•Prólogo•
Alerta de gatilho: insinuação de violência sexual.
As pessoas ao lançarem um olhar na minha direção pela primeira vez, devem deduzir que sou uma pessoa meiga e angelical, por causa da minha aparência.
Mas será que elas enxergam através dos meus olhos tamanho sofrimento que vivenciei há pouco tempo? Conseguem visualizar minha alma escura e repleta de tristeza?
A cada sorriso falso que surge em meus lábios sinto vontade de gritar por socorro. A cada olhar retribuído sinto vontade de falar para se afastarem de mim. Minha mente insiste em levar-me ao que aconteceu naquele maldito dia.
Ainda consigo ouvir a voz dele no meu ouvido, repleta de prazer ante à minha dor. O seu sorriso completamente cínico. Seu corpo pressionando o meu naquela cama. O toque que causou imenso nojo e revirou meu estômago.
Suspiro, passando as mãos pelos braços tentando me aquecer devido a brisa gélida atingindo sem qualquer piedade meu corpo, mais um dia surge através da janela do nosso pequeno quarto. Através dessa mesma janela consigo observar o bairro perigoso no qual vivemos. Não era um lugar assim que queria morar com meus pais e irmãos pequenos.
Infelizmente, no momento que chegamos em Washington há dois meses, o pouco dinheiro que tínhamos apenas podia pagar o aluguel de uma pequena casa nesse bairro. Os primeiros dias foram difíceis até nos adaptarmos à essa cidade. O dinheiro começou a ir embora rápido demais, e o desespero e medo parece permanente nas faces dos meus pais.
E meus irmãos?. Ainda parecem perdidos, contudo, mesmo que tenham apenas três anos, não são tão ingênuos, podem sentir que algo está errado. Aonde morávamos eles estavam indo para a creche, mas aqui não estão indo, pois minha mãe não possui confiança o suficiente pela cidade.
Consigo compreender seu medo, afinal, meus irmãos são como uma luz em nossas vidas desde que nasceram, e se algo acontecesse não saberíamos como seguir em frente. Marta Bennett engravidou novamente aos quarenta e um anos, isso surpreendeu a todos, principalmente à ela que nunca imaginou que engravidaria novamente. A gestação foi delicada por causa de sua idade e sendo gemelar, mas graças a Deus tudo ocorreu bem com ela e os gêmeos, Judith e Daniel. Apenas estranhei no início a grande diferença de idade que teríamos. Na época que nasceram, eu estava com dezoito anos e hoje em dia recém completei vinte e um, no final de fevereiro.
Sinto que a vida está passando em frente aos meus olhos e não estou fazendo nada para mudar isso. Não fui para a universidade cursar fisioterapia, algo que sempre foi meu sonho. Todavia essa informação faz parte das memórias tristes ligadas àquele dia.
Afasto-me da janela e ao desviar dos colchões no chão, sinto um imenso aperto. Ter uma estrutura firme e segura para colocarmos os colchões é um luxo no qual não podemos nos permitir. Saio do quarto rumo as escadas após ter colocado uma blusa moletom, ao descer, a madeira range sob meus pés. Essa casa possui dois quartos, contudo, o outro está inabitável por causa das telhas quebradas formando um imenso buraco. O banheiro fica no final do corredor, ao descer as escadas temos uma sala e a poucos metros se encontra a cozinha. Quando coloco as coisas ruins e boas emcima de uma balança imaginária, posso considerar a casa aconchegante, pois trouxemos algumas coisas da nossa antiga casa.
Não está sendo fácil, mas com o trabalho que consegui em uma lanchonete aqui perto consigo dinheiro o suficiente para termos o que comer. Joel — meu pai — não conseguiu encontrar um emprego, mas de vez em quando nossa vizinha, dona Lúcia, o chama para arrumar algo na sua casa. Ela é uma senhora muito bondosa e, desconfio que faz isso apenas para nos ajudar. Meu pai sempre tenta negar a quantia exorbitante que paga para arrumar algo pequeno e rápido, mas ela balança suas mãos repletas de anéis e diz: Estou apenas ajudando.
Isso aquece o pouco que restou intacto do meu coração, pois ainda existem pessoas boas no mundo.
— Bom dia, mãe — cumprimento ao entrar na cozinha.
Ela está de costas mexendo em algo no fogão. Ao ouvir minha voz se vira na minha direção com um sorriso nos lábios, mas suas íris ainda possuem certa preocupação, dessa vez direcionada a mim.
— Bom dia, minha filha. — Se afasta do fogão e limpa as mãos no pano de prato enquanto caminha na minha direção.
— Onde está o pai e as crianças? — pergunto ao me sentar na mesa.
— Foram à padaria — Senta na cadeira vaga na minha frente. — Estou fazendo ovos mexidos.
Apenas afirmo com a cabeça, tento segurar, mas um suspiro entristecido escapa por meus lábios.
— Ontem Daniel me pediu um carrinho — confesso com pesar, e como esperado a tristeza parece nublar seus olhos azulados como o céu em um dia ensolarado.
Sempre nos sentimos tristes quando Daniel ou Judith pedem algo que não podemos comprar nesse momento. Para comprar um carrinho, que pode não parecer muito caro, poderia afetar algum almoço ou janta. Meu coração se aperta dolorosamente toda vez que nego algo e a expressão triste surge em suas faces angelicais. São crianças tão boas, pois nunca discutem ou fazem birra diante de um "não".
Enquanto vivíamos em Rogers — nossa antiga cidade — que ficava localizada no estado do Arizona, não passávamos por dificuldades. Não éramos ricos, mas nossa vida era estável. Até que tudo desmoronou após o que aconteceu comigo. Morávamos naquela cidade desde que nasci, e em todos os meus vinte anos tive apenas uma amiga, Laryene Alencar. Seus pais eram pessoas influentes, mas isso não afetou nossa "amizade".
Pelo menos era isso que eu pensava até ficar frente a frente com sua verdadeira face.
Nos conhecemos na escola, como a cidade era pequena, tinha apenas uma escola particular e outra pública. Com muito custo meus pais me colocaram na particular. No início achava que ela era uma pessoa boa, não parecia ser esnobe igual as outras meninas. Todavia, depois de alguns anos de amizade, comecei a conhecer uma outra Laryene. Quando estava diante de suas crises mimadas, ignorava. Ingenuamente pensava que era pelo fato dos pais não lhe dedicarem tanta atenção na qual ela desejava.
Nossa amizade durou por muitos anos, temos a mesma idade, só que ao contrário de mim entrar na universidade nunca esteve em seus planos. Durante parte desse tempo, tentei mudar sua visão, mas sempre era repreendida por suas palavras arrogantes: Não preciso disso, Angel. Meus pais possuem dinheiro suficiente para que eu tenha uma vida boa por muitos e muitos anos.
Olhando para trás, consigo perceber o quão cega era em relação à essa mulher que se dizia minha amiga.
Ergo a mão e pressiono os olhos, minha mãe parece estar dizendo algo, mas não consigo compreender. Meus pensamentos levam-me até o dia que tudo começou a piorar, o dia que Laryene me apresentou seu namorado. Quando conheci Bruno, não me senti bem perto dele, parecia que tinha uma negatividade presente ao seu redor, algo sombrio e macabro. Contudo, "minha amiga" estava feliz ao seu lado, e por ela tentei aceitar ele e ignorar a sensação estranha.
Meu corpo estremece com o medo que rasteja como se fosse uma cobra por ele. Lembrar seu nome é algo que desperta esse medo, pois esse homem é o principal culpado por todo o pesadelo que recaiu sobre minha vida, o qual não encontrei a saída até hoje.
Como me arrependo de ter atendido o chamado de Laryene naquele dia. De ter entrado na sua casa. E o pior e mais doloroso arrependimento, ter confiado nas palavras daquele monstro.
— Onde está a Laryene? — A preocupação estava presente na minha voz.
— Ela saiu um pouco para caminhar pelos arredores da propriedade — respondeu Bruno com pesar.
— O que aconteceu? Ela me ligou chorando.
— Seus pais. — Suspirou, frustrado. — Não irão voltar da viagem tão cedo, e o seu aniversário é daqui poucos dias.
Senti um aperto no meu coração, não era a primeira vez que isso acontecia. Contudo, era a primeira vez que minha amiga derramou lágrimas. Passei as mãos pelos cabelos, e deixei meus olhos percorrerem o lugar. A mansão Alencar era tão bela e o que sempre chamou a minha atenção era o jardim. Lembro-me das vezes que vinha até sua casa e ficávamos sentadas no jardim.
— Entre. — Despertei com a voz de Bruno. — Ela não irá demorar, pediu para eu te avisasse.
— Eu... — hesitei por alguns segundos, mas seu tom era tão genuíno que não senti mal em entrar um pouco e esperar para conversar com Laryene. — Tudo bem.
Ao passar por ele um arrepio percorreu meu corpo, mas tentei ignorar, pois minha preocupação era maior que esse receio. Enquanto caminhava até o majestoso sofá, não notei nada estranho, todavia meu sexto sentido gritava para eu fosse embora daquela casa. No momento que um clique da porta sendo trancada percorreu o ambiente, a confusão surgiu em meio aos meus pensamentos.
Por que ele havia trancado a porta?. A pergunta ecoava na minha cabeça. Quando girei nos calcanhares e o encarei, meu estômago se embrulhou, pois suas íris escuras estavam percorrendo meu corpo sem qualquer pudor. Não era a primeira vez que ele fazia isso, mesmo na presença de sua namorada lançava olhares lascivos na minha direção. No início achei que estava imaginando coisas por não ter gostado dele, mas agora tive a certeza que não era apenas algo ilusório.
— E-eu a-acho que vou embora — gaguejei levemente no início diante do medo que percorria meu corpo. — Acabei de lembrar que tenho que buscar os gêmeos na creche. — A mentira escapou pelos meus lábios, e torci para que ele acreditasse. — Diga para Laryene que eu sinto muito, depois voltarei aqui para vê-la.
Caminhei rumo à porta, e um grito escapou pela minha garganta no momento que ele segurou meu braço com força ao impedir meus passos.
— Você está mentindo, Angel — sussurrou, e a sua respiração quente contra meu pescoço embrulhou o estômago mais uma vez. — Que coisa feia. — Estalou a língua. — Sabe o que acontece com meninas que mentem? — perguntou, seu tom repleto de malícia. — São punidas.
— Me solte, Bruno. — Tentei me livrar do seu aperto doloroso. — Eu vou gritar — ameacei sabendo que Laryene possuía muitos empregados.
— Você não vai sair dessa casa, doce Angel. — Acariciou minha bochecha, e as lágrimas começaram a escorrer. — Não sem antes brincarmos um pouco. Sua amiguinha deixou escapar que você é virgem. — Fechou seus olhos com prazer, inutilmente tentei me soltar quando segurou meus braços e nos aproximou ainda mais. — Fiquei imaginando o quão delicioso deve ser estar dentro de você. Hum, vai ser uma delícia. — Mordeu seu lábio inferior, suas íris brilhavam diante de seu prazer.
— Você é louco — gritei enquanto tentava o chutar. — Tenho nojo de você. Me solte!
— Não! — gritou. — Você não vai embora! Pode gritar o quanto quiser, não tem ninguém em casa e Laryene não irá voltar tão cedo. — Abriu um sorriso cínico. — Apenas irá sair quando eu — aproximou seu rosto do meu — tiver me divertido o bastante com seu belo corpo virgem.
E assim ele cumpriu sua ameaça. Gritei e implorei para que parasse, mas não adiantou, ele parecia se divertir ainda mais com o meu desespero. Dentro daquela maldita casa eu vi minha vida ser brutalmente arrancada de mim, posso não ter morrido, mas foi assim que me senti no momento que ele pegou minha virgindade para si de forma tão cruel.
A dor.
As lágrimas.
Todo meu sofrimento causado por culpa dele. Aquela Angel repleta de vida não existia mais, eu me tornei apenas uma casca dessa antiga Angel.
Não pude fazer nada quanto a essa brutalidade. Para a cidade eu era a mentirosa, que havia provocado a situação e tudo era apenas minha culpa. Tentei denunciar aquele monstro, mas não adiantou em nada, sua querida namorada conseguiu o livrar do seu destino e meu boletim de ocorrência foi literalmente jogado dentro da gaveta, esquecido.
Laryene me chamou de vadia, que meu objetivo era roubar seu namorado, por isso dizia que não gostava dele. Tudo era apenas um plano desde o início, que aproveitei da sua tristeza para pegar seu homem e como não aceitei ser rejeitada inventei a história do estupro. Como se não bastasse esses insultos, ela destruiu meu sonho de entrar na universidade local, onde havia conseguido bolsa integral devido minhas boas notas e créditos escolares. Ela usou o poder dos seus pais para cancelar minha bolsa, todos naquela cidade sentiam medo de enfrentar a fúria da família Alencar.
Meus pais ficaram horrorizados com tudo que aconteceu. Pensei que eles não iriam acreditar em mim, iriam me julgar igual os outros. Entretanto, isso não aconteceu, eles ficaram do meu lado.
Quando meu pai tentou ir até a casa da Laryene, acabei o impedindo, não queria trazer mais sofrimento à eles. Conhecendo aquela mulher, ela iria pisar neles sem qualquer resquício de compaixão.
E eu não queria isso.
Durante os dias que se passaram pensei várias vezes em acabar com tudo, retirar minha vida. Não comia, não cuidava de mim e não sentia vontade de fazer mais nada, apenas ficar dentro do quarto. Até que meus pais decidiram que iríamos embora daquela cidade. Tivemos que vender quase todos os nossos pertences para isso acontecer, e com uma pequena quantia em dinheiro deixamos Rogers para trás.
— Filha?
Desperto com a voz da minha mãe, ao erguer os olhos encontro seu olhar preocupado, como sempre.
— Está chorando — murmura.
Toco minhas bochechas e as sinto molhadas, com a manga do moletom limpo o rosto rapidamente.
— Não é nada, mãe.
Mais uma mentira, pois todos os dias sofro as consequências daquele maldito dia. Sou atormentada todas as noites com as lembranças vívidas. Não consigo me aproximar de quase ninguém, seja mulher ou homem, sinto medo do que podem fazer contra mim.
Trabalhar em uma lanchonete tem sido extremamente difícil, às vezes é preciso lidar com algum cliente nojento que sente prazer em jogar suas cantadas baratas. Sempre que sinto o ataque de pânico querendo surgir, penso na minha família e no dinheiro que preciso ganhar para lidar com as nossas necessidades. Apenas isso me mantém em pé todos os dias no trabalho. Sinto um grande vazio na minha alma.
Aqueles sonhos ingênuos de um dia construir uma família?. Foram destruídos, não consigo deixar nenhum homem se aproximar e nem quero que isso aconteça.
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