Capítulo Único
Todos são iguais perante a Lei [...]
(Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Art. 5º, caput)
...mas alguns são mais iguais que os outros.
(A Revolução dos Bichos, George Orwell)
– Mas não é o mesmo rio?
Ah, a estagiária. Sempre a estagiária. Tão inocente, chegava a comover. Fabiano levantou os olhos para a cara perplexa da moça que conferia a sentença e o despacho e ficou feliz que a pilha de processos em sua própria mesa subia exatamente ao nível da sua boca e ocultava-lhe o sorriso de comiseração.
– É sim – ela esclareceu, ao ver que a moça ainda aguardava uma resposta. Fabiano conhecia muito bem aqueles dois processos, ambos identificados por tripas de números das quais ele só havia decorado o final: 859-2, o antigo, e 632-7, o mais novo.
Fabiano trabalhava com o Dr. Valdemar havia quinze anos. Tinham assumido aquela vara oito anos atrás, e o 859-2 já estava lá. Os 5 grossos volumes cheios de traça não deixavam mentir. O 632-7, por sua vez, já era eletrônico. Chegara só no começo do ano, mas não que a situação fosse nova: o problema a que ele se referia já era conhecido desde o começo da década. Conhecido da mídia, inclusive, mas não o chamavam de problema – chamavam de empreendimento.
No fim das contas o Promotor não pudera mais empurrar sua investigação civil com a barriga – por mais que tivesse barriga para isso – e o 632-7 tinha nascido.
Maiara estava falando novamente.
– Ok, eu não estou entendendo isso muito bem. Os dois imóveis não estão a cinco metros do rio? – Fabiano assentiu, com ar entediado. – E o doutor não está condenando o pescador a derrubar o dele? – novo aceno. – Então por que vai fazer audiência de conciliação nesse outro aqui?
O assessor se mexeu incomodado na cadeira. Você não fica quinze anos como assessor sem bloquear algumas perguntas incômodas da consciência. Fabiano cogitava se não era aquele esforço de bloqueá-las que sugava sua energia para estudar para um concurso e virar ele mesmo, afinal, um juiz. Pigarreou. Tentou a saída processual.
– O novo código de processo civil... determina, sabe...
– Mas ação civil pública é lei espec-
– No outro processo foi tentado também – ele se justificou. – Mais de uma vez. Esgotamos as tentativas. Não deu. Agora me deixe me concentrar aqui e vai corrigir o português, que é o que o doutor mandou você fazer.
Fabiano encarou o próprio computador, focando os olhos no editor de texto software livre. Era verdade, eles tinham tentado. Sempre tentavam: uma homologação de acordo era muito mais fácil de escrever do que uma sentença propriamente dita. Meia página e estava tudo resolvido. Mas também era verdade que não tinham tentado com tanto empenho quanto desta vez.
Na folha em branco da tela do PC, Fabiano reviu toda a cena da audiência com o pescador.
– É um termo de ajustamento de conduta, Sr. João – dissera o promotor, com voz preguiçosa, o terno nas costas da cadeira e um dos braços repousando sobre a mesa retangular. – O senhor tem que corrigir o seu erro, o que, nesse caso, quer dizer derrubar a casa e o trapiche.
– Não é trapiche, seu doutor, é só uma rampa pro meu barquinho, pra eu poder já chegar da pesca direto em casa ou não ter que levantar muito mais cedo pra ir pegar o barco antes.
– Trapiche, atracadouro, rampa, é irrelevante. O senhor tem licença pra ele?
– Eu tenho um papel da Prefeitura. Tá aí no processo, o doutor disse que tá – e o pescador, um homem baixo de barba branca hirsuta e rosto queimado pelo sol olhou em busca de afirmação para o próprio advogado, um guri cheirando a banco de faculdade.
– Eu juntei com a contestação – afirmou o advogado, rapidamente, ficando três graus mais pálido do que já estava. O promotor acenou com a mão, para tranquiliza-lo.
– De fato, o senhor juntou, mas aquilo não é licença ambiental. Nem passa perto.
– Doutor, quem sabe se ele pleitear uma licença agora... – o juiz Valdemar tinha palpitado.
– Impossível – o promotor interrompeu. Via-se que queria se livrar daquela audiência o quanto antes. – Ele pode até conseguir a licença para o trapiche, mas a casa continua em área de preservação permanente.
– Mas eu não construí nada, aquela casa foi meu pai que ergueu, eu ainda era um piá desse tamanho e...
– Excelência, já existe legislação protetiva das beiras dos rios desde a década de 1930, se formos rastrear – o promotor interrompeu, se dirigindo ao juiz Valdemar. Seu João ainda ficou balbuciando, mas ninguém lhe prestava mais atenção. – Como, inclusive, eu deixei claro na petição inicial.
– A quantos metros do rio está a casa? – o juiz perguntou a Fabiano, que, após folhear suas anotações, murmurou "cinco metros". Valdemar, então, se virou para o réu: – Sinto muito, Sr. João, mas pelo menos a casa o senhor terá que derrubar.
– Não posso fazer acordo em área de preservação permanente – o promotor complementou, num tom que tentava ser consolador, ou pelo menos justificar de alguma forma sua obstinação. – O órgão superior do Ministério Público proíbe.
Nem o juiz, nem Fabiano objetaram que aqueles acordos aconteciam todo dia, que o promotor tinha independência funcional, e que era muito improvável o órgão superior do Ministério Público ficar sequer sabendo de um acordo homologado por juiz, quanto mais interferir. O jovem advogado, se sabia, também não teve coragem de objetar.
E o processo seguira.
E hoje recebia sentença. Uma sentença perfeita, impecável de acordo com a lei. Citava uma dezena de normas, desde a Constituição e descendo até regulamentos municipais, para, no fim, determinar o que já se sabia devido desde o começo do processo, quinze anos atrás: a casa não podia ter sido construída ali, e o pescador devia derrubá-la. Sob pena de multa diária em caso de descumprimento.
Assim acabava o processo alguma-coisa-859-2. Deviam abrir um champanhe no gabinete por se livrar daquela bomba – e, de quebra, ele ainda estava na Meta 2 de urgência do Conselho Nacional de Justiça. É possível que houvesse uns recursos, e ele se arrastasse moribundo por mais uns quatro anos, mas isso já era problema dos tribunais.
O barulhinho da impressora e o cheiro de tinta fresca atraíram o olhar de Fabiano para aquele lado. A sentença de doze folhas saía revisada da impressora. A estagiária Maiara a retirou da bandeja, pegou uma caneta, e foi levar para o doutor assinar.
Fabiano deixou sua mente divagar só um instante, e ela escapou-se para a casa do pescador. Estaria ele vivo? A audiência fora muito tempo atrás. O rosto moreno flutuou na frente dos olhos do assessor, contorcendo-se de dor ao receber a notícia do incomodado advogado, já não tão fresco a essa altura.
Devia acontecer na próxima semana.
Fabiano expulsou a imagem de sua mente com socos mentais, e voltou para o Libre Office, para seu processo bancário.
***
A imprensa estava lá fora. Em massa: todos os meios de comunicação da cidade. E até alguns do país, na verdade. O motivo não podia ser outro: era dia da audiência de conciliação do processo alguma-coisa-632-7, que dizia respeito a um dos mais altos arranha-céus a ser erguidos na América Latina. Logicamente os jornalistas viriam, precisavam dos nomes de quem crucificar por perseguir um empreendimento tão importante para o país. Ora, onde já se viu... processar uma empresa que queria gerar tantos empregos... Do que sobreviveriam os cinquenta pedreiros que seriam despachados ao terminar a obra de qualquer forma, e empresa de terceirização que forneceria a equipe de limpeza, os dois porteiros, três vigias e o ascensoristas?
O gabinete estava em polvorosa. O juiz estava até lendo – vejam só, lendo! – o processo, para se preparar para a audiência. Ouvira dizer que a construtora Mattarazo e Freitas Ltda. – ME contratara cinco bancas de advogados especializadas em Direito Ambiental para defendê-los, uma delas de São Paulo! E a quanto tempo o Dr. Valdemar nem sequer tocava no seu manual amarelecido. Tinha boas razões para estar suando frio.
– Doutor, já estão todos aí – isso foi Fabiano aparecendo na porta. Geralmente quem chamava o juiz para as audiências eram os estagiários, mas Fabiano fora escalado para fazer o social nesse caso específico. O juiz queria ao seu lado alguém que realmente conhecesse o processo. – Posso deixar entrar?
– Não ainda, não ainda... Venha aqui, Fabiano, vê se eu entendi direito – o juiz acenou, nervoso, e o assessor se aproximou. – Esse treco está em APP?
– Está, doutor.
– Quanto por cento?
– Inteirinho.
O juiz deixou escapar um palavrão.
– E eles têm ou não tem licença? Não entendi nada, esse monte de documento aqui, é uma confusão que vou te contar.
O assessor hesitou; tantos processos passavam por sua mesa por dia. Deu uma olhada na tela do computador do juiz, com mais de quinze abas abertas com os arquivos em PDF do processo eletrônico. Só em bater os olhos nas linhas, porém, lembrou-se do quadro inteiro dos autos.
– Têm, doutor. Foi um caso meio estranho, se me permite. Indeferiram no órgão ambiental local, eles recorreram, e na capital, bem... o órgão ambiental afastou a aplicação da lei... Disse que já era área urbana consolidada, derrubaram todas as outras oposições e concederam a licença.
– Ah, bom, se é área urbana consolidada... – o juiz pareceu mais aliviado. – Afinal, a gente não pode ficar caçando as licenças que os órgãos ambientais dão, não é verdade? Onde fica a segurança jurídica? A quanto metros disse que o prédio está do rio, mesmo?
– Cinco. Ainda estão construindo – Fabiano insinuou. O juiz olhou para ele com ar severo. Então o assessor ousava insinuar que não havia consolidação da construção... em outras palavras, que não havia justificativa plausível para deixar o prédio ser concluído ali.
– Lá está cheio de prédios em volta.
– Sim, senhor. Tem mais uma coisa, doutor – adicionou o assessor, quando o juiz fazia menção de se levantar. Valdemar olhou para ele, meio agastado. – No mesmo dia em que deferiram a licença, concederam outra "retificando" e dobrando o número de andares.
O juiz arregalou os olhos.
– Mas apresentaram um estudo de impacto ambiental complementar, é claro?
– O órgão ambiental dispensou. A promotoria alega que eles nem apresentaram o estudo correto junto com o pedido de licença, para começo de conversa.
– A promotoria alega um monte de coisas – o juiz resmungou, vestindo o paletó. – Eles têm é que descer para a terra. Onde já se viu frear um empreendimento desses? Isso é inveja, aposto que o promotor queria morar lá e não conseguiu pagar um apartamento. Espero que seja razoável hoje, não quero confusão na frente da imprensa. Se não tiver conciliação, a gente simplesmente manda todo mundo embora e depois analiso essa encrenca em gabinete – e, com um suspiro, ele passou à sala de audiências, seguido do assessor.
Uma pluralidade de homens de terno e mulheres de tailleur estava reunida em torno da mesa de audiência, alguns com barrigas salientes, outros com corpos recém-saídos da academia. Conversavam como se fosse uma família se encontrando no Natal; alguns de fato passavam os Natais juntos, vizinhos de prédio que eram, associados do mesmo clube, ou companheiros de feirino. Se o próprio Juiz Valdemar não conhecesse cada um, dos mesmos círculos sociais, não saberia distinguir quem era promotor, quem era advogado, e quem eram os sócios da empresa acusada.
Próximo à parede se acumulavam os jornalistas; eram espectadores daquele mundo, mas não podiam ingressar nele. Como que uma bolha invisível os separava dos efetivos participantes da audiência, que diminuíram progressivamente os risos descontraídos ao notar a aproximação do magistrado.
Após as formalidades de praxe, o Juiz Valdemar dirigiu uma pergunta às partes, internamente já se preparando para argumentar, caso a resposta fosse negativa:
– Então, senhores... há proposta de acordo?
Um dos advogados puxou dos seus documentos um bolo de papeis, com umas vinte páginas. "Argh, uma contestação", o juiz pensou, contemplando o maço com desagrado. Mas não.
– Sim, Excelência. Já preparamos inclusive a minuta, está assinada, houve uma reunião anteontem no gabinete do promotor... Só aguarda a homologação.
O juiz pegou os papeis, mal acreditando na própria sorte. Folheou-os sem ver, e virou-se para o promotor, indagando com o olhar se era verdade o que diziam os advogados. O promotor parecia um pouco menos à vontade que os outros, mas confirmou com um aceno de cabeça.
– O projeto é bastante ambientalista, no fim das contas – ele balbuciou, sem graça. – Vão plantar dez árvores nativas no jardim do edifício, na faixa mais próxima ao rio.
– Sim, e vamos pagar cem mil reais de indenização, doar cinco câmeras para o órgão ambiental local e colocar outdoors pela cidade sobre a importância de jogar o lixo no lixo.
Um sorriso irônico crispou os lábios de Fabiano, em seu canto recuado, mais próximo dos jornalistas. Só por curiosidade, ele tinha olhado o preço dos apartamentos no projetado Maybeline Residence. Um apartamento não saía por menos de dois milhões de reais. E o prédio contaria com 350 apartamentos.
Aquela indenização não pagava nem o piso do pátio.
Mas o Juiz Valdemar parecia bastante satisfeito. Lançou um sorriso alegre para o assessor. O processo chegara a uma solução pacífica, no fim das contas. E ele não precisaria ler aquele catatau de documentos.
– Fabiano, leve aqui para digitalizarem para mim, por favor. Maiara, termine a ata e dê para os presentes assinarem – determinou, começando a ditar suas deliberações para a estagiária.
Um processo a menos. E morto no nascedouro, ainda por cima.
Isso era o importante.
O Judiciário andava.
***
Três anos transcorreram. Maiara fizera um concurso, fora nomeada técnica do judiciário. Fabiano continuava assessor. Eles ainda moravam perto e, às vezes, quando chovia, Fabiano dava carona para a moça. A estrada passava não muito longe do rio. Sim, aquele fatídico rio. E nesse dia, apesar da chuva borrando os vidros, nenhum dos dois deixou de notar as máquinas que trabalhavam mais perto da margem.
– Não é... – a moça apontou, espremendo os olhos para ler o slogan da prefeitura na lateral do caminhão à distância – Não é... aquela casa?
Fabiano relanceou o olhar para lá. Tinha ótimo senso de localização.
– A do pescador? É, sim.
– O processo desceu do tribunal?
– Desceu. Despachamos na execução de sentença anteontem.
Silêncio. Maiara suspirou e se apoiou no assento, focalizando os tratores que derrubavam, brutalmente, o casebre às escuras. Julgou vislumbrar um vulto sem uniforme da Secretaria de Obras e voltou os olhos para frente. Não queria associar rostos aos processos em que trabalhara. Não era saudável... para a mente.
Quando virou os olhos para frente, todavia, seus olhos deram com um gigantesco arranha-céu, na outra margem do rio. Apenas uma dúzia de janelas estava acesa, afinal não é todo mundo que consegue comprar um apartamento de dois a cinco milhões de reais, variando conforme o andar. Os cantos de sua boca se inclinaram para baixo, e ela pareceu mais velha.
– Esses dias teve evento lá – Fabiano comentou, adivinhando o que ela tinha visto, sem precisar olhar. Seu tom carregava uma ironia masoquista. – Entrega dos prêmios concedidos pela Câmara dos Dirigentes Lojistas. O Doutor Valdemar levou um. Tive que ir prestigiar.
A jovem técnica não respondeu. Conforme o carro subia para passar acima de um túnel, o terreno ao lado do arranha-céu ficou visível. Ao invés das árvores que costumavam recobri-lo, Maiara avistou fundações.
E as fundações vinham quase até a beira do rio.
– Lá...? – ela apontou, incerta.
– Processo qualquer-coisa-537-4. Chegou essa semana, ainda nem tivemos tempo de olhar direito.
– É área de preservação permanente.
Fabiano lançou um olhar para a colega, e um sorriso de comiseração.
– Depende de quem for o responsável.
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