1. Se eu morresse
O ônibus estava lotado como sempre, mas desta vez Samuel havia conseguido um lugar para sentar, e ao lado da janela. Não era todo dia que ele tinha essa sorte; geralmente disputava espaço em pé, enquanto era empurrado toda vez que algum passageiro desesperado avançava em direção à porta, temendo perder sua parada. Dessa vez estava ali, cabeça encostada no vidro da janela, fones de ouvido ao máximo com uma música melancólica de sua playlist do Radiohead. Ignorava o barulho da rádio do ônibus, onde um forró na moda repetia enfadonhamente a mesma frase com duplo sentido. Seus olhos passeavam pelas pessoas nas ruas, algumas caminhando apressadas, outras nas paradas com semblantes preocupados ou indiferentes. Vez ou outra Samuel se perguntava o que se passava em suas cabeças, que tipo de vida tinham. Perguntava-se se tinham o mesmo tipo de vida que ele, ou se eram felizes.
Às vezes, só às vezes, Samuel considerava-se feliz. Isso quando comparava sua vida com a de pessoas que não tinham o que comer ou que tinham algum tipo de deficiência ou limitação. Ele era saudável, jovem, no auge dos seus dezenove anos, morava em um apartamento, estava em um curso superior... O que tinha para reclamar?
O mundo parecia insuportavelmente repetitivo. Dias que recomeçavam e eram praticamente iguais, ciclos que eram refeitos a todo instante sem o menor significado.
A verdade é que poucas coisas o faziam sentir-se próximo do que poderia considerar felicidade: jogar vídeo game, assistir seriados, filmese pornografia trancado em seu quarto. Aquele era seu mundo intocável, o único lugar onde escapava do seu estado de tédio permanente.
Mas ainda faltavam alguns minutos para chegar ao seu mundo. Por enquanto ainda estava no ônibus lotado. Olhou para a esquerda, para as pessoas se espremendo suadas, todas aparente e justificavelmente de mau humor. Uma jovem equilibrava-se com uma mão segurando a barra do teto e com a outra, livros e um caderno. A mulher sentada ao lado de Samuel dormia de boca aberta, totalmente ausente da realidade; ele estendeu a mão pra jovem em pé, que com um sorriso entregou-lhe os livros para que pusesse no colo, sussurrando um inaudível "obrigada".
Então recostou novamente a cabeça no vidro da janela.
Enquanto caminhava da parada de ônibus em direção ao prédio onde morava, a mochila pesada nas costas e os polegares presos às alças, continuava a analisar as pessoas. Passou por um senhor de idade na casa dos setenta, sentado na calçada de sua casa; o velho sentava-se ali todos os dias e observava os carros e as pessoas. Toda vez que passava por ele, Samuel perguntava-se o que se passava em sua cabeça, se ele revivia as memórias do que havia feito ou se lamentava pelo que não. Talvez o ancião estivesse apenas esperando o dia acabar, e era exatamente o que Samuel queria, que chegasse logo o fim de semana.
Mas ainda era quarta...
Daniel, seu irmão, ainda não havia chegado em casa. Samuel apenas bebeu um copo com água antes de ir trancar-se em seu quarto. Jogou a mochila sobre a cama e deitou-se sobre a mesma com as pernas pra fora. Tinha trabalhos da faculdade pra fazer, mas não estava com o mínimo saco pra eles; pensou em jogar um dos seus jogos de Play Station3, mas não sentiu vontade de jogar nenhum; pensou em ler ou assistir um vídeo, ou talvez algum dos episódios das mais de dezoito séries que ele acompanhava, mas estava sem ânimo pra tudo isso. Reviu mais de uma vez suas opções de entretenimento, mas nenhuma conseguia chamar sua atenção. Ligou o PC, acessou um site de pornografia; foi até o banheiro, masturbou-se no vaso e voltou ao quarto. Ficou procurando sites diversos para passar o tempo, mas tudo parecia desinteressante. Desligou o PC, voltou a se deitar.
Samuel havia se acostumado com o tédio, mas algumas vezes parecia puramente insuportável, como estava sendo naquele momento. Era um vazio incompreensível que se apossava de sua alma e impedia que qualquer coisa tivesse algum sentido pra ele. Parecia algo patológico, similar à depressão, exceto pelo fato de que o que ele sentia não era consternação, nem tinha motivos aparentes para isso. Era apenas tédio. Só queria que o dia acabasse logo, que a quinta e a sexta deixassem o sábado vir o quanto antes. Não que tivesse algo pra fazer, mas pelo menos mais um ciclo seria completado, uma semana a menos.
— Merda de vida.
Ouviu o barulho na sala; Daniel havia chegado.
— Sam?
— Oi.
— Jantou alguma coisa?
— Ainda não.
— Trouxe lasanha, quer?
Ao invés de responder, Samuel levantou-se e saiu do quarto. Daniel estava retirando a gravata, sentado à mesa da cozinha; era seu irmão mais velho, e também o único. Único tudo, única família. O micro-ondas estava ligado.
— Trouxe de carne, tua preferida.
— Valeu — Samuel sentou-se à mesa.
—Como vai a faculdade?
— Bem. O de sempre.
O micro-ondas apitou.
— Pronto. Eu coloco pra gente — Daniel levantou-se e dispôs a lasanha em dois pratos.
Comeram por um instante em silêncio, Daniel analisando o irmão caçula, procurando alguma coisa pra puxar assunto.
— Como foi lá no escritório? — foi Samuel quem perguntou, quase automaticamente, pra quebrar o gelo.
Daniel era formado em advocacia, mas trabalhava no ministério público, fruto de um concurso que havia feito. O dinheiro que ganhava era suficiente para sustentar o irmão e todas as despesas da casa; Daniel fazia questão de que Samuel apenas estudasse.
— Chato como sempre. Estou pensando seriamente em fazer o teste da OAB e tratar de advogar.
— Seria uma boa.
— É.
Mais algumas garfadas em silêncio.
— Entediado de novo, Sam?
— Muito.
Daniel sorriu.
— Por que não joga vídeo game?
— Sem vontade de fazer nada. É horrível.
— Isso se chama ócio.
— Ócio?
— Meu trabalho é chato, mas nunca fico entediado por que tenho sempre algo pra fazer.
— Eu tenho o que fazer, só não tenho vontade.
— Tenta fazer algo diferente, sair da rotina.
— Estava pensando em traficar.
Daniel riu.
—Vida perigosa não combina contigo.
— Esse é o problema.
— Como assim?
— Minha vida. É monótona demais. Nada acontece.
— Falta de mulher.
Samuel enrubesceu.
— Nada a ver.
— Claro que tem a ver. Se você se apaixonar, duvido que fique entediado. Vai preencher o tempo ocioso criando poesias.
Daniel vez ou outra namorava uma garota diferente; era descolado, bom de papo. Samuel, por outro lado, tivera poucas experiências com as mulheres, e nenhuma delas havia sido louvável.
—Não tenho sorte com as mulheres.
— O azar é um pretexto pra justificar nossa incompetência.
— Valeu por me lembrar que sou um incompetente.
— Não se chateia. O que te falta é malícia, brother. Você ainda é ingênuo demais. Ainda é virgem, não é?
Samuel ruborizou-se. Daniel divertiu-se ao vê-lo encabulado.
— Não é da tua conta.
— Como não? Sou seu irmão, tem que falar dessas coisas comigo.
— Não quero falar desse assunto.
—Relaxa, Sam. Se for virgem, não é nem um pouco vergonhoso. Só toma cuidado pra não acabar se envolvendo com qualquer uma. Usa sempre camisinha.
Samuel resolver não comentar nada para deixar o assunto embaraçoso morrer.
— Eu lavo —pegou os dois pratos para lavar. Enquanto os lavava na pia, Daniel enchia um copo com água.
— Devia sair mais com seus amigos.
— Não gosto de sair com eles.
— Nem gosta de ficar em casa. Saindo pelo menos corre o risco de se divertir, conhecer novas pessoas...
— É, pode ser.
Alguns minutos depois, Samuel voltava pra seu quarto, seu mundinho. Agora, pelo menos, estava pensativo; seu irmão tinha esse poder sobre ele. O celular tocou. Era Elias, seu melhor amigo.
— E aí, babaca!
—Fala, viadinho. Interrompi tua punheta ou você continua com a outra mão?
— Estou batendo uma e olhando pra foto de tua mãe — provocou Samuel.
— Duvido. Deve estar olhando pra revista de macho suado se comendo.
—Fala, porra.
— Vamos sair com a galera no sábado?
— Pra onde?
— Confia em mim?
— Claro que não.
Elias riu.
— É uma surpresa minha pra ti.
Samuel pensou um pouco no que o irmão havia lhe dito. Embora as saídas com Elias e seus outros amigos fossem sempre desconfortáveis para ele, já que nunca se encaixava nas festas (não sabia dançar e era um desastre na paquera), desta vez estava inclinado a aceitar.
— Beleza — disse por fim.
— Te pego às nove.
— Me pega, o caralho!
— Teu sonho, né, enrustido?
Desligou.
Quinta-feira havia sido um ctrl C + ctrl V da quarta, e da terça anterior, e da segunda antes dela. Acordar cedo, pegar ônibus lotado pra ir pra faculdade, assistir aula em dois turnos, voltar pra casa de ônibus lotado, procurar algo pra fazer e faltar ânimo. Todos os jogos lhe pareciam enfadonhos, repetitivos, enjoativos; ao pensar em um filme para assistir, logo imaginava como seria o mesmo e isso o desestimulava. Acabou optando por assistir TV. O jornal falava de uma jovem que havia se suicidado, e segundo amigos e familiares, ela não apresentava qualquer motivo. Um especialista explanou que algumas pessoas têm tendência natural ao suicídio. Na mesma reportagem, transeuntes davam sua opinião sobre alguém tirar a própria vida; uma senhora disse que era falta de Deus no coração.
Samuel desligou a TV e ficou olhando para o teto branco. Concluiu que tinha tantos motivos pra se matar quantos tinha para continuar vivo. Cinquenta/cinquenta, zero/zero. Mas suicídio para ele não era uma coisa absurda.
Na sexta, durante a aula, ficou rabiscando uma figura enforcada.
Às vezes Samuel fantasiava situações. Em algumas delas ele era um herói, em outras, um mártir. Imaginava, por exemplo, algum psicopata armado entrando em sua sala e metralhando todo mundo até ele encontrar um jeito de avançar sobre o sujeito e desarmá-lo; quando estava afim de alguma garota, imaginava-se a salvando de alguma situação de risco para impressioná-la; já havia imaginado que salvava uma criança enquanto era filmado e assim tornava-se famoso por seu ato heroico; tinha até o discurso em mente. Também fantasiava escapar de assaltos, sempre com alguém assistindo para espalhar seu feito.
Mas nada disso jamais havia acontecido. Nem iria acontecer.
Ao terminar o desenho do enforcado, percebeu que o rabisco tinha seus traços. Era ele morto ali.
Pegou novamente o ônibus lotado, desta vez sem sorte, em pé, tendo que administrar o espaço vertical que tinha para si e para sua mochila enorme. Ao invés de Radiohead o que lhe amparava era SigurRós, também com os fones de ouvido ao máximo.
Jogou até tarde.
Daniel ligou avisando que chegaria de madrugada, tinha um encontro. Sorte a dele, pensou. Quantas vezes ele havia ligado para dizer a mesma coisa?
Em sua cama, olhando para o teto branco, ficou se perguntando quem sentiria sua falta caso se suicidasse. Entristeceu-se ao se dar conta de que pouquíssimas pessoas; o irmão, com certeza, os amigos mais próximos, especialmente Elias, mas o resto falaria dele por uma semana, talvez menos. E então o esquecimento.
Essa conclusão depressiva deu fim aos seus devaneios sobre suicídio.
E assim que dormiu, tinha fim o último dia tedioso de sua vida.
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