aqui ouvindo os guinchos dela. Seria música para mim... Não desejo mais nada nessa vida do que ter esse privilégio — olhou para Vagner com um brilho doentio nos olhos. — Eu tenho tantas ideias para tortura... Nisso temos algo em comum, eu e ela... o sadismo! A criatividade para causar a dor até o limite...
— Deixe-me ajuda-lo a encontra-la! Eu juro que farei meu melhor para...
— Você é inútil.
Vagner gelou.
— Eu juro, eu posso ajudar a encontrar aquela vagabunda!
— Onde?
— Eu sei onde ela mora! Posso levar você até lá!
— Você não sabe de nada. Ou teria me dito antes que furasse seu olho. Está desesperado para sair vivo.
— Não! Eu estava guardando a informação, mas... Eu sei quem pode chegar até ela!
Leônidas levantou-se com a arma em punho.
— Você entrou na minha casa e colocou os olhos do meu filho no compartimento de ovos da geladeira... — começou a andar em direção a ele.
Vagner recuou, trêmulo, o globo ocular com hemorragia, a dor insuportável no músculo partido da coxa.
— Tem um garoto! O último a ver a Arlequim! Se ele souber onde ela está, nós vamos saber! Os amigos dele vão entregar, eles pediram uma grana pra dar a informação, e... O moleque sabe! Eu ligo pra você diretamente, assim que souber! Eu juro!
Leônidas apontou-lhe a arma.
Levantou a cabeça, alerta.
Era o som de carro.
Ágil, Leônidas disparou escadas acima. Vagner, incrédulo, começou a ter um surto de euforia. Adão deveria ter mandado destruir o Calvário, e os homens deram de cara com o carro do barbudo ruivo.
Obrigado, meu Deus! Obrigado!
Leônidas sabia que não teria tempo para correr para o carro, já que o outro estacionara ao lado e não sabia quantos homens havia ou se estavam armados. Resolveu sair pelos fundos. Ouviu o grito estridente vindo do porão.
— Peguem ele! Peguem o barbudo! Peguem esse filho da puta!
Enquanto entrava no matagal, ouviu passos atrás de si, então tiros. Uma saraivada de tiros às suas costas. Correu em ziguezague, abaixando-se periodicamente para evitar que fosse acertado. Correu por cinco minutos ininterruptos e parou para recuperar o fôlego. Apesar do porte, era um homem de meia idade.
Ao seu redor, apenas o coaxar dos sapos e o barulho irritante dos grilos, sinfonia natural da noite. Ao longe ouvia latidos, mas nada de vozes.
— Vou pegar você, sua puta. Nem que tenha que descer ao inferno! — disse de dentes cerrados, um bizarro sorriso doentio nos cantos da boca, os olhos famintos por dor alheia. E ficou repetindo enquanto caminhava pela vegetação escura: — Arlequim... Arlequim... Arlequim...
***********
— Eu preciso de um médico! Por que pararam aqui? Meu olho vai infeccionar!
Estavam à beira do rio, um pouco afastados da estrada. Tinha uma leve neblina pairando no chão.
— Cala a boca, Vagner — ordenou Pajé.
Além do indígena havia um negro e um de gorro. Ambos bem grandes, quase tanto quanto Pajé; ambos companheiros de Vagner, funcionários de Adão. Não estavam de terno, usando casacos e sobretudos.
— Eu preciso de um médico! — insistiu. Ele furou meu olho, arrancou meus dedos!
— Vou arrancar tua língua se não calar a boca — ameaçou o negro.
Um veículo se aproximou. Vagner reconheceu o carro de seu chefe. Adão desceu, caminhando em sua direção com o semblante furioso.
— Quem é ele?
— O pai de uma das vítimas da Arlequim.
— E você levou ele até o Calvário? Levou ele até o lugar onde o filho dele foi trucidado? O que acha que ele vai fazer, seu merda?
— Ele me torturou... Ele... — mostrou a mão com os dedos faltando, retirou a outra mão do olho furado, fazendo com que jorrasse um líquido esbranquiçado e viscoso junto com o sangue. — Eu não tive escolha, senhor! E ele não vai à polícia! Ele quer a Arlequim tanto ou mais que o senhor!
— Como ele é?
— Alto e forte, de barba e cabelos ruivos, na casa dos cinquenta... É o pai do ruivo que a Arlequim pediu pra deixar os olhos na geladeira.
— Aquela puta! — Adão estrondou, as veias ficando à mostra no pescoço. — Eu sabia que ia dar merda! Sabia que essa exposição ia acabar fodendo comigo! Pra que aquela vagabunda exigiu que jogasse o corpo na porra da praça? Pra que essa bizarrice dos olhos? Puta! Maldita puta! Eu juro que mato essa desgraçada!
— Sinto muito, senhor, ele me torturou, e...
— Já ouviu falar de lealdade, Vagner? Vocês falariam sobre o Calvário e levariam o homem lá? — dirigiu-se aos outros três, e todos menearam a cabeça negativamente. — Está vendo? Lealdade, seu imbecil! Lealdade!
Em um movimento rápido sacou a arma e atirou na testa de Vagner, fazendo o corpo despencar de costas.
— Queimem o corpo e joguem o resto no rio — disse dando as costas e indo em direção ao carro.
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