Capítulo 31
Oi pessoal, tudo bem? Sentiram a minha falta? Querem me bater pelo sumiço? Então, como a maioria já sabe, não estive bem e escrever doente não consegui mesmo. Já era ruim o suficiente ter que trabalhar doente... Deixei recado no meu mural e mandei mensagem para os meus seguidores, mas acho que muitos não viram ou receberam notificação. Felizmente já estou bem a vários dias e agradeço a todos pelas mensagens de carinho e votos de melhoras que recebi. Muito obrigada de coração. Desde que melhorei estive escrevendo sem parar, mas como sabem sou perfeccionista e nunca achava que estava bom (na verdade ainda tenho as minhas dúvidas) por isso a demora além da conta. Por favor, comentem muito, pois estou morrendo de saudades dos comentários de vocês. Não se esqueçam de votar e convidar os amigos. A música desse capítulo é Shudder Before The Beautiful do Nightwish e se for possível escutem ela enquanto lêem. Acho que o ritmo (e até mesmo um pouco da letra) tem a ver com o clima de batalha do capítulo. Esse capítulo e dedicado a uma das leitoras que amam comentar *_*
P.S: Como devem ter notado, estamos de capa nova. Essa venceu por poucos votos de diferença, então sei que muitos não ficarão satisfeitos já que quase deu empate e as opiniões claramente ficaram divididas. Se fosse eleições iria para segundo turno kkkk
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Dor. Muita dor. Essa é a sensação que impera em todo o meu ser no momento. Dor em minha cabeça que parece estar a ponto de explodir. Dor em meus ossos causada pelo impacto violento ao ser arremessada ao solo. Dor em cada centímetro do meu corpo. Entretanto a dor é muito maior em meu ventre. Sinto como se as paredes do meu útero estivessem sendo arrancadas camada por camada. E como se essas mesmas camadas tivessem criado raízes profundas e estivessem lutando para se manterem presas no lugar. O Fedelho está lutando para viver.
Tento me levantar, mas minhas pernas não respondem ao meu comando. Tudo o que consigo é me encolher como uma bola protegendo a minha barriga com os meus braços.
E mesmo em meio a toda a dor que estou sentindo, meu cérebro darätzsalah que não conhece descanso, consegue registrar tudo o que está acontecendo ao meu redor.
Além da corja de bruxas que parece se multiplicar a cada minuto em suas fumaças cinzentas, uma centena de cernis, talvez até mais, surgiu do nada também. Cernis que tenho certeza que não são meus aliados. E as criaturas mostram porque são conhecidas como os seres mais cruéis e sanguinários desse mundo.
Rugidos de dor ecoam de todas as partes enquanto todos os guerreiros da tropa enfrentam os seres horrendos. Ouço barulho do metal de suas espadas e suas armaduras, assim como os gritos agonizantes de carne sendo dilacerada e estripada. Se os gritos são das criaturas ou dos meus companheiros, não sei dizer. O grito da morte é sem dúvidas o mesmo para todas as criaturas vivas. E o meu coração dói ao pensar nos companheiros que provavelmente estou perdendo nesse exato momento.
A certa distância vejo Rius na forma de besta alada com Kadrahan em suas costas, mas as bruxas criam mini tornados dificultando o avanço deles e fazendo de tudo para derrubá-los do ar.
Enquanto a minha volta vejo que meu irmão e meus amigos também foram arremessados ao chão certamente pela mesma rajada de vento que me atingiu e mal conseguem se levantar quando as criaturas os atacam implacavelmente.
Meu irmão está tentando chegar até mim, mas oito cernis o cercam e uma luta feroz tem inicio. Vanshey também está cercado pelas criaturas e não há dúvidas que ele não tem chances contra eles. Tov está sobrevoando acima de nossas cabeças e claramente hesita quanto ao que deve fazer olhando de mim para Vanshey.
- Vanshey! -grito entre os dentes cerrados de dor.
Ainda há hesitação nos olhos azuis de minha ferinha e sei que seu cérebro inteligente está pesando quem tem chances de morrer mais rápido sem a sua ajuda.
- Por favor, Tov, ajude-o... -peço em um murmúrio entre uma nova contração de dor.
Ele choraminga diante da decisão de me deixar a própria sorte, mas ele sabe que ao menos no momento tenho mais chances de sobreviver do que Vanshey e desce em um voo rasante em direção ao pescoço de um dos cernis atacando o nosso amigo.
A minha esquerda, Érishi tenta se esquivar dos ataques de uma bruxa voando de um lado para o outro, mas ela não é rápida o suficiente para a magia poderosa da outra e mais uma vez é lançada ao chão por uma torrente de faíscas amarelas. Entretanto quando a bruxa de longos cabelos dourados parece estar prestes a lançar um feitiço fatal, Sa surge e se enrola no pescoço dela estrangulando-a e cravando suas presas venenosas na carne de seu braço. A bruxa começa agonizar e vai ao chão em espasmos contínuos enquanto o corpo de Érishi permanece inerte no lugar onde caiu. Rezo para que ela esteja apenas inconsciente. E depois de uma olhada rápida para Érishi e para mim, Sa dispara para ajudar Tov.
Não muito distante a minha frente, Iéehruus ainda tenta impedir que a Deusa da Lua Azul se aproxime de mim se pondo no caminho dela.
- Náahtris, desista! Não permitirei que faça mais mal a filha de Ráahra!
- Iéehruus, você sabe tão bem quanto eu o que pode nos acontecer se não nos livramos dela! -ela entoa na mesma voz cadenciada e doce de antes.
- O destino de Náyshilah não está em nossas mãos! -é a resposta enigmática de Iéehruus. - Somente...
- Seihtriss? -ela o corta agora com uma voz de gelo. - Ela também é uma traidora! Desde o principio sempre soube da aberração de Ráahra e nunca nos contou!
- Náaht, por favor, você...
No entanto as palavras da Divindade da Lua Laranja são interrompidas quando uma espécie de redemoinho lançado por Náahtris o envolve aprisionando-o.
- Se não vai me ajudar, Iéehruus, não permitirei que me atrapalhe! -ela declara enquanto caminha com passos decididos.
Contudo, antes que ela consiga dar mais um passo, raios vindo de dentro do redemoinho a aprisionam também em uma espécie de corrente de energia.
- Acha mesmo que pode me vencer, Náaht? -uma sonora gargalhada ecoa parecendo um trovão de dentro da prisão de vento. - Sou o Deus da Guerra, você não tem chances contra mim!
- Você não pode me ferir! -ela grita e pela primeira vez sinto um traço de irritação em sua voz.
- Eu não teria tanta certeza se fosse você! -Iéehruus sai de dentro do redemoinho empunhando seus machados em cada um de seus punhos e com pequenos raios de tempestade saindo das lâminas duplas. - Aprendi alguns truques com Ráahra!
Embora o deus palhaço esteja de costas para mim, não tenho dúvidas que um sorriso debochado enfeita o belo rosto.
Infelizmente não sou capaz de acompanhar se Iéehruus está apenas blefando ou não, pois o meu campo de visão é totalmente bloqueado por um cerni de mais de dois metros de altura. Seu corpo é puro músculos que quase saltam para fora da pele marrom enegrecida. E ao contrário de Woron, esse cerni possui ao longo de seus braços e ombros, uma fileira de chifres letalmente pontiagudos e duros feito mármore. Seu crânio é desprovido de cabelos ou pelos e seus olhos cor de sangue me olham famintos e cheios de ódio enquanto investe com uma lança de lâminas afiadas em suas duas extremidades em minha direção.
Não sou capaz de me defender de modo algum, pois minhas cimitarras e meu arco jazem longe de meu alcance. Tento rolar no chão para me esquivar da lâmina, mas nem mesmo forças para isso eu tenho. A dor intermitente e aguda em meu baixo ventre drenou de mim todas as minhas energias. Com muito esforço levanto a minha mão na tentativa de mandá-lo para longe com a minha magia, mas nem uma única centelha sai de meus dedos.
Vou morrer. E a única imagem que vem a minha mente com essa certeza iminente é o rosto de Kadrahan em um dos seus raros momentos sorrindo.
Fecho os olhos esperando sentir a lâmina afiada de meu inimigo atravessar o meu corpo, mas após longos segundos me dou conta que ao menos essa dor não chega até mim. Ouço um "baque" de algo pesado caindo a minha frente e abro os olhos.
O que vejo me faz sugar o ar em um arquejo de culpa. Caído sobre os joelhos e contorcido em uma forma não natural, está Entur com a lança atravessada no meio de seu peito. Ele usou o próprio corpo para me defender ao mesmo tempo em que forçou a outra extremidade da lança contra a garganta do cerni eliminando a criatura instantaneamente.
Usando seus últimos resquícios de vida, ele se força a virar o pescoço para mim. Golfadas de sangue jorram de sua boca e ele engasga várias vezes antes de conseguir pronunciar as palavras que parecem ser muito importantes para ele.
- Diga... Diga ao jovem lorde que... Que... Dessa vez eu... Eu... Fui capaz de... De proteger... De proteger uma criança... A criança dele.
Após ele dizer essa última frase, seus olhos ficam pétreos e sei que a vida deixou o seu corpo. Meu coração já dolorido sente mais esse golpe. Quantos mais irei perder até os dois sóis atingirem o topo do céu? Será que eu mesma estarei viva para velar por aqueles que me são caros? A morte do velho guerreiro será apenas a primeira de muitas que irei lamentar?
Entretanto sou impedida de continuar lamentando por mais tempo quando um urro de dor excruciante dardeja através de meus tímpanos. Meu sangue congela em minhas veias. Reconheceria esse timbre de trovão a quilômetros de distância. É a voz de Antúrix.
Volto a olhar em sua direção no exato segundo que um dos cernis arranca sua alabarda das costas de meu irmão enquanto outro crava uma espada em seu ombro. Mais cernis se juntaram aos outros oito na tentativa de derrubar Antúrix.
A situação de Vanshey e de minhas ferinhas também não está muito melhor. Há um rasgo enorme na coxa esquerda de Vanshey e um corte profundo em seu braço direito. Tov também possui um ferimento ensanguentado abaixo de uma das asas e uma perfuração na sua pata traseira. Sa está com um rasgo de uma extremidade a outra em seu corpo ondulante. Sangue dourado brilhante escorrendo por sua pelagem agora negra.
Mais um urro agonizante se calando lentamente. Antúrix está no chão. Os cerni voam em cima dele feito urubus brigando por carniça.
Não! Meu irmão não! Por favor, não!
Rogo a todas as divindades que... Não! Rogo a Divindade da Lua Vermelha, a deusa protetora do amor verdadeiro! Imploro para que isso tudo seja apenas outra visão cruel. Imploro para que haja uma realidade onde estejam todos bem e onde ainda tenho chances de evitar as tragédias que irão me dilacerar a alma.
Outro silvo de dor quase me faz quebrar o pescoço com a velocidade que o torço na direção oposta centenas de metros a frente. Não é um silvo humano. É um rugido de uma besta.
Duas bestas de pelo menos dez metros de altura estão se gladiando de forma selvagem e mortal. Uma delas cravando garras afiadas no dorso da outra. Alguma bruxa certamente libertou Áilos e Rius claramente ainda está muito debilitada para enfrentá-lo. Para qualquer outra pessoa, poderia ser difícil distinguir quem é quem entre as bestas, mas Rius sem dúvidas é a única que apresenta humanidade em seu olhar de fera. Agora ela está na forma de uma besta que lembra um lobo gigante com asas e chifres por quase todo o seu corpo. Áilos mais uma vez se transformou em algo bípede, porém com cinco pares de braços repletos de longas garras afiadas. Eles rolam no chão fazendo tudo estremecer e outro rugido de dor ecoa no campo de batalha. Áilos enfiou suas garras na outra lateral de Rius.
Não posso mais continuar parada sem fazer nada. Preciso encontrar forças para me levantar e ajudar os meus amigos. Não posso mais continuar vendo a todos cairem um por um enquanto estou estatelada no chão feito uma inútil covarde.
E onde está Kadrahan? Por que não o vejo em parte alguma? Será que as bruxas conseguiram derrubá-lo dos ares com aqueles tornados e agora seu corpo jaz em algum lugar com o pescoço quebrado?
Reunindo tudo o que tenho, consigo me apoiar sobre os meus cotovelos e elevar a minha coluna. Juro que vejo estrelas em meus olhos apesar de ter acabado de amanhecer tamanha é a dor que perpetua em meus ossos. Gotas de suor escorrem de minhas têmporas com o simples movimento. Dobro um joelho na tentativa de puxar uma perna, mas a dor em meu ventre se intensifica de tal modo que trinco a minha mandíbula e respiro lentamente entre os dentes lutando para não voltar a me encolher.
Após alguns segundos consigo esticar completamente um braço e me apoiar sobre um joelho. Agora só falta o outro braço e a outra perna. Preciso apenas de um pouco mais de...
Outra rajada forte de vento e estou voando muitos metros acima de novo, para em seguida rolar no chão feito um boneco de palha. Meus braços se esfolam no processo e sinto o sangue quente escorrer por eles. Os músculos de minha face se contorcem em uma careta de dor. Khrratz! Se não fosse a armadura de Iéehruus já estaria com todas as costelas quebradas a essas alturas. E eu que pensando que estava com dor antes...
- É você a quem todos temem? Uma criatura que mais parece um deplorável verme rastejante?
Aos poucos minha visão turva pela dor consegue se estabilizar e sou capaz de ver melhor a figura a minha frente. Um longo vestido azul escuro sem mangas e rente ao corpo esguio. Cabelos castanhos claros na altura dos ombros e olhos cor de argila. Sua pele é muito clara e possui os mesmo desenhos vermelhos assimétricos que Menélope em seus braços. Outra bruxa ensandecida.
- Qual será a recompensa que a deusa criadora me dará por livrar o mundo de uma anomalia como você? -seus olhos insanos brilham em expectativa. - Tenho certeza que ela ficará muito feliz por exterminar a aberração que ela tanto despreza e minha recompensa será grandiosa!
Um pequeno redemoinho verde começa a se formar na palma de sua mão erguida e algo me diz que seja lá qual for o feitiço que ela pretende atirar em mim, será algo letal. Zarmey! Onde foram parar todas as minhas forças?
- Diga adeus ao mundo, aberração!
A magia é lançada contra mim e dessa vez encaro o que me espera de olhos bem abertos. Tenho planos imediatos de mostrar a essa bruxa quem é o verme rastejante. Só preciso achar uma maneira de anestesiar toda a dor que estou sentindo primeiro...
Entretanto a magia é repelida por um escudo invisível a minha volta. E mesmo a contra gosto, uma alegria me invade. Já estava demorando para Niklaus aparecer e... Uma nuvem negra se desvanece a minha frente dando lugar a outra figura conhecida.
- Não tão depressa, minha querida Lhaveska! -anuncia a voz esganiçada de Menélope.
E novamente o meu mundo está do avesso. Agora é Menélope que está me salvando?
- Menélope? O que está fazendo aqui? -a tal bruxa Lhaveska questiona com escárnio escorrendo em suas palavras. - Você quer tirar de mim a honra de matá-la para ficar com toda a glória perante a deusa criadora? Não vou permitir que...
- Minha querida Lhaveska, cale a boca! -é o único aviso que a outra bruxa tem antes que Menélope lance uma poderosa magia prateada sobre ela.
A bruxa Lhaveska consegue repelir a magia de Menélope e desaparece em uma fumaça negra resurgindo ao meu lado com uma adaga de lâmina curva envolta em uma luz azulada. Meus sentidos despertam completamente. Minha intuição me diz que essa lâmina será capaz de ultrapassar a barreira mágica de proteção como se estivesse cortando manteiga. Porém antes que ela consiga fazer qualquer coisa contra mim, Menélope se coloca entre nós duas recebendo o golpe da adaga diretamente em seu peito.
- Você não quer a honra de matá-la! -puro choque faz com que a bruxa fique com a boca escancarada em descrença. - Você a está protegendo! -Lhaveska constata horrorizada! - Como ousa ser contra a vontade da deusa criadora? Sempre esperei o pior de você, afinal traiu seu próprio clã! Mas isso é demais até para você, Menélope! Você é uma traidora da própria espécie! -ela acusa.
- Eu adoro a minha espécie, Lhaveska! Só que amo a minha própria pele ainda mais! -Menélope arranca a adaga em seu peito como se fosse uma simples farpa em seu dedo e a joga no chão.
- E por que não está agonizando nesse momento? -incredulidade estampa as feições da bruxa. - O veneno na lâmina deveria matar qualquer ser vivo em questão de minutos!
- Você melhor do que ninguém sabe que sempre escolho o lado vencedor, Lhaveska! -Menélope afirma com uma risada presunçosa.
E em um piscar de olhos faz adaga que estava no chão voar para a garganta da outra bruxa que não teve nem mesmo tempo de reagir. Sangue rançoso escorre do talho no pescoço de Lhaveska enquanto seu corpo sem vida cai aos pés de Menélope.
A bruxa que supostamente está sob minhas ordens se vira para mim olhando para os lados como que a procura de algo em meio ao caos.
- Onde está aquele belo espécime de feiticeiro? -Menélope indaga como se estivesse se referindo a um bicho de estimação extraviado. - Ele vive grudado em você, não deveria estar te protegendo agora?
Também queria saber onde está Niklaus. Ele ainda está inconsciente em meio a esse pandemônio? Ou será que foi morto enquanto dormia?
Mais uma vez me esforço para me levantar. Sangue dos ferimentos em meus braços encharca as minhas mãos. A dor novamente ameaçando me levar a inconsciência enquanto luto para não me render a ela.
- Você é patética, criança! -Menélope me encara de cima com desdém. - Não me envergonhe por ter escolhido ficar ao seu lado!
- Não... Não consigo... Mover as minhas pernas! -digo em um sussurro.
Será que essa bruxa insensível é incapaz de ver que estou com dor, possivelmente perdendo o Fedelho? Ou simplesmente não se importa?
- E desde quando você precisa de pernas para se erguer acima de todos? -a bruxa questiona como se não estivesse falando um absurdo. - Ou prefere continuar aí no chão em autocomiseração? Pensei que o feiticeiro tinha te ensinado melhor que isso!
No entanto mal posso ouvi-la. Em meus ouvidos os gritos de dor e morte se sobressaem a voz da bruxa. Assim como o barulho de lâminas e garras perfurando armaduras. Mas nada é pior que o cheiro corrosivo de sangue que impregna o ar impetuosamente.
- Tenho certeza que a guerreira que me obrigou a arrancar suas memórias diria que qualquer dor que esteja sentindo agora não é nada se comparada as dores do passado...
Essas palavras despertam um alarme nas profundezas de minha mente, mas um senso de autopreservação soterra novamente seja lá o que for que possa vir a superfície de minha consciência.
Finalmente consigo me colocar sobre os cotovelos, mas as minhas pernas continuam sem responder aos comandos do meu cérebro. Será que quebrei algum osso que não devia quando tombei da primeira vez? Está difícil diferenciar uma dor da outra e realmente não sei dizer o que está me incapacitando.
- Menélope, você precisa me ajudar a...
- Até que enfim! -ela me interrompe. - Também estava estranhando a ausência dele!
Sigo a direção do olhar da bruxa e meu coração pula uma batida.
Kadrahan avança em nossa direção feito um furacão implacável de fúria. E ele está ferido. Muito ferido. Há cortes profundos em seus braços e sangue escorre das junções de sua armadura em seu tronco. Assim como uma cascata vermelha se derrama de sua testa sobre o seu olho esquerdo sem dúvidas dificultando a sua visão. Mas nada disso parece ser problema para ele, pois a lâmina de sua espada realmente não conhece limites. Ele abre seu caminho até mim mutilando braços, troncos e cabeças de cernis sem piedade. A frieza em seu olhar é algo assustador de se ver. Em nenhuma de nossas batalhas anteriores o vi tão feroz e sem a mínima compaixão. Pela primeira vez vejo o assassino implacável, frio e desprovido de remorso que foi forjado pelas mãos cruéis de seu pai.
Ele finalmente chega até mim, mas antes que um passo a mais seja dado, seus olhos caem sobre o corpo perfurado e ensanguentado de Entur. Por uma fração de segundos, vejo um sofrimento devastador em seu olhar, porém ele rapidamente empurra sua dor para algum lugar bem no fundo de sua alma e em uma velocidade mais rápida que um raio ele se posta entre Menélope e eu. Sua espada a centímetros do pescoço da bruxa.
- Você já sabe que essa sua espada nem ao menos faz cócegas em mim então nem perca o seu tempo tentando. - a bruxa afirma presunçosa. - Além do mais, ela está tão decadente em sua agonia de dor que se eu quisesse matá-la, já teria feito isso sem a menor dificuldade!
- Se afaste! -ele rosna.
Ela revira os olhos ao dizer:
- Criança, diga a ele que acabei de salvar a sua vida!
- Sim... -é tudo que consigo dizer e um gemido de dor escapa entre meus dentes crivados.
Kadrahan letamente se abaixa ao meu lado ainda com a espada apontada para Menélope e seu olhar atento não perde nenhuma das movimentações nas proximidades também.
- Aédris... -ele apenas diz o meu nome, mas sei que sua pergunta implícita é se deve ou não confiar na bruxa.
Não tenho a menor ideia se devemos confiar em Menélope em um monte de coisas, mas ao menos no momento sei que ela não deseja a minha morte.
- Sim... -eu repito incapaz de pronunciar frases completas.
Então ele deixa a espada no chão e não tenho dúvidas que ela estará em suas mãos em um segundo se preciso for, mas ainda assim não consigo deixar de me sentir apreensiva, principalmente com tudo o que está acontecendo a nossa volta. Em seguida ele se inclina para me acolher em seus braços e Menélope faz menção de elevar uma das mãos enquanto diz:
- Irei desfazer a minha barrei... -ela começa, mas se interrompe. - Interessante...
A barreira de Menélope teoricamente deveria impedir qualquer um de me tocar, mas fica óbvio que Kadrahan não encontra nenhuma dificuldade quando me abriga protetoramente em seu tórax.
Sem perder tempo, ele leva uma das mãos aos ferimentos em meus braços e a familiar luz ofuscante começa a fazer seu trabalho milagroso de me curar. Entretanto dessa vez algo está diferente. Quando a luz toca em mim, além de seu calor característico, sinto um choque de energia percorrendo todo o caminho de minhas terminações nervosas como se um poder invisível e avassalador estivesse tomando conta de todo o meu ser. E como se meu corpo estivesse respondendo a ele naturalmente, luz também começa a brotar de meus dedos e se torna uma só com a dele. A união da magia que surge entre nós faz a luz ficar cada vez mais intensa até nos envolver por completo me obrigando a fechar os olhos. Sinto um enorme poder fervilhar em cada célula do meu corpo que se propaga em ondas devastadoras por minhas veias trazendo de volta vida a guerreira que sou.
Iéehruus estava errado. Kadrahan não é a minha fraqueza. Ele é a minha maior força. E talvez o meu maior erro no passado tenha sido abandoná-lo. Somos fortes separados, porém suscetíveis a fraquezas mundanas. Entretanto quando estamos juntos fortalecemos um ao outro em dimensões imensuráveis.
Quando me sinto totalmente revigorada, o brilho intenso se apaga e sem eu ter me dado conta já estou sobre os meus joelhos. Quase toda a dor que eu sentia há poucos minutos se extinguiu por completo. Com exceção de uma, a dor em meu ventre. Ela é a única dor que continua uma constante, embora agora seja algo suportável. Algo que posso lidar e até mesmo ignorar. Mas não é o que quero. Levo minha mão a minha barriga e olho para Kadrahan, que também já não apresenta nenhum de seus ferimentos e ainda continua com um dos braços ao redor da minha cintura me dando suporte.
- Não quero perdê-lo... -digo em um fio de voz buscando encontrar a esperança que preciso na intensidade de seus olhos de esmeralda.
Entretanto não é o que encontro. Vejo um olhar atormentado carregado de sofrimento e tristeza. Ele abre a boca, mas a fecha em seguida. Seu primeiro impulso com certeza é sempre me dizer que tudo vai ficar bem, que eu não preciso ter medo. Contudo vejo que ele não quer que eu me iluda. Não quer que eu tenha falsas esperanças. Ele já sabia que algo assim iria acontecer. Ele sempre soube que o Fedelho não iria nascer.
Meus olhos se enchem de lágrimas que me recuso a derramar. Chorar significa aceitar que o perdi. E não aceitarei isso sem lutar.
Estico uma das pernas e me apoio no joelho da outra finalmente ficando de pé e pronta para enfrentar o mundo.
Não sei exatamente porque estão me caçando, porque me querem morta, mas já estou cansada de tudo isso!
Fúria incandescente queima sob a minha pele e sinto a ira ondular por todo o meu corpo o fazendo tremer. Kadrahan segura as minhas mãos nas suas e me faz encará-lo. Vejo a minha fúria refletida nos olhos dele. Ele está tão furioso quanto eu por tudo o que está acontecendo. O chão sob nossos pés também passa a tremer com fissuras se formando no solo, assim como algumas rochas e pedras começam a voar ao nosso redor. O vento fica mais forte, denso e ruidoso trazendo o prelúdio de uma catástrofe ar. E não tenho dúvidas que sou a responsável por essa mudança no clima.
O dia escurece e olho para o céu esperando encontrar minhas nuvens vermelhas, mas não é exatamente o que me espera.
A distancia no horizonte vejo nuvens negras se movimentando entre as vermelhas em uma espécie de dança hipnotizante, sombria e letal.
Uma ideia surge em minha cabeça e recuo um passo soltando as mãos de Kadrahan. No céu as nuvens se separam formando duas forças distintas da natureza. Uma delas com crepitantes labaredas de fogo lutando para serem libertas e a outra um furacão negro com raios tremeluzentes com estalos ensurdecedores ecoando pelo vento.
Náyshilah e Uliahtrus. Tempestade Vermelha e Furacão Negro. Obviamente nossos nomes não foram escolhidos ao mero ao acaso.
Kadrahan acompanha o meu olhar com um vinco profundo em sua testa. Certamente chegou a mesma conclusão que eu. E apesar da expressão endurecida, posso ver através de sua máscara que está tão surpreso quanto eu.
- Isso nunca aconteceu antes, certo?
- Não. -ele declara categórico. - Mas sinto que posso controlá-lo.
- Então siga os seus instintos. -apesar do forte barulho do vento, os gritos, rugidos e gemidos de dor ainda alcançam os meus ouvidos. - Temos trabalho a fazer.
Meus guerreiros precisam de ajuda. Os cernis são fisicamente mais fortes que as bruxas, contudo são elas que estão dando mais trabalho com seus truques sujos.
- Náyshilah, não te dei presentes tão valiosos para eles serem esquecidos! -Iéehruus grita por sobre os ombros.
No instante seguinte ele leva as mãos ao chão fazendo um casulo de rocha vulcânica se erguer do solo mais uma vez prendendo Náahtris.
- Isso não vai prendê-la por muito tempo! Seja rápida!
Presentes? Um estalo em minha mente e imediatamente sei a que o Deus Palhaço se refere, mas como...
- Se concentre naquilo que quer e estará em suas mãos, criança! -Menélope diz em um tom de uma professora ensinando algo a um pupilo. - Esse é um feitiço muito básico e deve ser ainda mais fácil para você!
Seguindo as orientações simples da bruxa, junto as minhas mãos com as palmas para cima me concentrando naquilo que quero. Em questão de segundos sinto o peso da bolsa de couro contendo as pequenas peças de metal em minhas mãos.
Guiada apenas por meus instintos, abro a bolsa e despejo o conteúdo no ar em um movimento curvo com o braço. As inúmeras peças flutuam em pleno ar e com o mero comando de minha mente voam de encontro a cada um dos guerreiros e plainando na frente deles, as curiosas peças de metal se transformam nos mais variados tipos de armas.
Yuules, o mais próximo em meu campo de visão, decide que a foice flutuando diante de si é uma aliada quando um feitiço cinzento lançado por umas das bruxas é simplesmente repelido ao se deparar com a arma e passa a usá-la para se defender.
A minha atenção é desviada quando o casulo de rocha explode em mil pedacinhos e uma Náahtris furiosa sai de dentro dele.
- Você criou armas contra as minhas criaturas, Iéehruus? -ela acusa com o ácido escorrendo em suas palavras.
- Sou o senhor da arte da guerra afinal! -ele responde com o seu deboche marcante. - Estou sempre muitos passos a frente em uma batalha! Prever o movimento de meus inimigos é como respirar para mim!
- Então sempre me viu como sua inimiga, Iéehruus? -a serenidade melódica em sua voz contrariando a ira de suas palavras.
Está na hora de dar um motivo verdadeiro para essa deusa duas caras querer me matar. Dou um passo a frente, mas uma dor aguda em meu ventre me faz titubear novamente. Kadrahan rapidamente me ampara e ouço os estalos dos raios ficando ainda mais fortes.
- Queime sua dor, querida! -é o conselho de Menélope. - Assim será mais fácil lutar!
Embora as palavras de Menélope não façam sentido a principio, o brilho distorcido nos olhos dela, o brilho de quem está ansiosa pelo verdadeiro caos me diz o que preciso saber.
Queimar...
- Cuide dos outros, Kadrahan! -peço me afastando de seu toque. - Tenho contas para acertar com a bruxa azul!
- Tenha cuidado, sah vrätsa!
- É a bruxa azul que deve ter cuidado comigo agora! -afirmo sentindo o fogo sob a minha pele cada vez mais intenso.
Levando a mão protetoramente a minha barriga, digo alto e claro:
- Se segura aí dentro, Fedelho, porque a sua mãe vai lutar por você!
Então liberto toda fúria flamejante dentro de mim e meu corpo explode em uma combustão instantânea. Sinto cada minúscula parte de mim se transformar completamente em chamas vivas e incandescentes. Entretanto as chamas não me consomem, elas fazem parte do meu ser. Eu sou o fogo e o fogo sou eu. Meus membros se tornaram labaredas de fogo sob o meu comando. Até mesmo os meus cabelos estão em chamas e minha visão está vermelha, contudo nunca enxerguei mais claro em toda a minha vida. Ainda sou capaz de sentir meus braços e pernas, mas ao mesmo tempo é como se eles não existissem. Como se eu fosse feita de fogo puro.
- Você me quer, Bruxa Mor? -grito e minha voz ressoa como o crepitar do fogo na brasa, porém clara o suficiente. - Então venha me pegar!
Faço as minhas cimitarras voarem até meus punhos e elas instantaneamente se tornam extensões flamejantes de meu corpo.
- Mudei de ideia, Náaht! Não vou mais ficar em seu caminho! -Iéehruus gargalha enquanto dá um passo para o lado fazendo uma mensura cheia de floreios dando passagem. - Sabe o que acontece quando Ráahra fica dessa forma! A diferença é que ela entende a nossa importância para esse mundo! Só acho que a filha dela não nos valoriza tanto assim...
Não mesmo! Não dou a mínima para a suposta importância de nenhum deles! Mexeram com a pessoa errada!
A expressão da Divindade da Lua Azul já não está mais serena quando me vê avançando em direção a ela e no último segundo quando estou prestes a testar se minhas lâminas ou a minha forma em chamas é capaz de machucá-la, ela desaparece em pleno ar.
Infelizmente não tenho tempo a perder caçando a deusa covarde. Sigo o meu caminho sem pestanejar fatiando ou incendiando cernis sem a menor piedade. E quando não são minhas lâminas rasgando suas estranhas, basta um mero toque para que as criaturas queime até não sobrar nada além de cinzas.
As bruxas são mais escorregadias, porém mesmo com minhas mãos ocupadas aqui embaixo, consigo controlar sem dificuldades as labaredas de chamas que as minhas nuvens descarregam e atinjo impiedosamente as que não estão sendo covardes desaparecendo em suas fumaças negras.
Pela minha visão periférica, vejo que Kadrahan está tão ocupado quanto eu lutando com sua atrocidade implacável e aniquilando a existência de muitas bruxas com os raios de seu furacão.
E provando que é muito mais covarde do que julguei a principio, a Bruxa Mor ressurge lançando três gigantescos tornados contra o furacão de Kadrahan.
No entanto ele terá que se virar sem mim por enquanto. Tem alguém que precisa mais de mim do que ele no momento.
Rius está com uma fratura exposta nas costelas em seu corpo de besta enquanto Áilos puxa todos os seus pares de braços com garras afiadas para desferir o que deve ser o seu golpe fatal contra o dorso já ensanguentado de minha amiga.
Arremesso minhas cimitarras que certeiramente atingem as costas de Áilos, mas que sem dúvidas não fazem mais do que cócegas em um animal de dez metros de alturas. Porém é a distração que preciso para que ele interrompa seu ataque e se vire para mim.
Praticamente voando feito um tornado enfurecido de chamas, consigo chegar as patas de Áilos e embora ele tente me pisotear como alguém que está pisando nas cinzas de um charuto, sou mais rápida e me esquivo antes que ele consiga me esmagar. Felizmente basta um leve roçar de meus dedos para o damera repulsivo começar a se incendiar. Agora quem está urrando de dor é ele.
No entanto, estranhamente um uivo baixinho de Rius chama a minha atenção e vejo que ela está balançando o imenso focinho de um lado para o outro em uma negação. Ela não quer que eu mate o desgraçado.
Mesmo sem entender, faço as chamas retrocederem de volta para mim, mas elas já fizeram estragos o suficiente no damera para ele começar a se encolher em sua forma humana. Sua pele está tão queimada que nem preciso me preocupar que ele volte a se tornar uma ameaça tão cedo.
Agora finalmente chegou a vez de caçar a Bruxa Mor. Seus tornados continuam atacando o furacão negro de Kadrahan então ela não deve estar muito longe.
Com as minhas cimitarras novamente em minhas mãos, volto a me colocar em movimento incendiando todas as criaturas sanguinárias que encontro desferindo golpes com minhas lâminas, chutando, rodopiando, saltando, usando os cotovelos, deslizando e sem me dar ao trabalho de me esquivar uma única vez. Eles não são capazes de me ferir. Não mais. É a vez de eles fugirem.
Acabo de incendiar mais uma bruxa, quando um pequeno grupo se destaca em meio a devastação.
O Príncipe Nars, Eres, Oris e Séehlon lutam bravamente para defender a princesinha de três cernis que parecem estar apenas se divertindo com as presas antes da refeição. Aos pés deles estão os corpos de Gonn, Fins e Jilliabi, mutilados e quase irreconhecíveis. Todos estão muito feridos, mas claramente é Séehlon o mais machucado e aquele que de fato está conseguindo conter com o seu sangue o avanço das criaturas sedentas de carne fresca.
Myris está com os olhos arregalados de medo. Cada uma de suas linhas de expressão marcadas pelo pavor. Há vestígios de lágrimas secas na poeira que cobre o seu belo rosto, mas dessa vez ela não está chorando. Finalmente deve ter entendido que lágrimas não levam a lugar nenhum.
Com a decisão tomada, corto o cerni mais próximo na diagonal de cima a baixo, degolo o seguinte e rasgo o terceiro com golpes transversais de minhas cimitarras incinerando todos no processo.
Eres me olha com toda a gratidão do mundo, Séehlon mesmo abatido faz uma leve reverência em respeito e Nars me lança um sorriso enigmático que parece querer dizer muito.
Dou as costas a ele antes que eu mude de ideia quanto a salvar a vida dele.
Só tenho um objetivo no momento. Encontrar a Bruxa Mor. Meus olhos de fogo varrem o campo de batalha e não demoro a avistá-la.
Duvido muito que alguém seja capaz de distinguir em meio ao meu rosto em chamas, mas estou sorrindo amplamente. Ela achou que poderia se esconder de mim?
A Deusa da Lua Azul controla seus devastadores tornados na forma de um pequeno redemoinho de vento não muito longe de onde estou. Ela teve a ilusão que eu não poderia vê-la se ela assumisse a forma de vento? Meus olhos de chamas agora veem tudo.
Em teoria o fogo não pode contra o vento. Hora de mostrar que nenhuma regra se aplica a mim.
Coloco minhas cimitarras de volta as minhas costas e com uma velocidade que impressiona até a mim mesma, avanço contra a divindade. Ela, toda presunçosa, nem se dá ao trabalho de se mover. Paro diante dela estendendo o meu braço flamejante no centro do redemoinho e para o total choque da deusa, consigo fechar os meus dedos ao redor de seu pulso.
Náahtris se materializa em sua forma humana e solta um grito de dor capaz de explodir os tímpanos de qualquer criatura viva.
- Deixe-me adivinhar! É a primeira vez que está sentindo dor em todos os seus éons de existência, Vossa Divindade? -dardejo sorrindo com escárnio.
- Sua aberração! Irei matá-la por isso! -não há nem mais um único vestígio da serenidade que ela sempre fez questão de demonstrar.
O outro braço da deusa se move em minha direção, mas o seguro também. Sinto a carne queimar sob meus dedos e outro grito de dor rasga do fundo da garganta da deusa.
- Está doendo muito, Vossa Divindade? -indago com frieza e não mais sorrindo. -Pois devo lhe dizer. Essa dor não é nada comparada a dor que aqueles que perderam a vida hoje sentiram enquanto suas almas deixavam seus corpos mutilados e destroçados por sua causa. -intensifico a força de meu aperto, mas controlando para que as minhas chamas não se alastrem pelo corpo da deusa. - Foi você que dizimou a horda dos cernis que eram meus aliados e recrutou outros para o ataque de hoje. E não tenho dúvidas que é você a principal responsável por todos os infortúnios que aconteceram em meu passado, ou irá negar?
- Você nunca deveria ter nascido, aberração! -ele grita totalmente descontrolada.
- Por que não desaparece? Por que não foge feito a covarde que é para os seus domínios? Será que é porque de alguma forma eu anulo os seus poderes de deusa e a faço se tornar tão mortal quanto qualquer um?
O silêncio dela apenas confirma as minhas suspeitas.
- Por que acredita que eu não deveria ter nascido? Será que a profecia que tanto temem diz o que agora é óbvio? -meu sorriso volta a brincar em meus lábios. - Que sou a única capaz de acabar com a imortalidade de seres divinos? O que será que pode acontecer se ao invés de seus pulsos meus dedos em chamas se fecharem ao redor de sua garganta, Vossa Divindade?
Um sentimento novo reflete nos olhos da deusa. Um sentimento que ela com certeza nunca sentiu. Medo. Medo de perder a sua vida.
- Náyshilah, não! -grita a voz de Iéehruus de algum lugar as minhas costas. - Todas as sete divindades têm uma função única nesse mundo! Sem ela...
- Eu não me lembro e nem faço questão de lembrar qual é a sua função em nosso mundo, Vossa Divindade Azul! -continuo sem me importar com a intervenção de Iéehruus. - Tudo o que sei é que eu devo ter perdido o Fedelho por sua causa e isso eu nunca serei capaz de perdoar!
Desprendo os meus dedos do pulso da deusa, porém antes que eu consiga alcançar o pescoço da Bruxa Mor, sinto algo frio de congelar os ossos subir a minha espinha e considerando que estou em chamas, isso quer dizer muito. Contudo antes que eu sequer tenha tempo de me virar para reagir, meu mundo deixa de ser vermelho e passa ser total escuridão.
Quando a escuridão desvanece me encontro em um lugar completamente diferente. Estou na estreita faixa de uma praia entre um desfiladeiro de rochas pontiagudas e as águas escuras de um oceano turbulento. É noite e embora as outras cinco luas estejam presentes no céu estrelado, é a Lua Violeta em todo o seu esplendor que domina o manto negro. O lugar até poderia ser belo em outras circunstâncias, mas não há o essencial para ser classificado como tal. Não há vida. Não há plantas ou animais e nem mesmo uma brisa suave. É um lugar sombrio, totalmente morto. Ou melhor, esse lugar é a própria morte. Finalmente entendo onde estou.
- Bem vinda aos meus domínios, Náyshilah. -soa uma voz literalmente mórbida as minhas costas. - Sabia que quando você nasceu eu fui a primeira a te pegar no colo antes mesmo de sua mãe?
Viro-me lentamente em um esforço sobre humano para conter todo o ódio que sinto e com o meu sorriso mais cínico disparo:
- Devo te chamar de "madrinha" ou de "titia querida"?
A deusa a minha frente, assim como seus pares, é magnificamente linda. Deslumbrante seria a palavra certa. Seus cabelos e olhos violetas a tornam ainda mais bela do que seria considerado justo. A deusa está usando um vestido sem mangas ou alças, longo e justo até o quadril e que se solta em uma saia rodada e ampla cobrindo-lhe os pés. Ele é negro e enfeitado com estrelas. Sim, estrelas. Tenho certeza que são minúsculas estrelas brilhantes que adornam o vestido belíssimo.
Enquanto eu estou com as mesmas roupas de antes de literalmente pegar fogo. Aliás, voltei a ser a Aédris de sempre. Sem chamas incandescentes por todo o meu corpo. E noto também outra coisa importante. A ausência total de dor. Isso só pode significar uma coisa.
- Estou morta? -disparo alarmada. - Você me matou para salvar a sua colega?
Não que eu tenha medo da morte, mas ficarei com muita raiva se eu tiver morrido sem ter resolvido ao menos a metade do caos que é a minha vida.
E também há Kadrahan. Ele ficará devastado se me perder para sempre dessa forma. O pensamento traz uma tristeza que esmaga o meu coração por me ver separada prematuramente dele e de todos aqueles que amo.
Uma gargalhada desprovida de humor verdadeiro alcança os meus ouvidos.
- Náahtris? Não poderia me importar menos com ela. -a Deusa da Lua Violeta diz com descaso. - E você não está morta, Náyshilah.
- Mas então...
- Você é a única mortal que pode entrar em meus domínios sem estar morta, Náyshilah! -ela me informa parecendo indiferente. - Aliás, acredito que é a única que pode entrar livremente em qualquer um dos domínios dos sete deuses!
Interessante...
- Te trouxe aqui porque tenho trabalho a fazer com você! Normalmente os mortais não veem quando faço isso, mas decidi abrir uma exceção para você porque precisamos conversar.
Duvido muito que eu vá gostar de qualquer coisa que essa deusa tenha a me dizer, mas me forço a ficar em silêncio e apenas ouvi-la.
- Um feto só recebe sua alma após quarenta e cinco dias após a fecundação. -diante das palavras da deusa, coloco meu cérebro para trabalhar a toda a velocidade. Segundo os meus cálculos hoje faria quarenta e seis dias desde que concebi o Fedelho. - Desculpe, estou um dia atrasada. -ela diz sem realmente parecer lamentar.
Será que é por isso que perdi o Fedelho? Porque ele ainda não tinha recebido uma alma?
- Você ainda continua grávida, caso esteja pensando o contrário! -diante das palavras dela, um alivio enorme toma conta do meu peito e não consigo evitar um sorriso de alegria. - Mas não se iluda! O que tem aí dentro não passa de carne sem vida!
A frieza das palavras dela me faz querer voar no pescoço da deusa e descobrir se também sou capaz de infringir alguma dor a Deusa da Morte. Entretanto nem eu sou tão imprudente assim. Se o que Seihtriss diz é verdade, então ela tem algo que eu quero.
- O que Vossa Divindade tem a me dizer? -questiono empregando o máximo de respeito em minha voz.
Ela sorri sem mostrar os dentes e sem sombras de dúvidas sabe que só estou me comportando porque preciso dos serviços dela.
- Quero te dar uma escolha. -o tom mórbido de sua voz cada vez mais intenso. - Você pode deixar a natureza seguir o seu curso e desistir dessa gestação agora, afinal tenho certeza que até mesmo você concorda que a maternidade não combina com a sua alma guerreira!
Será que o mundo ficaria muito complicado sem a Deusa que leva e traz a vida? Pessoas deixando de morrer não seria tão mal assim.
Mas também não haveria mais nascimentos...
- Ou você pode escolher seguir adiante, mas obviamente isso terá o seu preço.
É claro que terá. Se ao menos eu pudesse olhar o futuro mais uma vez, mas não posso me arriscar a ter outra dor de cabeça que me deixaria fraca e incapaz de me defender perante a Deusa Mórbida!
- E imagino que você não me dirá o seu preço, não é mesmo?
- Somente depois que tiver feito a sua escolha, Náyshilah! -ela leva a mão ao queixo em um gesto de quem está sendo muito condescendente. - Pense com cautela levando em consideração todos os fatores que cercam a sua vida!
- Eu não tenho nem o que pensar! -não tenho a menor ideia se serei uma boa mãe, mas não vou desistir do Fedelho. - Eu quero prosseguir com a minha gravidez!
Não sei interpretar o sorriso repleto de mistérios que ela me oferece agora, mas esqueço qualquer tentativa de adivinhar o que se passa na cabeça da Divindade da Lua Violeta, quando vejo ela estender a mão em minha direção e duas luzes em um leve tom de lilás sair de sua palma e virem dançando ao meu encontro.
As duas luzes param a centímetros de minha barriga e cada uma delas deixam de ser lilás para assumirem as sete cores do arco-íris antes de desaparecerem dentro de meu ventre.
Instantaneamente sinto um sentimento caloroso e puro transbordar dentro de mim. Levo minhas duas mãos a minha barriga e me pego sorrindo mais uma vez.
Espera! Se cada luz corresponde a uma alma, então o Fedelho terá duas almas? Excesso de almas deve significar um grave problema, certo? Nunca pensei que um filho meu seria normal, mas isso já é estranho demais até para mim!
A não ser...
Epa!
Epa! Epa! Epa! Agora sim estou apavorada! Não, em pânico na verdade! Será que ao invés de um há dois fedelhos dentro de mim? Isso não pode ser possível! Não tem alguma regra contra isso? Algo que diz "uma criança de cada vez para mães que não tem a menor ideia de como se trocar uma fralda"?
A Deusa Mórbida está falando alguma coisa, mas sou incapaz de ouvi-la. Contra o meu bom senso, mais uma vez estou olhando o futuro, buscando descobrir se chegarei a ter essas crianças em meus braços. Entretanto a escuridão ainda é a mesma de antes, o breu é total. Não consigo nem enxergar a minha própria mão diante do meu nariz. Não há saída, para todas as direções que olho, a cortina negra continua bloqueando a minha visão.
Náyshilah... Náyshilah, aqui...
Em meio a névoa negra, ouço uma voz amorosa, porém firme chamando o meu nome.
Sigo a voz, eu vejo um feixe mínimo de luz. Como uma a luz tênue de uma lamparina que escapa por baixo de uma porta ou em um vão estreito de uma janela de um quarto mal iluminado por uma vela.
Tento enxergar pela fresta, mas é um vão muito estreito. No entanto quando penso em desistir de enxergar qualquer coisa, dois rostinhos risonhos entram em meu restrito campo de visão.
Um amor imensurável que nunca pensei ser capaz de sentir faz o meu coração se expandir infinitas vezes e minha alma se aquecer de alegria.
- E então, Náyshilah? Qual deles escolherá? -a voz que pertence a alguém incapaz de sentir algum sentimento mortal, me traz de volta ao presente.
- O quê?
- É muita falta de educação não prestar atenção quando outras pessoas falam com você, Náyshilah! Principalmente quando o assunto diz respeito aos seus filhos!
Ao se dar conta que realmente não tenho ideia do que ela está falando, ela solta um suspiro alto com ar de impaciência.
- Tudo bem, irei repetir, mas apenas mais uma vez. -quanta generosidade da parte dela. - Quando as crianças nascerem, levarei a alma de uma delas e a outra continuará viva, mas será criada por mim aqui em meus domínios. Qual delas irá querer que permaneça viva? O menino ou a menina?
Quanta ironia! A deusa diante de mim é encarregada de levar e trazer as almas que dão a vida um ser, mas ela mesmo não deve ter uma alma e muito menos um coração!
Ela está mesmo pedindo para morrer se acha que vou permitir que alguém tire meus pequenos arco-íris de mim!
- Não!
- Não o quê? Não quer escolher? Tudo bem, eu irei escolher por você quando a hora chegar.
- Não, você não irá tirar nenhum dos meus filhos de mim! -sorrio para ela em um desafio glacial. - E sabe por quê? Porque finalmente entendi qual o verdadeiro poder da Pedra das Sete Luas! A pedra que está em minha posse e nenhum de vocês pode tocar novamente!
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E aí? O que acharam? Quantos quiseram me matar durante o capítulo? E quem adorou as surpresinhas do final? Não se esqueçam de votar *_*
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