Are you scared?
A gota de suor que deixava o canto da testa de Reed era apenas uma reação de todo o temor que tomava seu corpo naquele instante. Ela se remexia na cama, agarrada aos lençóis acinzentados como se fossem o seu único elo de ligação entre o mundo real e as sombras, onde se via imersa no momento. Seus dentes estavam cerrados e a camisola branca encharcada pela água que saía de seus poros. Os cabelos loiros encontravam-se desgrenhados, de tanto rolar de um lado para outro.
"Você está assustada, Elle?"
"Tem medo do escuro?"
Ela escutava a voz infantilizada que rondava seus pesadelos. Via-se em um quarto escuro, onde somente a silhueta de uma criança se destacava no breu. Não conseguia identificar se era um garoto ou uma garota, apenas fazia de tudo para se afastar, mas era em vão. Quantos mais passos dava para trás, mais perto aquela figura pequena parecia estar dela.
Era sempre a mesma visão, as mesmas ações, culminando em um mesmo desfecho. Elle caía sentada, e enquanto observava o pequeno demônio se aproximar, tapava os ouvidos e gritava. Berrava o mais alto que podia, até que, de súbito, despertava em sua cama, com as mãos no peito e a pele arranhada por suas próprias unhas. O relógio marcava o mesmo horário, todas as vezes, 4h09.
Naquela noite, o medo que deixava bambas as pernas da mulher fora mais intenso. Tudo isso devido à ansiedade que se misturava aos outros sentimentos apavorantes.
Há alguns meses, Elle havia sido diagnosticada com estresse episódico, decorrente de situações desgastantes vividas em sala de aula. Quando escolheu a profissão, imaginou que seria o seu momento de paz e tranquilidade, porém, ao presenciar situações com as quais não era capaz de lidar, a professora Reed afundou cada vez mais na condição, até que precisou deixar o colégio para cuidar de si mesma. Depois de um longo período de tratamento, ela decidiu retornar ao trabalho, todavia, desde que marcara a data do retorno, sentia coisas estranhas, sonhava com imagens escabrosas de crianças perturbadoras. E aquele pesadelo, em específico, se tornou o mais recorrente, era quase uma rotina.
Sem conseguir retornar às últimas horas de sono, Elle se levantou, tomou um banho e preparou tudo para a aula que daria quando amanhecesse.
"Você está assustada, Elle?"
A voz aguda e infantil continuava a ecoar de maneira frenética em sua mente.
Às seis da manhã, a professora pegou suas coisas, entrou em seu carro e dirigiu até o colégio. Seu coração pulava enquanto pensava que teria de lidar com todas aquelas crianças outra vez, não queria mais ter pesadelos. E se aquilo se agravasse?
Ela estacionou bem em frente ao portão principal e pôde ainda sentir as últimas gotas de orvalho atingirem-lhe a face. Caminhou até à secretaria, cumprimentou os outros funcionários e seguiu para sua sala de aula. Era a mesma em que trabalhara antes de precisar de se afastar. Esperou os alunos chegarem, de pé na porta. Seu sorriso magnífico inundava o lugar de amor.
Elle olhou para o relógio, estava na hora de começar. Respirou fundo, pôs-se à frente da turma, desejou as boas-vindas a todos e pegou o giz para anotar a data no quadro negro. Escreveu os números de maneira automática, mas quando percebeu, um nó se formou em sua garganta. Era exatamente quatro de setembro, e os números estavam exatamente iguais aos do relógio, na madrugada.
Sem tempo de ter sua primeira crise, sentiu que alguém batia na porta, era Glenda Watson, a diretora da escola.
− Com licença, professora Reed. Tem mais uma flor para o seu jardim, aqui comigo. – A diretora fez sinal para que alguém entrasse.
Os pequenos passos não poderiam tê-la afetado mais. Quando viu a imagem da menina loira de cabelos escorridos, a gota de suor teimosa desceu por sua face. Ela piscou algumas vezes e só então pôde responder:
− É... Claro, entre, querida. Qual seu nome? − perguntou de maneira doce, mesmo que por dentro a sua vontade fosse sair correndo para o lugar mais afastado possível.
− Amy. – A garota mantinha seus olhos fixos no chão.
− Sente-se, querida − falou Elle, enquanto o pavor escorria por sua pele. — Diretora Watson, obrigada por trazê-la até aqui.
Glenda anuiu e deixou o lugar. Durante todos os minutos, a professora tentava esquecer aqueles pesadelos terríveis para que aquilo não influenciasse em seu trabalho. E funcionou de certa forma. Enquanto chamava os alunos para verificar as atividades dos cadernos, Elle se distraiu e mergulhou no que estava fazendo.
− Amy − chamou.
A garotinha caminhou até ela, devagar. Carregando o caderno preto, agarrada a ele como se fosse um bem precioso.
− Deixe-me ver. – A ansiedade começava a dominar a professora. Algo em seu corpo não lhe deixava em paz, cada vez que olhava para a menina.
Amy estendeu o caderno e Elle notou que as atividades estavam todas perfeitamente cumpridas. Enquanto seus olhos passeavam pelo papel, sentiu uma mão pequena e fria tocar seu ombro.
− Elle, você está assustada? − Era a mesma voz infantil que ouvira em seus pesadelos, desta vez, saía da boca de Amy.
Pensou que seus pensamentos lhe haviam traído por um instante, então quis ter certeza:
− O que disse?
A menina a encarou no fundo dos olhos e continuou:
− Eu perguntei se tem medo do escuro, professora Reed. − Os olhos da menina se tornaram completamente pretos por um instante, o bastante para que Elle se sentisse ameaçada. − Professora, o que foi? − Sentiu um sacolejar nos ombros. − Tem alguma coisa errada com minhas tarefas? − A voz da menina estava diferente, mais doce e aprazível.
Elle relaxou a postura, certa de que estava ficando louca.
O barulho estridente anunciava o fim das aulas, e, consequentemente, do dia de trabalho da jovem professora. Ela não poderia negar o quão aliviada estava, embora aquela sensação ruim, os sussurros infantis e a estranha sensação de que algo a observava a estivesse perseguindo.
Elle decidiu pegar o caminho mais curto até sua casa, porém, sabia que teria que passar pela rua que cortava o cemitério. Ela nunca entendeu o porquê, mas, desde criança, ela evitava aquele lugar. Era uma rua comum, como qualquer outra, mas, aos olhos dela, parecia sempre sombria.
Enquanto se aproximava da esquina, a qual deveria seguir para encarar a Rua do Cemitério, ela ouviu a melodiosa risada infantil. Parecia ser de uma garotinha. Um arrepio percorreu seu corpo. Então, ela tomou coragem e espiou pelo retrovisor. Por um segundo, pôde jurar ter visto de relance um par de olhos completamente negros, como os de Amy, mais cedo.
"Em vinte metros, vire à esquerda".
A professora assustou-se e guinou o volante, quase se despistando.
− É só o GPS. – Tentou tranquilizar-se, ainda que não se lembrasse de o ter ligado em primeira instância.
Elle desligou o aparelho e fixou o olhar na estrada à sua frente.
Na encruzilhada, o comando voltou a soar alto. "Vire à esquerda". A professora travou a fundo. As mãos e as pernas tremiam-lhe. Ignorando a sensação de pavor, ela certificou-se de desativar, de vez, o GPS. Ela só queria chegar a casa. Quanto antes, melhor.
Virando à direita, o grande anjo de mármore marcava o início da rua. A estátua não era bela, e seus olhos estáticos repousavam exatamente no rosto da mulher ao volante.
"Vire à esquerda, vire à esquerda, vire à esquerda", a voz robótica repetiu por várias vezes seguidas. O carro desligou-se, e Elle, em seu desespero, nocauteou o GPS.
− Funciona, merda! − exclamou a jovem irritada.
Todas as suas tentativas de fazer funcionar o automóvel e seguir para casa, saíram frustradas.
A risada aguda e infantil ecoou no espaço fechado, e a voz robótica insistia em preencher os pensamentos de Elle. Os dois sons se uniam em um tormento sem fim. A mulher agarrou-se ao cinto de segurança que apertava cada vez mais o seu peito. A respiração tornando-se pesada, ofegante. Em desespero, ela libertou-se e saiu do carro aos tropeços.
Os exercícios de relaxamento que aprendera na terapia, ajudaram-na a entrar em um estado mais controlado. Agarrando-se à racionalidade, Elle levantou o capô, porém, tudo que viu foi um emaranhado de válvulas e fios. Ao que lhe parecia, todos estavam em bom estado de preservação. Seus escassos conhecimentos em mecânica não lhe permitiriam ir muito mais longe.
Ela reprimiu um xingamento.
− Jared! – gritou aliviada, ao recordar-se da solução óbvia. Elle detestava perturbar o seu noivo com estas coisas, mas, não tendo o contacto de nenhum mecânico, ele era sua única hipótese.
Pegou no celular, mas o aparelho desligou-se antes de conseguir iniciar a chamada.
− Sem bateria! – concluiu desanimada.
Por quase meia hora, ela procurou pelo cabo USB, mas o destino parecia estar lhe pregando uma peça. Nem sequer se viam pessoas ou carros a passar na zona. Sem outra alternativa, decidiu seguir a pé.
A esguia professora mantinha os olhos fixos no chão, a bolsa colada ao corpo, e a pasta plástica junto ao peito, como um escudo, enquanto atravessava o cemitério. Ela sentia pequenos passos atrás de si, mas sempre que se voltava, fitava apenas o vazio. À sua frente, a imponente igreja, com a sua gigante torre do crucifixo, roubava toda a luz do sol de fim de tarde, deixando tudo à sua volta entregue à enorme e assustadora sombra.
Uma dor aguda acometeu a jovem mulher, fazendo-a cair no chão, e seus pertences foram cada um para um lado, como se estivessem a fugir da ameaça.
Elle ouviu um barulho de relógio.
Tic tac, tic tac, tic tac...
Três vezes.
O sino da igreja tocou, tudo escureceu e Ellen perdeu os sentidos.
A cabeça latejava-lhe e foi preciso um grande esforço para a professora Reed conseguir abrir os olhos. Não havia muita claridade. Ela mal via os dedos que colocou em frente aos olhos.
O silêncio era quase ensurdecedor. Elle não tinha a certeza se isso era um bom ou um terrível sinal. Era no escuro, no absoluto vazio, que os monstros apareciam.
Ela levantou-se e levou a mão ao local da dor. Estava úmido. Seria sangue ou suor?
Havia um cheiro característico no ar. Ela já o havia sentido antes. Onde? Parecia alho, mas não o era...
Ela avançava lentamente, quando tropeçou em algo duro. Pedra? Não, ela não estava a céu aberto. Tateou com cuidado. Era algo retangular, alto, uma estátua talvez, ou então... Um arrepio lhe percorreu o corpo, e ela enrijeceu. Agora ela recordava-se do cheiro. Era arsênico, usado por algumas culturas para conservar cadáveres. Agora sabia onde estava, na cripta da catedral.
Olhando ao redor, um reflexo de luz despertou sua atenção, atraindo-a. Ela apenas queria afastar-se o mais possível da escuridão.
Ela caminhava com dificuldade, sentindo o coração martelar-lhe no peito. A luz era refratada ao colidir com um objeto inusitado para o local. A mulher estacou bem próxima, analisando o espelho pendurado na altura da sua face. Sua imagem refletia timidamente através daquele mísero feixe, vindo de algum lugar de cima.
Aos poucos, o rosto projetado começou a desfocar, tornando-se numa mancha sem forma. Ela fechou os olhos, confusa, e quando os abriu, a pequena Amy fitava-a. O negro do seu olhar havia substituído toda a réstia de branco.
"Você tem medo do escuro, Elle?"
"Você está assustada?"
As frases, que lhe eram tão familiares, chegaram-lhe aos ouvidos, ainda que a garota do espelho preservasse um sorriso selado.
A professora engoliu em seco e se voltou lentamente. Ela tinha esperança de que fossem tudo coisas da sua cabeça, que a presença que sentia atrás dela não fosse real.
O espaço mergulhou na escuridão, ouviu-se o som de uma arma a ser disparada e um líquido quente respingou no corpo da mulher.
Elle sentiu seus olhos queimarem com a claridade intensa que surgia à sua frente. A pequena criança era mergulhada numa enorme áurea de luz, fazendo seus cabelos loiros brilharem como o sol. Os olhos verdes lembravam a relva molhada em um dia quente de Primavera.
− Porque você me fez mal? – questionou a doce menina já com lágrimas.
Amy virou um pouco a cabeça, deixando antever o buraco causado pelo projétil que lhe havia corroído parte da testa. O sangue escorria incessável, com gotas caindo numa larga poça, que embebia os pés descalços da criança.
− Porque você me fez isto? – insistiu Amy, apontando de forma acusatória para as mãos da professora.
Elle, só então, se apercebeu da arma que tinha entre as mãos.
− Não! – negou em pânico, sem saber o que fazer com o objeto em que pegava. – Não! Eu não fiz nada!
− Eu fui uma boa garota – argumentou Amy, voltando os pequenos pulsos para a luz. – Fiz tudo direitinho.
Ouviu-se carne a ser rasgada, enquanto traços de sangue marcavam a pele alva dos pulsos de Amy. O líquido caía em cascata.
A jovem mulher deixou a arma cair no chão e, desesperada, contornou a criança. Ao afastar-se da luz, ficava cada vez mais difícil ver para onde se dirigir.
− Não há saída. – A voz infantil soou mais perto do que a professora gostaria. Elle continuou a palpar o caminho. – Você não pode escapar do que fez.
Amy surgiu na frente da professora, envolvida por um feixe de luz vermelha. O olhar da garota era negro e transparecia um desejo de vingança. Os cantos dos lábios estavam ligeiramente levantados.
− Você o matou – acusou a criatura sinistra, que Elle já não tinha a certeza tratar-se de uma criança.
− Eu não matei ninguém!
− Ele só estava tentando ajudar você, professora Reed. E você matou-o e escondeu-se no escuro.
Imagens sem sentido atacaram a mente de Elle. Passavam rápido demais para que ela conseguisse dar um sentido plausível a alguma delas. A mulher caiu de joelhos com a cabeça a pesar-lhe. Os próprios gritos assustavam-na, tal era o sofrimento atroz que transmitiam.
Uma memória, se é que era disso que se tratava, agigantou-se perante todas as outras e marcou, a ferro, a consciência de Elle. A professora abriu a boca horrorizada ao ver Jared, seu noivo, se espernear, deitado no chão, em agonia. O cheiro do sangue revolveu-lhe o estômago.
− Foi você – acusou Amy novamente, sorrindo ao ver o sofrimento da mulher.
Elle escutou, de novo, o barulho da arma a ser disparada. Suas mãos taparam os ouvidos e ela começou a embalar o próprio corpo. De sua boca, saía uma prece murmurada, que se repetia exaustivamente:
− Eu quero ir para casa. Eu quero ir para casa. Eu quero ir para casa.
A mulher sentiu umas pequenas mãos frias a puxarem seus braços para baixo. Por mais que resistisse, a força da criatura era estranhamente maior do que a sua. Seus ossos estalaram, quando os membros foram totalmente estendidos. A pele da professora arrepiou-se com a intensidade do negro que a fitava.
− Você já não tem casa. – A voz da garota era amarga, áspera. – Você não tem nada. Só a mim!
Uma gargalhada infantil preencheu o espaço.
Recusando-se a aceitar o que ouvia, Elle levantou-se e correu, sem medo de cair ou de se perder na escuridão. Ela apenas queria fugir da estranha criança.
Embatendo com o pé direito em um objeto rasteiro, a professora tropeçou e caiu sobre uma superfície mais mole do que esperava. O cheiro de arsênico era mais forte ali. Ela susteve a respiração, agoniada, e palpou, a medo, o que lhe havia amortizado a queda. Não havia dúvidas, ela estava deitada sobre um corpo frio e inerte.
A luz fraca de uma lanterna apontava para uma lápide na frente de Elle. As letras tornando-se visíveis, pouco a pouco.
− "Nascida em 1988 do dia 15/03" – leu a professora em voz alta. As palavras saíam-lhe tremidas. – "Falecida em 2017 do dia 4/09".
Ela não sabia o que a inquietava mais, se ver, mais uma vez, aqueles números do relógio de seu quarto, ou ver a coincidência terrível da outra data marcada na pedra.
− "Aqui jaz" – continuou a ler.
A lanterna moveu-se, de súbito, iluminando um ponto abaixo de Elle. Ainda que arroxeado, o rosto era uma cópia exata do da mulher que o perscrutava.
− Não pode ser! – gritou a professora, saltando para longe do corpo morto. – Eu estou viva!
− Será que está mesmo? – A criança riu-se atrás da mulher.
Elle sentiu as suas entranhas serem dissecadas e caiu, de joelhos, se entregando à dor que a invadia. A luz, agora, decaía sobre ela. Esticando a mão à sua frente, a mulher viu a pele empalidecer para, logo depois, adquirir um tom arroxeado. A cor expandia-se por todo seu corpo, arrancando-lhe o oxigênio que a mantinha viva.
− Não! Eu... não... − tentou falar, enquanto sufocava.
− Você tem medo do escuro, Elle? Você está assustada?
A professora tombou para a frente. Caída no chão, ela agarrava-se ao fio de consciência que restara dentro dela. Os olhos permaneciam fechados e os cabelos loiros ocultavam-lhe parte da face.
− Até amanhã, Elle – despediu-se a pequena criança. – Ou seria Amy?
A gargalhada maquiavélica foi a última coisa que a professora ouviu antes de sucumbir.
Voltando a acender a lanterna, a garota iluminou o restante da lápide.
"Aqui jaz Amy Reed."
A criança foi rodeada por uma densa nuvem negra. No seu lugar, surgiu uma criatura com forma animalesca, revestida de uma pele encarnada e viscosa.
− Por isso que eu amo o Inferno!
O demônio gargalhou, já ponderando o novo plano de tortura. A eternidade ao lado de Amy Reed prometia!
2.924 palavras
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