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Capítulo 37

   Aleluia!!!! Finalmente voltei e para ficar! Estava morrendo de saudades de vocês! Como sei que não querem saber de desculpas e texto enorme, vamos enfim ao capítulo (que está gigantesco para compensar o sumiço rsrs)!

  P.S: Música do capítulo é Legends Never Die e coloquei o vídeo com legenda em português porque a letra tem tudo a ver com a história. ^_^

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    Ódio fervilha em mim, mas há um outro sentimento lutando para vir a superfície. Dor. E apenas o eco dessa dor ameaça fazer meus joelhos fraquejarem. Não, não deixarei que essa dor me subjugue.

    Concentro todo meu ódio na criatura diante de mim.

    E é nesse momento que várias coisas acontecem ao mesmo tempo. O ser desprezível a minha frente tenta dizer alguma coisa, mas só serve para eu aumentar ainda mais a força contra a sua traqueia. Eres e Nars tentam vir correndo ao socorro do monstro, mas com um simples movimento de minha mão livre, os faço voarem para longe. Pelo canto do olho, também vejo Vanshey lutando para se livrar da prisão dos braços de montanha de meu irmão. Um esforço inútil, na verdade. Melhor assim, não quero machucá-lo também.

    Vejo mais dos guardas leais a princesa tentando se aproximar, porém a única que tem alguma chance de me impedir de esmigalhar os ossos desse ser desumano, é Rius, que está se transformando em uma besta enorme e vindo em minha direção. Sei o que pedi a ela para fazer em uma situação como esta, mas ainda não estou pronta para liberar a minha presa.

    Entretanto, mesmo no caos que está prestes acontecer, a única coisa que desvia um pouco a minha atenção, é ele, Kadrahan.

    Pela primeira vez ele deixou cair a máscara que sempre usa para esconder suas emoções. E o que vejo em seu semblante deveria me assustar, mas não. O ódio que rodopia feito um tornado de fúria em seus olhos, me dá o alento que preciso. Alimenta a minha própria fúria que serpenteia em minhas veias como uma víbora faminta. Não estou sozinha em minha dor e em minha sede por justiça.

    Antes que Rius me alcance, ergo uma muralha invisível de proteção ao nosso redor e ela se choca contra a parede que seus olhos não podem ver. Sua força descomunal de besta não pode me atrapalhar agora.

    No instante que ninguém mais pode me incomodar, volto toda a minha atenção a princesa.

    - Myris... -digo com asco em minha voz. - Um nome que eu propositalmente apaguei de minha memória, mas que nunca deveria sequer ter existido. -o tom pálido de sua pele começa a ficar roxo me obrigando a soltá-la e ela desaba no chão tossindo em desespero por ar. – Myris Illeana Lomanian, você deve sofrer lenta e dolorosamente por toda a dor e sofrimento que causou.

    Invoco chamas em minhas mãos e as faço ladearem o espaço minúsculo em que o ser desprezível está encolhido no chão tornando tudo mais interessante. Se ela se mexer um mísero centímetro na direção errada, terá sua carne nefasta queimada aos poucos.

    - Eu... Eu... Não sei... Não sei do que... Do que está falando. -ela gagueja em meio a lágrimas incessantes.

    Sem pensar, a agarro pelos cabelos e a arrasto através das chamas atirando contra a muralha invisível. Suas lágrimas um alimento para a minha ira.

    Sangue escorre de sua testa devido a pancada na muralha tingindo seu cabelo platinado de vermelho viçoso e sinto uma amarga satisfação nisso.

    - NÃO SABE? -grito ainda mais enfurecida.

    - EU NÃO SEI!!! -ela grita de volta, mas sua voz sai engasgada pelo choro agora muito mais audível. – Mas seja o que for, eu peço descul...

    Não sou capaz de ouvir seu pedido de desculpas vazio e desfiro uma bofetada em sua bela face com as costas de minha mão. A força do impacto do meu golpe a arremessa alguns metros para longe de mim, mas diminuo a distância entre nós quase em um piscar de olhos. Agora também há sangue de seu lábio ferido. E não é o suficiente para mim.

    Ela tenta se arrastar para longe de meu alcance feito um animal acuado, porém seu esforço é inútil. Segurando-a pelos braços a obrigo a ficar em pé e olhar bem em meus olhos.

    - PARE DE FINGIR TER UM CORAÇÃO QUE VOCÊ NÃO TEM! PARE DE FINGIR SER O QUE NÃO É!!!!

    Sua resposta é um grito estridente da mais pura agonia. Sem ter me dado conta, as minhas mãos estão em chamas. Sinto sua carne queimar sob os meus dedos de fogo, entretanto qualquer tipo de compaixão em mim desapareceu sem deixar vestígios e tudo devido a ela.

    - Eu realmente não sei do que está falando. -o ser desprezível choraminga. – Eu nunca tinha te visto antes do Vale da Morte...

    Uma gargalhada insana escapa das profundezas do meu âmago e a deixo cair aos meus pés.

    - Parece que um ser indigno como você é capaz de dizer ao menos uma verdade afinal. - agacho-me e a encaro novamente. – Eu sei que você realmente não tem ideia do que represento na sua vida imunda.

    - Então o que... Eu não entendo... -se fosse um animal, eu provavelmente sentiria pena ao som de sua lamúria entrecortada.

    Seguro seu queixo com firmeza ainda sem me importar com as chamas que consomem a pele até então imaculada.

    - Você realmente não sente nenhum arrependimento na vida, princesa?

    Nem um mísero fragmento de culpa passa pelos olhos dela e era o estopim que faltava para eu perder completamente o controle.

    Explodo em chamas violentas de puro ódio e meu corpo inteiro é consumido pelo fogo. Mais uma vez ela tenta se afastar de mim rastejando feito a criatura sem alma que é. Tudo o quero é fazê-la sofrer. Sofrer muito.

    Entretanto, antes que eu possa colocar novamente as minhas mãos nela, Rius, que de alguma forma conseguiu atravessar o meu escudo, se coloca a minha frente em sua forma humana, sem nada que a proteja de minhas chamas.

    - SAIA DO MEU CAMINHO, RIUS!

    - Não, Aédris! Por favor, você precisa se acalmar!

    - ME ACALMAR? NEM MESMO UM CERNI SERIA CAPAZ DE FAZER O QUE ELA FEZ! ATÉ UMA BRUXA TEM MAIS CORAÇÃO DO QUE ELA!!!!! ELA MERECER SOFRER!

    - Eu sei, Aédris. Eu sei...

    Como uma rajada de vento forte, são as lágrimas genuínas de Rius que varrem a minha insanidade e me fazem voltar a minha forma natural. Ver a dor em seus olhos e saber que ela não apenas entende a minha dor, mas também viveu essa dor comigo e Kadrahan. E sei que ela odeia Myris tanto quanto eu, entretanto ainda assim ela está me pedindo para parar. Não por se importar com o ser desprezível, mas por se importar comigo...

    E por essa razão, quando Menélope entra em meu campo de visão, não tento impedi-la do que sei que irá fazer.

     - Ainda não está na hora, criança. -sinto os seus dedos frios tocarem as minhas têmporas ao mesmo tempo que vejo os desenhos assimétricos de suas mãos começarem a brilhar de forma intensa. – Só estou fazendo o que me pediu há muito tempo... – ela diz com a sombra do que parece ser piedade em sua voz.

     Sinto uma dor excruciante, como se uma agulha em brasa estivesse sendo enfiada em meu cérebro e depois como se algo com raízes de aço estivesse sendo arrancado a força, mas prefiro essa dor física do que a dor que me dilacera a alma. 

    Em seguida, tudo a minha volta desaparece e sou acolhida pelo tranquilo mundo da inconsciência.




    Desperto nos braços de Kadrahan. Ele me abraça apertado mesmo durante seu sono visivelmente profundo. Como se tivesse medo que eu possa fugir se ele me soltar por um mero minuto. Ele está exausto. Emocionalmente exausto e a culpa é a minha. Ele teme por mim. Teme pelo meu bem estar e tem medo de me perder.

    Ele sem dúvidas sabe melhor do que eu que há formas muito mais terríveis de se perder alguém além da morte.

    Enquanto o observo dormir em um sono perturbado, analiso os fatos recentes em minha mente. É uma sensação muito estranha. Lembro de ter acordado antes e ido ao encontro da princesa como uma fera caçando a sua presa. Lembro de tudo o que fiz e disse a ela. E principalmente lembro de tudo o que senti. Um ódio imensurável que nunca achei ser capaz de sentir. Entretanto a dor que eu lutava a tanto custo para sufocar, era ainda maior que o sentimento de ódio. Uma dor tão insuportável, que me sentia a beira de um caminho sem volta para a loucura...

    O intrigante, porém, é que não me lembro o que me lembrei, o que provocou esses sentimentos tão intensos.

    É como uma imensa e complexa pintura, onde apenas uma parte no canto inferior da imagem foi minuciosamente recortada. A pintura não está mais perfeita, mas a falta daquele pedaço recortado não interfere na visão geral da imagem. Sei que o quadro não está como deveria, mas entendo de forma clara o que ele representa. Embora, talvez se observado de outro ângulo, o pedaço faltando possa ser essencial ao real significado do quadro...

    Confio nos sentimentos que tive e sei que embora a lembrança do que aconteceu em meu passado não esteja mais comigo, Myris é minha inimiga e merece sofrer. E sei com absoluta certeza que ela não é inocente.

     Do mesmo modo, entendo que as lembranças do meu passado não fazem bem a minha lucidez. Agora tudo está tão claro. Eu estava literalmente sendo consumida pela insanidade, perdendo o controle de minha própria mente. Foi por essa razão que me livrei dessas memórias que me causam tanta dor. Agora tudo faz sentindo. É necessária uma mente sã para dar cabo dos meus planos. Seja lá quais forem esses planos.

    Mas será que manter uma mente sã para atingir o sucesso desses planos era o meu único objetivo ao propositalmente apagar minhas memórias?

    - Kiihrien... – "pequenos", Kadrahan murmura como se respondesse à pergunta em minha mente.

    Por um momento espero vê-lo desperto me encarando, mas ele está apenas falando enquanto dorme.

    - Faahi kiihrien... – "nossos pequenos", continua ele.

    Kadrahan está tendo sonhos com os nossos pequenos arco-íris. E dada a sua expressão consternada, é um sonho ruim.

    Pensar em meus pequenos arco-íris me preocupa. O futuro deles é tão incerto com uma nuvem negra pairando sobre eles. Isto é, se eles chegarem a ter um futuro. Se eles sequer chegarem a conhecer esse mundo...

    Faahi kiihrien brrïss. Seja deus ou mortal, não vou permitir que ninguém faça mal aos nossos pequenos arco-íris. Seja quem for, aquele que...

    Espera! E se o motivo de eu ter sumido com minhas memórias não foi apenas pelo sucesso de minha vingança? Será que eu tive alguma visão dos fedelhos antes? Eu definitivamente precisarei de uma mente sã para poder lutar e protege-los...

    Khrratz! Vou acabar pirando de qualquer jeito de tanto pensar sobre isso!

    Se ao menos houvesse um jeito de eu ir me lembrando das coisas aos poucos ao invés de cair tudo de uma vez na minha cabeça. Preciso ir digerindo as informações do meu passado aos poucos. É a única solução que vejo para o meu problema.

    Epa!

    Tem um jeito sim! Aquele deus pirralho pode ser muito útil afinal.

    Com todo o cuidado ao ponto de até prender a minha respiração e movendo centímetro por centímetro, me esgueiro para fora dos braços de Kadrahan. Não posso correr o risco de acordá-lo ou ele tentará me impedir.

    Devo tê-lo deixado exaurido de tensão, já que ele nem se mexe quando saio da cama. Alguém de fora teria acreditado que sua exaustão era devida a preocupação com o assassinato que quase cometi, mas dado ao ódio impiedoso que ele dirigia ao monstro duas caras, duvido muito que seja esse o caso. Talvez a culpa por não ter tentado me impedir, não por ela, mas pelas possíveis vítimas colaterais, seja o que de fato sugou todos os resquícios de força de Kadrahan.

    Decidida a deixa-lo descansar um pouco e ir em busca de ao menos algumas respostas, me encaminho na ponta dos pés para a porta. Entretanto, está claro que o meu esperto marido não confia muito em mim, já que encontro a porta trancada.

    Não que uma fechadura possa me impedir de ir a algum lugar, mas arromba-la faria barulho e é a última coisa que quero.

    Será que se eu me concentrar em chamar o deus pirralho em pensamento ele pode me ouvir e me tirar do quarto através de sua mágica divina?

    Aquelas benditas portas para o passado podem me ajudar na medida certa e...






    Um clarão súbito me cega me desorientando por alguns segundos e vou ao chão protegendo meus olhos com os braços. A luz forte diminui e me vejo em um familiar espaço infinito de branco. Me coloco de pé novamente com a incômoda sensação de que estou deixando algo importante de lado, porém o pensamento se esvai de minha mente quando uma porta surge diante de mim e de modo instintivo levo a mão a maçaneta.

    Ao abrir a porta e atravessar para o outro lado, tudo o que consigo ver é neve e mais neve por todos os lados. 

    Sem pensar levo minhas mãos aos meus braços em uma tentativa de me aquecer e só então me dou conta que não sinto frio. Graças a todas as luas! Odeio o frio.

    Olho para cima e um fraco raio de um dos sóis briga para passar pelas nuvens excessivamente brancas e densas, mas é sem dúvidas uma batalha perdida para ele.

    Um rugido fúnebre do vento forte me sobressalta e noto que sua força inclina os pinheiros tingidos de neve quase até o chão. É o indício que uma nevasca se aproxima.

    O terreno onde me encontro é irregular e um pouco íngreme. A neve tomou conta de tudo e mal consigo distinguir as arvores e rochas em meu caminho. Entretanto o mais estranho é caminhar sem deixar rastros e não sentir meus pés afundando na neve. É uma sensação totalmente esquisita. Ainda assim não consigo evitar andar com cuidado para não acabar escorregando. Se eu estivesse mesmo nesse lugar, estaria odiando todo esse frio que circula ao meu redor.

    O vento cortante, ao tocar nos pingentes letais de gelo das folhas, emite um som que mais parece uma canção que sentencia a morte. É quase como se o vento fosse a voz do próprio Véehros cantando uma melodia nefasta. O Coração Gelado e a Deusa Mórbida devem ser melhores amigos, com certeza.

   E que raios de lugar é esse? Por que estou aqui afinal? E por que...?

    Khrratz! O frio mórbido deve estar congelando o meu cérebro afinal. Como não me dei conta logo de cara? O deus pirralho deve ter ouvido os apelos em meus pensamentos e me atendido. Ou será que de algum modo invoquei os poderes do deus da Lua Amarela e abri uma de suas portas para o passado? Zarmey! Tanto faz. A questão é em que momento do passado vim parar?

    Caminho pelo o que parece minutos intermináveis e quando me dou conta já anoiteceu. Apesar da forte nevasca já ter se iniciado, as luas Anil e Violeta se mostram gloriosas no céu noturno só para piorar a minha irritação por estar perdida no meio do nada. Que sorte a minha estar justamente no quinto ciclo. Não tenho ideia de "onde", mas ao menos tenho a vaga ideia de "quando". Muito útil, com certeza, penso com uma boa dose de ironia. O Senhor Gelo e a Deusa do Caixão são muito amiguinhos de fato.

    Dou mais alguns passos adiante e a luz de uma enorme fogueira chama a minha atenção. É difícil enxergar com clareza com toda a tempestade de neve diante de mim, mas algumas formas a distância começam a se definir.

    Um acampamento. Estou próxima a um acampamento. Há várias barracas e algumas tendas que estão quase sendo soterradas pelo cobertor de neve.

    A fogueira não irá durar muito com a neve intensa que cai sobre ela, por isso me apresso para não perder o acampamento de vista.

    Quando finalmente me aproximo, apesar de haver três enormes tendas entre as barracas, uma delas me atrai feito um ímã. É a que está no meio do acampamento, em uma estratégica posição, como se todos os outros a rodeassem apenas para protegê-la.

    Há luz em seu interior, certamente de uma lamparina, e vejo sombras agitadas se movimentando lá dentro.

    Não gosto nem um pouco da ideia de literalmente atravessar o tecido da tenda, mas como não consigo mover a cortina para entrar, mantendo os olhos bem fechados, é justamente o que faço.

    Sou recebida por um par de vozes infantis e o meu queixo vai ao chão quando reconheço as duas crianças diante de meus olhos.

    - Não quero e não vou! -afirma teimosamente uma menininha com longos cabelos vermelho-vinho.

    Ela está de braços cruzados e com a testa franzida em uma expressão carrancuda. Conheço muito bem os traços do rosto da criança. O vejo sempre quando me olho em um espelho. Não tenho dúvidas que a menininha sou eu quando era criança.

    - Náshy, o tio Faraahtz vai te deixar de castigo de novo! -afirma a versão criança de Rius com o seu característico ar de quem sempre sabe de tudo.

    - Já disse que não vou! -a mini-eu insiste erguendo o queixo em desafio.

    E antes que Rius consiga retrucar, um Antúrix no início da adolescência adentra a tenda, já ordenando:

    - Ah, vai sim, Náyshilah! -ele declara imperativo com uma bandeja em suas mãos. – Pare de agir como uma criança!

    - Eu sou uma criança, Projeto Fingido de Adulto! -ela diz revirando os olhos.

    - Nashy, é o que o tio Faraahtz quer! – Rius fala em um tom mais apaziguador. – Nem você pode desobedecer a ele.

    - Exatamente! -Antúrix reafirma colocando a bandeja no chão e distribuindo tigelas para cada um dos três. - Quando o nosso pai retornar pela manhã, nós quatro iremos para o Vale Flutuante das Montanhas de Gelo, quer você queira ou não!

    - Mas se já está frio aqui, imagine lá em cima no Iglu Flutuante? -a voz da mini-eu sai quase chorosa.

    - Nosso pai com certeza tem excelentes motivos para nos levar até lá e ele sempre sabe o que faz.

    - Vocês podem ir sem mim. – responde a mini-eu enquanto tira a tampa da tigela. – Eu espero vocês em algum lugar bem quente.

    - Sem chances, Náshy! Agora coma de uma vez!

    Minha versão infantil espia o líquido fumegante da tigela fazendo uma careta de desagrado.

    - Ah, não! Sopa de novo, não! Sopa não enche barriga!

    - Não reclama! Pelo menos temos o que comer! -Rius repreende com severidade a minha versão infantil e um nó aperta a minha garganta.

    Ela já viveu nas ruas e sabe o que é passar fome.

    Tanto o meu eu adulto quanto o meu eu criança baixamos a cabeça pela vergonha. Rius é mais nova e mesmo assim é ela a me ensinar preciosas lições de vida.

    - E sopa nos aquece nesse frio. -Antúrix completa.

    - Me desculpem. – a mini-eu pede parecendo realmente envergonhada por reclamar da comida.

    E Kadrahan que tem mania de dizer que não sei me desculpar...

    Sem perderem mais tempo, os três começam a tomar a sopa e a mini-eu finge um entusiasmo exagerado para compensar sua falta de modos.

    - A sopa está deliciosa, Túri! -quem ela pensa que está engando? – Está tão gostosa que quero mais! -ainda bem que aprendi a mentir melhor com tempo. - Será que poderia me trazer mais, por favor?

    Bem, sopa realmente não enche barriga. Certamente só pedi para repetir em uma tentativa de preencher um pouco mais o buraco em meu estomago.

    E Antúrix, sempre muito prestativo, se levanta rapidamente para me atender.

    - É claro, irmãzinha.

    Ele já está na saída da tenda quando se volta de repente, faz a mini-eu ficar de pé, pega um casaco jogado em um canto e começa a vesti-la.

    - Para uma pirralha que vive reclamando que odeia o frio, você se agasalha muito mal! -ele repreende enquanto tenta obriga-la a passar um dos braços pela manga do casaco de pele de carneiro.

    - Não quero! -ela protesta puxando o braço e dando trabalho a Antúrix em vesti-la. – Não vou usar isso!

    Acho que fui mimada demais quando criança. Tenho que tomar cuidado para não fazer o mesmo com os fedelhos.

    - Se o nosso pai chegar amanhã e encontrar você tão mal agasalhada, sou eu quem vou levar bronca!

   - É divertido ver você levando bronca do tio Faraahtz. -Rius comenta com um risinho.

    Ele lança um olhar severo a Rius e volta a se dedicar em sua árdua tarefa de vestir a garotinha temperamental que já fui um dia.

    Certo, talvez eu ainda seja um pouco temperamental. Talvez mais que um pouco apenas. Talvez muito ainda...

    Reparando agora, a mini-eu realmente está muito mal agasalhada. Enquanto Rius e Antúrix estão usando grossos casacos de pele, a mini-eu está vestindo apenas um casaco fino de algodão. 

    Se bem que parando para pensar, por mais que o frio me incomode, o fato de literalmente poder me incendiar, deve me tornar mais tolerante a baixas temperaturas do que pessoas normais.

    - Não seja teimosa, Náyshilah! -continua Antúrix determinado.

    - Não gosto de nada que dificulte meus movimentos! -não há como negar que há certa lógica em meu argumento.

    - Você não vai precisar se preocupar com movimentos já que ficará quietinha dormindo a noite inteira.

    Um brilho culpado passa pelos olhos da mini-eu, mas ela rapidamente desvia o olhar sem dar tempo a Antúrix ou a Rius de perceber que está tramando alguma coisa.

    Epa!

    Ela acaba decidindo colaborar, certamente pela culpa, permitindo assim que Antúrix consiga vesti-la e fechar até o último botão do grosso casaco.

    - Acho que ainda está faltando alguma coisa... -ele diz analisando-a atentamente.

    - Não consigo me mexer nessa coisa! -a mini-eu reclama com a cara amarrada.

    - Está parecendo uma boneca de batata! -zomba Rius gargalhando alto.

    Antúrix ignora as duas e volta a se aproximar. Então ele puxa o capuz do casaco e envolve quase que completamente a cabeça da mini-eu.

    - Pronto! -Antúrix sorri de orelha a orelha muito satisfeito com o seu ótimo desempenho de irmão mais velho. – Agora me espere que eu vou buscar mais so...

    - Não precisa se preocupar, Antúrix! -interrompe um homem de sorriso amistoso que adentra a tenda seguido por um garoto com cara de poucos amigos. – Eu sabia que a nossa Pequena Tempestade com certeza iria querer repetir, por isso pedi ao Velly para trazer mais uma porção para cada.

    - Muito obrigado, tio Niiehx. -meu irmão agradece. – Essa gulosa tem um buraco sem fundo no lugar do estomago.

    - Mas nós também adoramos a sua comida, tio Niiehx. -Rius declara com entusiasmo. – E muito obrigada a você também, Velly.

    - Coloquei pedaços de carne de corça nessas porções, Náshy. -o tal Niiehx informa com uma piscadela.

    - Oba! Tio Niiehx, eu adoro a sua comida mais do que todos! -a mini-eu afirma com os olhos brilhando de alegria com certeza pensando na carne. – E não tenho um buraco sem fundo na barriga não. -ela faz questão de dizer enquanto briga para desfazer o nó do capuz do casaco.

     - E assim que terminarem de jantar, quero conferir a lição de vocês. -anuncia o homem. – Todas as tarefas devem estar completas antes do pai de vocês chegar amanhã.

    - Khrratz! -resmunga Antúrix. – Não consegui resolver aquele monte de contas!

    - Precisa ser bom em matemática para fazer suas apostas! -Rius o provoca com um risinho debochado

    - Eu sou muito bom em somar moedas de ouro! -ele retruca.

    - Você é muito bom em trapacear, isso sim Antúrix! -constata o homem com uma gargalhada.

    As provocações continuam enquanto a mini-eu está alheia a tudo obviamente só pensando na carne de corça.

    Ao mesmo tempo, o garoto que deve ter mais ou menos a idade de Antúrix e não parece nem um pouco contente com a tarefa, caminha com a bandeja em direção a mini-eu.

    Ele tira a tampa das tigelas, e quando pensa que ninguém está vendo, já que a mini-eu abaixou a cabeça para desabotoar os botões do casaco, ele propositalmente derruba as tigelas com os líquidos fumegantes em cima dela. Diretamente em seu rosto.

    Sem pensar, me movo na tentativa inútil de fazer alguma coisa, porém a mini-eu é mais rápida. Em um ato de reflexo surpreendente para uma criança, no último segundo ela consegue se esquivar e o líquido quente apenas atinge o casaco e o seu cabelo. Meu lindo e precioso cabelo.

    Os olhos que há um instante estavam um cinza límpido, quase brancos, mudam drasticamente para um tom escuro de tempestade.

     Então meus olhos realmente mudam de cor quando fico furiosa? Bem, não é como se eu ficasse me olhando no espelho nessas horas...

    - Velly, o que você fez? -Niiehx e os outros correm para socorrer a mini-eu.

     Rius se posta a frente da mini-eu em uma postura agressiva e tenho certeza que escutei um rosnado. Já Antúrix se apressa em verificar se a mini-eu não sofreu queimaduras.

    - Pai, eu não...

    - Filho, você...

    - Foi sem querer, tio Niiehx. -a mini-eu mente, pois tenho certeza que ela viu que não foi um acidente. – Não foi, Velly?

    - É claro. -o garoto responde seco.

    - Velly e eu somos grandes amigos, não é, Velly? -a mini eu diz com um falso sorriso doce.

    E ele não se dá ao trabalho de responder.

    - Você precisa ser mais cuidadoso nas coisas que faz, meu filho. -o homem repreende com certa severidade em sua voz. – Náyshilah poderia ter se queimado gravemente.

    - Prometo que serei mais cuidadoso, meu pai.

    - Tem certeza de que não se queimou, Náshy? -mesmo depois de quase ter revirado a menina do avesso, Antúrix ainda não parece convencido.

     - Não, Túri. Estou bem. -a mini-eu responde terminando de arrancar o casaco. – Só o meu cabelo que está cheio de sopa. -sua voz sai como um choramingo e ela pega na ponta de uma mecha com uma careta de nojo.

     - Vem, Náyshilah. -Niiehx estende os braços e pega a mini-eu em seu colo. – Vamos esquentar água para lavar o seu cabelo.

     Rius segue os dois, mas não sem antes lançar um olhar ameaçador na direção do garoto Velly.

     Já a mini-eu ostenta um sorriso tão grande por cima do ombro do tio, que qualquer um poderia jurar se tratar da mais amável das crianças. Mas eu sei muito bem o significado desse sorriso. Haverá retaliação. E nos termos dela.

    Se os fedelhos me puxarem, estou seriamente encrencada.

    Por todas as luas, pelo bem do equilíbrio no universo, que essas crianças puxem ao pai. E...

    Balanço a cabeça para deixar os meus devaneios de lado e me concentrar no presente. Ou melhor, no passado. Ah, nem sei mais.

    E não tenho nenhuma dificuldade em prestar atenção no momento, pois tão logo os dois garotos ficam sozinhos na tenda, Antúrix desfere um soco carregado de ódio no garoto Velly. Ele até tenta devolver o soco, mas o meu irmão impede o segurando pela gola de seu casaco.

     - A próxima vez que tentar machucar a minha irmã, eu vou...

     - Ela não é sua irmã e muito menos deveria estar entre nós! -o moleque cospe as palavras ácidas gritando na cara de Antúrix ao mesmo tempo que se livra das mãos de meu irmão. – O nosso líder nunca deveria...

     O punho de Antúrix novamente voa na direção do garoto e o acerta com destreza. Um novo golpe é seguido do primeiro, mas Velly se esquiva habilmente e consegue atingir um chute no joelho do meu irmão que vai ao chão.

     - Você pode ser honesto comigo, Antúrix. -Velly diz com malícia enquanto limpa o sangue que escorre de sua boca. – Eu sei que você pensa como eu!

    - Eu não...

     - Você também acha que os campos de batalhas não são para garotas. -o garoto afirma enquanto recua um passo ao ver o meu irmão se levantar com a agilidade de um felino. – Nosso Líder cometeu o primeiro erro ao trazer uma menina para viver entre os Darätzsalah, mas o seu maior erro foi tê-la nomeado como sua herdeira!

    - Não importa o que eu penso e muito menos o que você pensa! -Antúrix retruca. – Não cabe a nós julgamos as decisões de meu pai.

     Vendo que Antúrix não discordou dele sobre ter uma garota nos campos de batalhas, o garoto Velly deixa um sorriso vitorioso se expandir em sua face.

     É nesse exato momento que tomo para mim a missão de transformar Sissy em umas das melhores guerreiras Darätzsalah que esse mundo já viu. Vai ser muito bem feito para o idiota machista do meu irmão.

     - Antúrix, você tem que dizer o que pensa ao nosso líder! -o garoto insiste com motivação renovada. – Sendo ele seu pai, há uma grande chance de ele ouvi-lo.

    - Acha que não sei o que realmente se passa na sua cabeça, Velly? Posso dar a impressão que só sei usar os punhos, mas também sei muito bem usar o meu cérebro. -meu irmão volta a se aproximar do moleque, dessa vez com o olhar ainda mais feroz. – Se você conseguir se livrar da minha irmã, tenho certeza que serei o próximo da sua lista. Se o meu pai não tiver herdeiros, o próximo na linha de sucessão a líder dos Darätzsalah será o seu braço direito, Niiehx, que por um acaso é o seu pai.

    - Antúrix, você é meu amigo, eu não...

    - Só vou te avisar uma coisa, Velly. Nem mesmo o meu pai, que tem o coração mais piedoso de todos, será capaz de te perdoar se fizer algum mal a uma criança de forma tão covarde, principalmente a Náyshilah.

     - Ela é uma aberração! -grita o garoto sem se intimidar. – Todos sabem que ela só pode ser filha de uma bruxa!

     Ahhh, se esse moleque tivesse noção do quanto adoro ser chamada de aberração...

    - Não se atreva a chamar a minha irmã de bruxa ou definitivamente serei eu a me livrar de você!

    - Que criança normal faria o chão tremer toda vez que tem um pesadelo? Ela é uma aberração sim! E é a missão dos Darätzsalah livrar a humanidade de criaturas como ela! Náyshilah não passa de...

    Outro soco certeiro de Antúrix vai de encontro ao queixo do moleque.

     - Continue falando assim e nem mesmo o respeito que tenho pelo seu pai vai me impedir de fazer com que você seja banido de nosso clã, fui claro?

    E sem esperar por uma resposta do garoto Velly, Antúrix sai da tenda o deixando para trás ainda prostrado no chão.

    Observo o garoto se levantar com lentidão e o que vejo em seu olhar, me faz recuar um passo involuntariamente.

    Já vi os mais variados tipos de raiva e fúria nos olhares das pessoas, mas o ódio frio e a ausência de qualquer outro sentimento daquele garoto me causam medo. E isso me assusta mais ainda, já que dificilmente algo consegue me amedrontar.

    E o que aconteceu com esse garoto? Onde ele está no meu presente? Que tipo de homem ele se tornou?

    O garoto também deixa a tenda e me vejo sozinha ali no que parece horas e mais horas sem fim. Então finalmente Rius e a mini-eu voltam juntamente com Antúrix e se dedicam a terminarem suas lições.

    A mini-eu é a primeira a terminar tudo e Rius logo em seguida. Por fim, Antúrix termina também e pouco depois, como o prometido, Niiehx entra na tenda e passa a corrigir as lições de todos.

    Incrivelmente sou a única a não cometer erros em nenhuma das tarefas. Rius errou algumas questões sobre plantas e Antúrix, apesar de ter reclamado de números, acertou todas as contas e errou somente questões relativas a escrita Darätzsalah.

    Estou impressionada comigo mesma. Eu realmente já fui uma menina estudiosa um dia! Queria ver o que os meus colegas do Centro de Aprendizado diriam se me vissem quando pequena. Eles que dizem que até criancinhas são mais inteligentes do que eu, só porque não consigo ler aquelas malditas letras do idioma de Tratis.

    Definitivamente tenho que dar um jeito de aprender aquele maldito alfabeto de uma vez por todas. Kadrahan vai ter que me ensinar o tal método para estrangeiros que ele mencionou. E... E mais uma vez me pego divagando.

    Depois que as lições estão devidamente corrigidas, Niiehx e Antúrix deixam a tenda e as meninas se preparam para dormir.

    Rius adormece rapidamente. Mal ela encosta a cabeça em seu travesseiro e sou capaz de escutar o ressonar profundo de sua respiração adormecida. Nessas horas minha amiga sempre me lembra um gato, que é capaz de adormecer instantaneamente em qualquer lugar e a qualquer instante. Como ela pode se declarar a minha guardiã se pega no sono assim tão facilmente? Bem, é certo que ela tem a audição e o olfato muito apurados, mas será que esses dons são uteis quando se está dormindo?

    Como a mini-eu mais cedo estava com uma cara de quem está planejando aprontar algo, decido ficar de olho nela. É bom ter uma ideia das possíveis travessuras dos fedelhos afinal de contas.

    Cerca de uma hora e meia depois, tão certo quanto o nascer dos dois sóis, a mini-eu se levanta, pega uma trouxa escondida sob algumas almofadas e ao menos tem a sensatez de colocar um outro casaco de pele antes de sair na calada da noite congelante.

     A mini-eu se esgueira sorrateiramente pelas sombras do acampamento e a sigo. Quando ela já está quase fora do perímetro, a mini-eu habilmente espera o momento certo de ficar fora do alcance das vistas e dos ouvidos da sentinela para dar continuidade a sua fuga sem problemas.

    Eu definitivamente era uma peste quando criança! Dez minutos depois de cruzar o perímetro do acampamento ela ainda continua andando. Pelo menos a mini-eu não poderá ir muito longe a pé nessa nevasca e... Khrratz! A peste deixou um cavalo amarrado em uma árvore mais cedo! Um cavalo que está muito melhor aquecido do que ela, a julgar pela enorme manta de pele que cobre o seu lombo.

    Zarmey! Zarmey! Mil vezes zarmey! Se os fedelhos me puxarem, estou seriamente encrencada de verdade! Vou amarrá-los ao pé da cama todas as noites na hora de dormir e... Khrratz! Dormimos em tendas sem camas! Já sei! Vou colocar o Kadrahan para vigiar os filhos dele a noite inteira! E se alguma sentinela Darätzsalah foi trapaceado por crianças, vai passar o resto da vida limpando esterco de cavalos!

    Depois de se ajeitar no lombo do cavalo, a peste coloca a sua montaria em movimento e rapidamente a vejo desaparecer entre o mar de neve.

    Cogito a possibilidade de segui-la, mas o pensamento não dura nem meio minuto. Se estou aqui hoje, é porque sobrevivi a minha falta de juízo infantil nessa fuga descabida.

    Não consigo evitar bufar impacientemente. Essa lembrança da minha infância não está me parecendo algo muito útil para o meu futuro e esse lugar cheio de neve já está me dando nos nervos.

    Olho ao redor procurando umas das misteriosos portas que me trouxe até o passado, mas nada encontro. Não tenho ideia de como esse negócio de visitar o passado através de portas funciona. Onde está o deus pirralho quando preciso da orientação dele?

    Sem muita opção, sento-me ao pé da mesma arvore que pouco antes estava amarrado o cavalo e sem que eu me dê conta adormeço profundamente.






     Desperto com algum alarme disparado pelo meu sexto sentido. Não ouço nenhum barulho e muito menos sou capaz de ver qualquer coisa, mas não tenho dúvidas que alguém se aproxima.

    Por puro reflexo, me coloco em posição de ataque, embora a essa altura seja um tanto obvio que ninguém do passado é capaz de me ver.

     Raios de ambos os sóis tentam timidamente iluminar o que já deve ser metade da manhã, mas são o suficiente para eu distinguir um homem a cavalo vindo em minha direção.

    Não consigo ver o rosto do homem que está escondido sob o capuz de um grosso casaco de peles, entretanto é impressionante como homem e animal estão em sincronia em seus movimentos silenciosos.

    Inesperadamente o homem puxa as rédeas do cavalo forçando o animal a parar. Ele desmonta e sua cabeça se movimenta para os lados como se estivesse procurando por algo enquanto sua mão direita já desembainhou a espada. Será que de algum modo ele é capaz de sentir a minha presença?

     E é então que a minha respiração congela como tudo ao meu redor. O homem baixa o capuz e a minha alma chora por algo que minha mente não reconhece, mas que o meu coração grita de saudades.

    Lágrimas embaçam a minha visão enquanto olhos idênticos ao meu me encaram sem de fato me ver. Embora o meu cérebro ainda seja incapaz de trazer de volta as lembranças, o meu coração reconheceria esse olhar carregado de bondade infinita mesmo em outras vidas. O guerreiro a minha frente é ninguém menos do que Faraahtz, meu pai. Meu eternamente amado pai.

    Com dedos trêmulos estendo a minha mão para tocar o seu rosto, mas recuo no último instante. O medo de não sentir o seu calor através do meu toque sobrepujando a minha ânsia que ele seja real.

     Ainda parecendo alarmado e observando atentamente tudo ao seu redor, meu pai segue o restante do caminho a pé puxando as rédeas do cavalo com a espada em riste. A ausência de sentinelas no perímetro deve tê-lo alertado de algo está errado.

     O sigo a uma pequena distância e embora seja eu o espectro aqui, é ele quem parece flutuar pela neve sem fazer um único som.

     Quando chegamos ao acampamento, tudo está um caos. Não tenho dúvidas que já notaram a ausência da mini-eu.

    Niiehx se aproxima de meu pai tão logo o vê, entretanto antes que ele tenha a chance de explicar o que aconteceu, meu pai se abaixa para pegar Rius no colo que foi correndo ao encontro dele.

    - É tudo culpa minha, tio Faraahtz! -ela diz em meio a soluços de choro. – Náshy fugiu à noite e a culpa é toda minha! Como guardiã dela eu deveria ter vigiado ela melhor!

     - Não, a culpa é minha, meu pai! – Antúrix surge diante de meu pai de cabeça baixa. – Eu deveria ter notado que Náyshilah estava aprontando algo.

     - Perdão, meu senhor! – foi a vez de Niiehx assumir a culpa e para isso se dirigiu ao meu pai com toda a formalidade de um guerreiro Darätzsalah que cometeu um erro grave. – Era a minha responsabilidade manter as crianças seguras e não tirar o olho delas.

    - Não, eu assumo toda culpa e qualquer punição que julgar adequada, meu senhor. – se apresenta o sentinela que fazia a vigia no perímetro por onde a mini-eu fugiu.

    - A culpa não é de ninguém a não ser da imprudente da minha filha! -ele declara de forma justa. – Preparem os cavalos! Iremos nos dividir em grupos e faremos uma busca completa nas mediações. Náyshilah não pode ter ido muito longe com toda essa nevasca.

    - Tio, eu tentei seguir o cheiro da Náshy, mas a neve apagou todo o rastro dela! – Rius não consegue parar de chorar. – Eu vou tentar de novo! Vou tentar virar algo que voa e dessa vez acho que vou conseguir e...

     - Minha filha, você não precisa tentar nada! -meu pai diz dando tapinhas nas costas de Rius ao mesmo tempo que a balança em seus braços para acalmá-la. – Não quero minhas duas filhas perdidas na neve.

    - Mas tio...

    - Não se preocupe, Rius! Iremos encontrar a sua irmã.

    - Pai.. – Antúrix começa, mas meu pai o interrompe.

    - Você também fica, Antúrix. -ele ordena. – Fique e cuide de Rius.

    Com todo carinho e preocupação, meu pai coloca Rius de volta ao chão e delicadamente limpa suas lágrimas enquanto afirma:

    - Não chore, minha filha. Tudo vai ficar bem. Eu prometo.

     Rius consente com a cabeça e se esforça para não derramar mais lágrimas.

     - Agora me prometa que não tentará fazer nada estúpido enquanto eu estive fora. -ele pede se abaixando para ficar da altura dela. – Não quero ter que me preocupar com você também.

    - Prometo em nome das Sete Luas e Suas Divindades!

    Satisfeito, ele beija sua testa e começa a distribuir ordens para todos. Que grupo seguirá por qual direção e quais guerreiros permanecerão no acampamento para manter os mais jovens do clã em segurança.

    Não quero sair do lado do meu pai, mas ainda não sei como funciona direito esse negócio de rever o passado como espectro e não tenho ideia de como acompanha-lo a cavalo.

    Horas e mais horas se passam e nada de ninguém voltar. Não estou nem um pouco preocupada, porque seja lá o que aconteceu, tudo ficou bem, caso contrário não teria chegado a minha vida adulta. Porém Rius continua chorosa e Antúrix segue sem sucesso em sua tentativa de conseguir animá-la.

     Ao cair da noite, todos regressam ao acampamento, pois a nevasca se intensificou ainda mais. Todos estão abatidos e preocupados, principalmente o meu pai.

    Rius se desespera ao vê-lo sem mim e ele tem muito trabalho em acalmá-la, mas depois de finalmente fazê-la dormir, meu pai se distancia um pouco do acampamento.

    Quando já está longe o suficiente dos ouvidos de todos, ele se larga de joelhos na neve infinita e olha em desespero ao céu escondido como se fosse rezar.

     Entretanto, sua oração não é silenciosa:

    - Ráahra, alguma coisa mais terrível do que essa nevasca deve ter acontecido a nossa filha! -o medo é visível em seus olhos e não é um sentimento comum de se ver em um guerreiro Darätzsalah. – Algo maligno a está escondendo de mim. Por favor, encontre a nossa menina, a proteja e a traga de volta para os meus braços. Eu lhe suplico, proteja a nossa filha!

     Fico imóvel na esperança que minha mãe irá se materializar perante o meu pai para atender suas preces, mas é uma esperança vã.

     A velha não se dá ao trabalho nem de aparecer para o homem que supostamente ama.

    Como é que alguém conseguia negar qualquer coisa ao meu pai? Um homem tão bom e puro de coração. Como ela foi capaz de vê-lo naquele estado de desespero e não o consolar?

    Ele leva as mãos ao rosto e através de seus dedos, vejo tanta dor e preocupação que sinto sua dor em mim. E também sinto culpa. Ele está sofrendo e foi a minha teimosia infantil que causou toda essa angústia.

    Ajoelho-me ao lado de meu pai na neve e desejo com todo o meu coração ser capaz de abraça-lo e dizer a ele que tudo vai ficar bem. Que eu fiquei bem. Que sinto sua falta e que estou ao seu lado agora. E pedir desculpas por fazê-lo sofrer.

    Um brilho, a princípio suave, chama a minha atenção as costas de meu pai e uma porta agora familiar se materializa mais uma vez. Sei o que devo fazer, mas reluto em deixa-lo.

    Com grande dificuldade, me obrigo a me afastar daquele que em meu coração sei que foi o homem mais importante da minha vida. O meu pai. O meu herói.

    Caminho até a porta e olho por sobre o ombro antes de partir.

   - Isso ainda não é um adeus, pai. -digo como se ele fosse capaz de me ouvir. – Prometo que irei voltar.

    Ao atravessar a barreira da porta brilhante, me vejo novamente no corredor de branco infinito com portas e mais portas enfileiradas uma ao lado da outra.

    - Qual porta devo escolher agora? -indago para o vazio. – Essas benditas portas deveriam ser numeradas por capítulos!

    Acabo escolhendo a porta que penso ser a que estava ao lado da que saí, mas não tenho muita certeza disso até atravessá-la e me ver rodeada de mais neve.

    - Khrratz! Neve de novo?

    Solto uma torrente de xingamentos em todos os idiomas que me lembro, mas paro de reclamar quando uma figura pequena de cabelos vermelhos se destoa em meio a brancura gélida.

    É necessário apenas alguns passos adiante e confirmo que se trata da mini-eu. Não vejo seu cavalo em lugar nenhum. Onde será que o animal foi parar? Em suas mãos ela carrega um pequeno fardo de folhas secas e o joga dentro de uma fresta de uma árvore. O buraco não parece ser muito grande, mas parece ser o suficiente para caber uma criança pequena como ela, além de ser uma ótima proteção contra o frio.

    Em seguida ela volta ao seu empenho de catar mais folhas secas, o que não é nada fácil, já que com a nevasca, as folhas remanescentes estão escondidas sob a neve. É um processo lento e demorado, mas parece que a teimosia serve para alguma coisa afinal. Ela repete a mesma coisa por mais algumas vezes até julgar ter o suficiente para aquecer o chão cru do interior da arvore.

    Entretanto ela ainda não parece satisfeita e tira o próprio casaco de pele de carneiro colocando para forrar o chão. Se o objetivo é mantê-la aquecida, não entendo porque ela fez isso.

     Enquanto espio o interior da arvore para ver melhor o resultado de sua obra, a mini-eu se afasta em direção a umas rochas. Ela se contorce toda para se enfiar no meio delas atiçando a minha curiosidade e depois de alguns minutos reaparece com dois filhotes de raposa nos braços seguida pela mamãe raposa.

    Com toda a delicadeza do mundo ela coloca os filhotes dentro do buraco da árvore sobre o seu casaco quentinho.

    - Pronto, mamãe raposa! -ela diz com um sorriso de orelha a orelha. – Você e seus filhotes ficarão mais quentinhos e seguros aí dentro.

     A raposa se aproxima e lambe a mão direita da mini-eu e sou capaz de jurar que a grata mamãe olhou para ela com um sorriso em seu focinho antes de se juntar aos seus filhotes.

     Nós duas nos agachamos lado a lado e ficamos por um tempo apreciando os filhotes sendo amamentados pelo lindo animal.

     - Será que não é melhor pegar mais folhas? -pergunto a mini-eu esquecendo que ela não pode me ouvir. – Também seria melhor colocar umas pedras para dificultar a entrada de outros predadores.

    Provando que de fato somos a mesma pessoa, a mini-eu se levanta e faz exatamente o que sugeri colocando algumas pedras na fresta da arvore deixando espaço suficiente apenas para a raposa passar.

    - Os filhotes têm o leite da mãe para se alimentarem, mas ela não poderá sair para caçar e alimentar a si mesma. -pondero me virando para a mini-eu.

    - Os seus bebês têm leite, mas o que você vai comer, mamãe raposa? -ela espelha minhas preocupações.

    Sem hesitar, a mini-eu alcança a sua trouxa e tira vários pedaços de carne seca e deixa tudo no novo lar da raposa.

    - Acho que agora eles ficarão bem!

    - Acho que agora eles ficarão bem!

     Dizemos ao mesmo tempo ecoando os pensamentos uma da outra. Isso seria estranho se não fosse engraçado.

    Ainda estou rindo por perceber que não mudei muito a forma de pensar desde que era criança quando uma voz as nossas costas nos faz pular de susto.

    - Uma criança não deveria estar aqui sozinha.

     A dona da voz é uma senhora de meia idade, os longos cabelos loiros já com algumas mechas acinzentadas e seus olhos são azuis da cor do céu. Seus trajes são simplórios. Um vestido grosso marrom de mangas longas e um xale espesso envolve seus braços. Apesar de não ser mais tão jovem, tem um rosto muito bonito e há algo de familiar nela.

    Epa!

    Ela facilmente poderia ser uma versão mais jovem de Snotra. Será que é ela? Será que já nos conhecíamos desde que eu era criança?

    - Uma senhora também não deveria estar aqui no meio de uma nevasca. -retruca a mini-eu.

    - Eu não sou uma criança. -a senhora constata o obvio sem sorrir.

    - Eu sei me defender e você? -a mini-eu responde com arrogância.

    Sou sempre assim tão presunçosa?

    - Eu sei alguns truques e além do mais, eu moro aqui.

   - Você mora na neve? – a mini-eu gesticula indicando com os braços toda a neve ao redor.

    A senhora a ignora e começa a andar rumo a leste. A barra de seu grosso vestido fazendo desenhos ao ser arrastada na neve.

    A seguimos com os olhos e para a nossa surpresa, não muito adiante, é possível avistarmos uma pequena cabana de madeira. Uma cabana que poderia jurar que não estava ali alguns minutos antes.

    Uma ruguinha de desconfiança surge na testa da mini-eu. Tenho certeza que ela também não viu nenhuma cabana enquanto buscava folhas secas para a raposa e seus filhotes.

    Se bem que a nevasca diminuiu um pouco e dada a sua intensidade de momentos atrás, não era mesmo possível ver muitos metros à frente.

    - Não deixarei a minha porta aberta por muito tempo, então é melhor se apressar, criança. -a senhora se faz ouvir entre os rugidos agoniante do vento forte.

    Entre o frio que tanto odeia e a promessa de paredes quentinhas, a mini-eu não pensou duas vezes antes de correr atrás da velha. Eu com certeza não teria feito escolha diferente.

    Já dentro da casa, ela não faz questão de esconder a curiosidade e fica olhando tudo ao seu redor.

    O lugar é muito simples, rústico e se parece muito com a pequena cabana onde vivo com a Snotra. Muito intrigante.

    - Nunca esteve em uma casa antes, menina? -a senhora pergunta enquanto tira o que parece ser um pão do forno a lenha.

    - Não, nunca. -a mini-eu responde com sinceridade. – Já estive em algumas hospedarias, mas é a primeira vez que estou em uma casa de verdade.

    - Então sinta-se em casa. -com destreza, a senhora corta várias fatias do pão e passa o que acredito ser creme de priss.

    A mini-eu não se faz de rogada e fuça tudo na pequena casa. Entra em todos os três únicos cômodos e coloca as mãos em todas as coisas que vê pela frente.

    - Você tem um quarto só seu! -ela grita para ser ouvida. – Um dia quero ter um quarto só meu também.

    - Venha comer, criança. -a senhora a chama da cozinha. – tem pão e acabei de fazer um chá quente para você se aquecer.

    - O que é isso? -a mini-eu volta a cozinha e se senta a mesa de duas cadeiras com um objeto assustadoramente familiar em suas mãos.

    E os mesmos sentimentos esmagadores de antes me assaltam tão logo reconheço o pequeno triangulo espelhado. O triangulo com o desenho da estrela desforme de sete pontas. O mesmo desenho marcado no corpo de Kadrahan.

    Por que é tão difícil respirar sempre que vejo essa imagem?

    Uma coisa é certa. A minha versão criança não compartilha o mesmo sentimento com o meu eu adulto. Muito pelo contrário. Ela está fascinada pelo objeto misterioso. Está claro que ela ainda não sabe o que tem em mãos.

    - Isso é uma arma muito poderosa que pode causar um mal imensurável, criança. -a mulher não poderia demonstrar maior indiferença ao falar de uma suposta arma tão perigosa enquanto serve uma generosa xícara de chá. – Uma arma que pode trazer muita destruição, dor e sofrimento.

    - Uma arma? Eu conheço armas. Isso não se parece em nada com uma arma, muito menos uma perigosa.

    A mini eu pega a xícara fumegante de chá e bebe com clara satisfação ao sentir o seu corpo se aquecer com o líquido quente.

    - Aprenda bem essa primeira lição que irei lhe dar, criança. As aparências muitas vezes enganam. -a mulher diz empurrando um prato com duas fatias de pão com creme de priss a mini-eu. – Assim como algo belo por fora pode ser horrível em seu interior, algo que aparenta ser inofensivo também pode ser letal.

    As palavras da mulher são sábias, mas desconfio que ela perdeu a atenção da mini-eu no momento em que lhe entregou a comida.

    - Que delícia! -a mini-eu fala com a boca cheia. – Pão apimentado com creme doce! Que doce é esse?

    - É creme de priss, entretanto...

    - É muito delicioso! Virou a minha comida preferida!

    - Criança, você deveria prestar atenção no que estou dizendo e...

    - Então você pode me dar essa arma? -pergunta a mini-eu depois de devorar quase de uma vez a primeira fatia. – Uma arma tão perigosa como essa vai ficar mais segura com os Darätzsalah.

     A mulher sorri de forma enigmática, talvez satisfeita por a mini-eu ter prestado atenção no fim das contas.

    - Já interferi mais do que deveria, criança. -ela responde embora pareça estar considerando a proposta da mini-eu. – Não posso lhe dar um artefato tão poderoso, mas posso lhe dar o conhecimento sobre ele.

    - Meu pai sempre diz que conhecimento é o bem mais precioso que alguém pode adquirir e a única coisa que ninguém consegue nos tirar. -a mini-eu recita como se já tivesse ouvido a frase tantas vezes que já decorou palavra por palavra.

    - E ele está certo, criança.

    A mini-eu termina a segunda fatia de pão e se estica para cortar mais um pedaço e lambuzar com muito creme de priss.

    - Pode falar, dona.! -mastiga, mastiga. – Estou ouvindo.

    - Olhe bem para este artefato, o grave em sua memória e um dia busque por ele. -a mulher adverte a mini-eu. – E lembre-se, do mesmo modo que isto pode causar mal, também pode ser a cura.

    - Não estou entendendo!

    - O veneno de uma cobra é usado para produzir o antídoto, sabe disso, não?

    - Sei.

    - Essa arma funciona do mesmo modo.

    - Faz sentido. -pensativa, a mini-eu assente com a cabeça também.

    - Havia mais algumas coisas que pretendia lhe ensinar hoje, porque esta talvez seja a minha única oportunidade, criança. –a mulher a encara com uma intensidade repleta de sabedoria. – Entretanto, não vejo mais necessidade.

    - Por que não? -a mini-eu questiona movida apenas pela curiosidade infantil de quem teve algo negado.

    - Assim como este pão apimentado e o doce de priss, a vida também pode ser doce e amarga. –o primeiro sorriso genuíno destoa no rosto da mulher. – Você é a primeira a gostar dessa combinação. Irá se sair bem sozinha.

    - Por que as pessoas não gostam de pão apimentado com creme de priss? É tão gostoso!

    - Nem mesmo eu tenho a resposta para esta pergunta, criança.

    - As pessoas não sabem o que estão perdendo... -murmurou a mini-eu com a boca cheia mais uma vez.

    A misteriosa mulher a olhou como se refletisse profundamente a cada palavra dita pela mini-eu e não soubesse o que fazer com as conclusões que alcançava.

    - Já está na hora de ir, criança. -ordena a senhora de repente assim que a mini-eu engoliu o último pedaço de seu pão.

    A mini-eu olha em direção a janela e depois incrédula para a mulher.

    - Vai mesmo me mandar embora com toda essa neve? Não posso ficar aqui?

    - Já te prendi por tempo demais. Estão procurando por você.

    Diante do ultimo comentário, a mini-eu se encolhe e seus olhos divagam. Ela sabe que vai levar uma grande bronca quando for encontrada. Isso sem falar no castigo que o pai deixará a encargo do irmão escolher.

    Epa! Como eu sei disso?

    Então me dou conta. De forma inesperada e natural, a lembrança surgiu em minha mente. Não era uma imagem clara ou detalhada, mas me vi em outra ocasião, depois de ter aprontado alguma traquinagem qualquer, e meu pai incapaz de me dar um castigo com a severidade merecida, passava a tarefa ao meu irmão.

    Túri sempre sabia como me castigar de modo que eu de fato aprendesse a lição e... Túri... O apelido carinhoso de infância já tinha saído de meus lábio há alguns dias em meu presente e eu nem percebi.

    Assim como eu sabia os rituais fúnebres Darätzsalah...

    Já tem algum tempo que minha memória está voltando de maneira sutil e por isso não me atentei para o perigo que estava por vir junto com elas. O que quase me levou a ceifar a vida de Myris com crueldade pura.

    Não que eu ache que fosse me arrepender se de fato tivesse tirado a vida dela, mas algo me diz que ainda há coisas que preciso fazer antes de deixar meu passado voltar. Preciso encontrar seja lá o que for que me fará lidar melhor com a dor insuportável que virá junto com as lembranças.

    - Vá, menina! -o grito da velha me traz de volta ao momento do passado. – Já lhe disse para ir embora!

    A senhora empurra a mini-eu porta a fora com gentileza, mas ao mesmo tempo com determinação.

    - Ei! Está frio aqui fora! -protesta a mini-eu.

    - Pensasse nisso antes de fugir de sua família, menina. -são as ultimas palavras da senhora antes de fechar a porta na cara da mini-eu.

    Isso com certeza é algo que a velha Snotra faria. Ela cuida de mim sem fazer vista grossa para as coisas erradas que faço. Será que essa senhora é mesmo Snotra?

    A mini-eu olha carrancuda para a porta, mas sei que desde pequena sou orgulhosa demais para insistir em pedir abrigo para a senhora.

    Ela vira as costas e sem olhar para trás segue rumo ao sul. Sem opção, vou atrás dela e não muitos passos depois, a nevasca sem intensificou mais uma vez e sou incapaz de avistar a cabana. Estranho.

    Depois de cerca de meia hora de caminhada, encontramos um riacho parcialmente congelado e a mini-eu tem a estupida ideia de tentar atravessá-lo pulando de rocha em rocha. Meus instintos, ou resquícios de minha memória, me dizem que isso não vai acabar bem.

     E não demoro a descobrir que estou certa. A mini-eu escorrega e vai parar dentro da água congelante. E é então que tudo se mistura em minha cabeça.

    Da margem do rio vejo a criança que fui lutando para submergir ao mesmo tempo que minhas lembranças me levam a ver tudo do fundo do riacho.

    A sensação terrível e dolorosa de água entrando em meu nariz e farpas de gelo se cravando em meus pulmões me consome. Me vejo incapaz de respirar, estou afogando. Luto para voltar a superfície, mas meus braços e pernas ainda são muito pequenos e não me levam longe apesar de todo o meu esforço. A minha visão está turva e já não consigo mais diferenciar o que é a superfície e o que é o fundo das águas de gelo.

    Estou a ponto de perder a consciência quando toda a água ao meu redor desaparece. Quero abrir os olhos, mas perdi todas as minhas forças na luta contra a correnteza gélida. Sinto que sou tirada da lama fria e acolhida por braços calorosos, mas ainda tenho dificuldades de respirar com toda a água presa em meus pulmões.

    Sem aviso, sou sugada para a mente do meu eu adulto nas margens do riacho e me deixo cair na de joelhos na neve.

    Ainda sem folego, olho para o riacho agora vazio, e vejo a senhora com a mini-eu em seus braços. Sua expressão ao observar a mini-eu ficando cada vez mais azul é indecifrável. Será que ainda não estou respirando?

    - DEVOLVA A MINHA FILHA, AGORA! -grita uma voz não mais estranha as minhas costas.

    Com lentidão me viro e me deparo com a divindade que se diz a minha mãe. Ráahra em toda a sua fúria está diante de meus olhos.

    Que raios está acontecendo aqui?

    Em um piscar de olhos, a Deusa da Lua Vermelha arranca a mini-eu dos braços da senhora e sua mão banhada de luz toca seu peito a fazendo tossir e respirar novamente.

     Não tenho nem tempo para tentar entender o que está acontecendo quando para o meu total espanto, a senhora que me acolheu, começa a mudar bem diante de mim. 

    Até mesmo suas roupas esfarrapadas desaparecem dando lugar a um magnifico vestido feito de flocos de neve brilhantes. Sua feição rejuvenesce, seus cabelos loiros cinzento adquirem um tom púrpura intenso e seus olhos deixam de ser azuis e se tornam violetas como seus cabelos. E não gosto nada da verdade odiosa que sou obrigada a encarar. A enigmática e gentil senhora que cuidou de mim, se transformou em ninguém menos do que a minha inimiga, aquela que quer roubar os meus filhos de mim, a Deusa da Lua Violeta em pessoa, Seihtriss.

    - Não fiz nada a criança. -a divindade dos mortos diz sem inflexão em seu tom de voz.

    - ELA NÃO ESTAVA RESPIRANDO! -a minha velha continua aos berros.

    É a primeira vez que a vejo tão angustiada e desestabilizada. O sofrimento estampado em seu belo rosto a fazer parecer quase humana. Quase uma mãe com medo de perder sua criança.

    - É o que acontece quando se afoga. -a indiferença de Seihtriss não poderia ser maior.

    - Ela é apenas uma criança e você...

    - Não seja dramática, Ráahra! -a outra deusa interrompe a minha velha. – Sabe que não sou capaz de leva-la.

    - Mas você pode fazê-la sentir dor! Foi você quem...

    - É a minha obrigação estar onde os seres vivos devem perder suas vidas, especialmente quando se trata de crianças.

    - Você a escondeu de mim! -acusa a minha velha. – Por isso não a encontrei esse tempo todo.

    - Também tenho os meus truques...

    - O que você fez com a minha filha? O que queria com ela?

    Com um sorriso sarcástico, a Deusa Mórbida responde com uma provocação:

    - Você não é a mais poderosa de nós sete? Descubra sozinha.

    E sem mais, a Divindade da Lua Violeta se mistura aos flocos de neve da nevasca e desaparece.

    A velha vermelha parece disposta a seguir a velha roxa, mas é nesse momento que a mini-eu estremece em seus braços com um choramingo.

    - Está frio...

    Imediatamente a deusa puxa uma manta de pele não sei de onde e envolve a mini-eu. Ela aperta fortemente a mini-eu em seus braços e acaricia seus cabelos molhados usando seu calor mágico para secá-los. Lágrimas que imagino serem de preocupação e alívio escorrem livremente por seu rosto divino e sinto uma pontada de culpa por tê-la preocupado assim.

    - Minha menina, graças a sete luas que você está bem! Eu te amo tanto, minha garotinha! Tive tanto medo que ela tivesse conseguido te levar de mim pra sempre...

    A deusa que agora parece mais uma humana do que nunca ao meus olhos, pressiona sua face a bochecha da mini-eu como se ainda duvidasse que tem sua filha segura em seus braços.

    Como eu queria me lembrar desse momento...

    - Faz a neve ir embora. -pede a mini-eu em tom baixo.

    - Náshy, minha menina, você não deveria ter tirado o seu casaco.

    Ela passa a caminhar sem muita pressa com a mini-eu aninhada em seus braços.

    - Os bebês raposas estavam com frio.

    - Os bebês raposas têm pelos. Você não.

    - Eles são pequeninos. Eu não.

    - E a sua comida? Deu para os bebês raposas também?

    - Não, os bebês raposas têm o leite da mãe deles.

    - Então onde está a sua...

    - Mas dei todas as minhas carnes secas para a mãe deles.

     - Mamães raposas sabem caçar, minha menina.

    - Ela não vai poder caçar enquanto estiver cuidando dos bebês, mas vai precisar de energia para ter muito leite para eles.

     - E como pretendia se alimentar durante a sua fuga já que deu toda a sua comida para a mamãe raposa?

    - Peixes.

    - Você tem sempre uma resposta para tudo, não é mocinha?

    - Não. Não sei que é a minha mamãe.

   A poderosa Deusa da Lua Vermelha cessa seus passos com um solavanco e engole em seco antes de perguntar:

    - Você queria ter uma mamãe?

     Que criança não gostaria de ter uma mãe, velha desnaturada? Entretanto a mini-eu parece estar quase adormecida e não responde a pergunta.

     - Não consigo abrir os meus olhos. Eles estão pesados. Estou sonhando?

    - Sim, minha menina. Volte a dormir.

    - Se preciso voltar a dormir, então não estou sonhando...

    Sinto certa satisfação ao constar que minha perspicácia está presente desde que eu era muito pequena.

     A deusa sem sombras de dúvidas deve ter usado sua mágica divina e em meros segundo a mini-eu está dormindo feito uma pedra sem imaginar que está nos braços da própria mãe.

    Velha, velha! Quando deixar de ser covarde e se apresentar cara a cara comigo, você que me aguarde...

    Andamos por cerca de uma hora e não chegamos a lugar nenhum, o que me deixa um tanto impaciente. Embora eu desconfie que na verdade a deusa está apenas adiando ao máximo o momento de ter que se separar da mini-eu, já que poderia muito bem aparecer em qualquer lugar que quisesse com sua mágica.

    Então sem ao menos algum tipo de aviso, uma figura aflita surge em meio a neve e assim que vê a deusa com a criança no colo, ele se deixa cair de joelhos na neve fria mais uma vez.

    - Você me ouviu, Ráahra! Você atendeu as minhas preces!

    - Eu sempre ouço você, Faraahtz!

    Devagar, como se o medo e a preocupação tivessem esvaído todas as suas forças, meu pai se coloca de pé e envolve as duas em um forte abraço no qual demora longos minutos para se afastar.

    - Eu tive tanto medo de perdê-la. -ele diz afagando os cachos vermelhos da mini-eu. – Quanto mais o tempo passava sem encontra-la, mais apavorado eu ficava achando que algum mal tinha acontecido a ela. Eu sabia que você já teria a trazido para mim se ela estivesse apenas perdida. E quando o cavalo dela voltou sozinho... Temi que o pior tivesse acontecido. Que os outros tivessem chegado até ela antes que eu...

    - Os outros ainda não sabem dela, Faraahtz. -o olhar incisivo de meu pai faz a temida Deusa Ráahra reformular a sua frase. – Com exceção de Seihtriss, mas isso você já sabia.

    - Era ela que estava com a nossa filha? -de forma quase abrupta, meu pai toma a mini-eu dos braços de Ráahra e passa a examiná-la com extrema minucia. – O que essa deusa fez com a Náyshilah? Por que nossa filha não acorda?

    - Náyshilah está bem. Está apenas dormindo. -a minha velha o tranquiliza. – Mas você deve dar-lhe um castigo severo quando acordar. Você a mima demais!

    - O que a Divindade da Lua Violeta queria com a nossa filha? -meu pai pergunta ignorando a crítica da minha velha.

    - Eu não sei, mas agora que Náyshilah está segura com você, irei descobrir! -os olhos dela se transformam em assustadoras chamas flamejantes. – E por favor, não tire os olhos dela! Não posso vigiá-la o tempo todo. Coisas ruins acontecem no mundo quando me dedico somente a ela....

    O quê? O que a velha está falando agora?

     Ela se curva e beija a cabeça da mini-eu em uma despedida, mas antes que ela consiga partir, meu pai a puxa para si em um beijo cheio de amor, paixão, desespero, medo e perda.

    De repente me sinto uma intrusa ao presenciar um momento de tanto amor entre os meus pais.

    - Não vá, minha pequena! Não nos deixe de novo! -ele pede com a testa ainda encostada na dela. – Juro pelo amor que sinto por você e nossa filha, que sou capaz de protege-las...

    As palavras de meu pai saem carregadas de uma convicção inabalável.

    De onde vem toda essa certeza que ele pode nos proteger de outros deuses?

    A divindade se afasta com expressão intrigada sem dúvidas se fazendo a mesma pergunta, mas concluindo que são apenas palavras de um mortal movido pela fé em seu amor, ela o responde com palavras ainda mais enigmáticas:

    - Sou eu que não posso perder vocês, meu Darätzsalah! Nem mesmo eu posso entrar no mundo dos mortos...

    - Minha pequena, você sabe que eu...

    - Assim como você sabe que a humanidade também precisa de mim, Faraahtz! -ela o interrompe com firmeza. – Sem mim cumprindo com as minhas obrigações, o mundo perde o seu equilíbrio.

     O meu pai, que todos definem como o homem mais generoso que já existiu, expressa com o seu olhar repleto de súplica, que ao menos uma vez na vida não se importaria de ser egoísta. Entretanto quando divindade que ele ama se mantem calada, ele dá as costas a ela e depois de acomodar a mini-eu na cela de seu cavalo, os dois partem em meio a nevasca sem que ele olhe para trás uma única vez.

    E ela fica ali, parada na neve o acompanhando com o olhar até os dois desaparecerem na distância.

    Lágrimas silenciosas são os únicos indícios que a Deusa da Lua Vermelha sofre tanto quanto o meu pai por não poder permanecer ao lado dele para sempre.

    Com seu longo vestido branco se misturando a neve, os cabelos vermelhos da deusa se destoam como se eles fossem chamas em meio ao inverno impiedoso e ela se esvanece com apenas uma única palavra se misturando ao canto sombrio do vento:

    - Seihtriss...

    O que me leva a pensar nas perguntas que venho ignorando de propósito. Será possível que Seihtriss e Snotra sejam a mesma pessoa? E se sim, por que ela teria se dado ao trabalho de fingir se importar comigo? Qual seria o seu objetivo ao me manipular de forma tão cruel ao ponto de me fazer amá-la?

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    E aí? O que acharam desse capítulo? Sei que devem estar bravos comigo, afinal os deixei com mais perguntas do que respostas, né? Desculpem por frustrá-los... Comentem, deixem suas opiniões e teorias, não se esqueçam de votar e por favor, avisem a todos os amigos que Arco-Íris de Luas está de volta! Obrigada por toda a paciência e por não terem desistido de mim! AMO VOCÊS, MEUS ARCO-ÍRIS!!!

    P.S 1: O O que acharam da nova capa do livro feita pela maravilhosa @Shirley ❤❤❤
   P.S 2: Está rolando sorteio no meu ig de escritora no instagram de um funko de biscuit da Aédris (Que está linda demais *-*). 


Bastam seguir o meu perfil (e seguir todas as regras do sorteio):

@escritora.fernandaarce

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