Capítulo • 26
Alerta de gatilho: insinuação de violência sexual.
Como diria Clarice Lispector: “ O tempo tenta sequestrar meu sorriso, mas resisto como uma criança com medo da mãe ao ralar o joelho. Engulo o choro para não doer mais.”
Uma citação interessante, levando em conta tudo que aconteceu na minha vida. Talvez no início, antes de conhecer Dominic, esse trecho poderia a definir com clareza. Contudo, hoje em dia, paira como um exemplo do caminho percorrido para chegar aonde estou: ter me tornado uma Angel mais forte.
Depois de dias incansáveis batalhando contra mim mesma, chegou o momento de contar tudo ao Dominic. Não foi fácil vencer essa batalha, um pouco mais de um mês sentindo vontade de revelar e desistindo no meio do caminho refém da minha covardia.
Suspiro, acariciando minha barriga, buscando a calma que Hope sempre me transmite. Minha pequena esperança está com recém completados cinco meses. Crescendo perfeitamente saudável, e a ansiedade de tê-la em meus braços aumenta a cada dia.
Levanto-me da cama rumo ao banheiro, felizmente os enjôos se cessaram mês passado. Ao cravar meus olhos no espelho, encontro uma ferocidade presente neles que indica a minha força, preciso desse sentimento para não desistir mais uma vez.
— Angel? — Ouço Isis, pelos passos deve ter entrado no quarto, mas tímida o bastante para vir até onde estou. — Posso entrar?
— Claro! — Pego a escova para iniciar a rotina matinal. Logo Isis surge na porta do banheiro no momento que coloco a escova na boca. — Dominic chegou? — pergunto segundos depois, a boca cheia de espuma, isso arranca um breve e raro sorriso dela.
Ele sempre aparece antes de ir para o quartel.
— Ainda não, mas acho que daqui a pouco ele chega. — Franze a testa, e sei o que irá perguntar a seguir. — Como você está?
— Estou bem, e essa pequena também — respondo após lavar a boca.
— Foi uma surpresa, não tão surpresa, quando revelou que era uma menina.
— No fundo tínhamos essa sensação, mas ter a certeza... É algo mágico.
Arrumo os cabelos em um rabo de cavalo.
— Sim — concorda, todavia um traço de tristeza está presente em sua voz. — Agora podemos decorar o quarto dela.
— Sim. Estou muito ansiosa para isso — confesso.
— Seus pais terem emoldurado os sapatinhos dela e pendurar na sala... Foi algo lindo.
— Sempre me emociono quando passo por eles.
O sorriso desponta em meus lábios, a surpresa da qual estava pensando naquele dia se consistia em presenteá-los com um par de sapatinhos vermelhos com um delicado laço branco, e para especificar o significado um bilhete escrito: Logo estarei chegando para fazer bagunça. Com carinho, Hope. Coloquei dentro de uma caixa branca, algo discreto e que não indicasse o seu conteúdo. Observar minha mãe abrindo a caixa e pegando os sapatinhos, foi surpreendente. As lágrimas condenando a emoção de ambos... Não tem como especificar com palavras, apenas posso sentir ao lembrar-me.
— Os primeiros sapatinhos dela...
— Emoldurados pelos avós — completo. — Uma bela história para se contar quando estiver grande.
Isis se despede e observo a ruiva caminhar um pouco cabisbaixa até a porta. Expulso o ar dos pulmões, frustrada. Queria espantar toda essa dor dela, contudo, não será um caminho fácil.
Termino de me arrumar para o trabalho, e não me sinto mais desanimada. Não estou mais na lanchonete, sair foi a melhor escolha. Entretanto, não posso dizer que foi uma saída pacífica. A Bruxa Má do Oeste fez um show — como sempre —, e seu marido teve que a silenciar, pois o local estava lotado de clientes. Felizmente, Dominic estava ao meu lado, seu carinho me manteve calma. Trabalhar na floricultura tem sido maravilhoso, e a dona é um amor.
Saio do banheiro com passos rápidos até o guarda-roupa. Me arrumo no automático. Às vezes fico pensando nas suas palavras naquela noite em que jantamos com sua família. Ele não tocou mais na palavra "namoro". Me sinto tola pela tristeza que surge, mas é inevitável, pois meus pensamentos sempre retornam para aquele momento em especial.
— Você precisa parar de se iludir, Angel — me repreendo. — Ele pode acordar algum dia e perceber que ter uma família em suas mãos, não é o que deseja.
Todavia, sei que no fundo são pensamentos ridículos, criados pela minha mente paranóica para atormentar-me. Dominic não é aquele homem de falar apenas da boca para fora, e sim de ações, provando que suas palavras não são em vão.
— Devo sair correndo enquanto ainda tenho tempo? — Limito-me apenas a revirar os olhos. — Quando dizem isso para mim, tenho quase certeza que fiz alguma merda e não me lembro.
— Que coisa feia... Anda aprontando muito?
Estou tentando aliviar minha tensão, antes que perca a coragem. Há poucos minutos apareceu lá em casa e me convidou para jantar no seu apartamento. Quase deixei uma gargalhada escapar diante de tamanha ironia imposta pelo destino. Como se ele estivesse dizendo: essa é a sua chance garota.
— Às vezes. — Um meio sorriso surge em seus lábios.
Inspiro e solto o ar lentamente, chegou a hora.
— O motivo dessa conversa é sobre o que aconteceu comigo. Vou contar tudo.
— Tudo? — pergunta alguns minutos depois, igualmente tenso.
— Sim, tudo.
— Tem certeza?
Não preciso olhar na sua direção para saber que seus belos olhos estão cobertos de preocupação e quem sabe salpicados de orgulho. Esse é um grande passo vindo de mim.
— Sem mais segredos.
As palavras reverberaram pelo espaço quase pequeno do automóvel. Seu suspiro foi a única resposta, e sinto orgulho de mim mesma por estar seguindo esse caminho, depois de tantas pedras.
O caminho até seu apartamento foi percorrido em silêncio, nesse ínterim, devo ter adormecido, pois me assustei com um toque no meu ombro. Piscando os olhos para despertar, encontro um Dominic sorridente a poucos centímetros do meu rosto.
— Princesa dorminhoca — diz suavemente enquanto acaricia minha bochecha.
— Desculpa. — Um bocejo escapa, minhas bochechas se tornam quentes. — Não me olhe assim. Estou carregando uma princesa, e ela está me deixando muito cansada ultimamente.
— Sempre colocando a culpa na pequena.
Me ajuda a retirar o cinto, mesmo que não tenha a necessidade.
— Lógico que não.
— Vou fingir que acredito. — Me lança uma piscadela antes de sair do carro e dar a volta para abrir a minha porta. Um perfeito cavalheiro. — Não precisa me contar nada hoje. Espero o tempo que precisar.
— Eu sei. — Aceito sua mão estendida. — Quero te contar.
— Tudo bem. — Beija o dorso da minha mão.
Ao entrarmos no seu apartamento não me surpreendo — como na primeira vez que estive aqui — com a sua estante repleta de livros. Talvez Dominic tenha mentido um pouco sobre pegar os livros de sua mãe.
— Sônia está de folga. — Coloca as chaves no aparador e retira a jaqueta, ficando apenas com a camisa branca. — Foi visitar a filha que mora numa cidade próxima a Washington.
— Oh, entendo. — Espelho suas ações e retiro meu casaco.
— Quer beber algo?
O sigo até a cozinha, e o cheiro de comida caseira faz meu estômago roncar vergonhosamente alto. Como sua governanta não está em casa, ele deve ter preparado o jantar.
— Comida, então — diz com um sorriso nos lábios.
— Acho que Hope concorda.
— Ah, claro, Hope.
Apenas os barulhos dos talheres quebraram o silêncio presente no apartamento. Luca e Brandon vieram buscar a comida, contudo, não aceitaram sentar na mesa conosco. Dizendo Brandon: não queriam atrapalhar o clima. Ele é uma incógnita para mim, por vezes aparenta ser sério e outras age como um verdadeiro palhaço.
— Senta aqui.
Dou tapinhas no espaço ao meu lado. Satisfeita após jantar e, provavelmente Hope também, fui me acomodar no majestoso sofá. Contudo, Dominic permaneceu em pé como uma estátua no meio da sala.
— Angel...
— Quero te contar — profiro devagar, dando ênfase em cada palavra.
Consigo convencê-lo, pois logo acomoda seu grande corpo ao meu lado. Nossas mãos se unem como dois imãs. Minha coragem parece estar renovada. Suspiro antes de iniciar meu relato.
— Conheci Laryene na escola, ela foi minha primeira e única amiga enquanto morávamos em Rogers. Seus pais eram... Não, ainda são muito influentes naquela cidade. — Engulo em seco, apenas mantenho os olhos cravados nas nossas mãos. — Parecia que isso não afetava nossa amizade. Como eu era tola... Tão tola — acabo divagando, perdida em memórias.
A cada palavra que escapa pelos meus lábios, parece que estou assistindo um filme baseado na minha vida. Conto sobre como ela era esnobe, e eu como uma idiota nunca reparei suas ironias sobre minha condição financeira. Todavia, hoje consigo olhar para trás e enxergar cada momento que agiu de forma podre — isso é pouco para defini-la — comigo.
— Tudo apenas piorou quando Bruno apareceu. — Minhas mãos ficam trêmulas, ele percebe e as aprisiona entre as suas mãos fortes e reconfortantes. — Ele parecia possuir uma escuridão ao seu redor. Algo ruim e cruel. No início pensei que estava paranóica, mas não estava. Os seus olhares lascivos...
O estômago se revira bruscamente, e ainda não sinto coragem de olhar para Dominic. A minha respiração acelera, o ataque de pânico está a espreita ameaçando surgir. Fecho os olhos e inicio uma contagem baixinho para controlar esse medo. Inspiro e solto o ar lentamente a cada número, o toque terno no dorso das minhas mãos me ajuda a não sucumbir ao pânico.
— Calma, estou aqui. — Sinto o calor dos seus lábios na minha têmpora. — Você não precisa continuar.
— Preciso — minha voz não passa de um murmúrio rouco.
Eu sou forte. Repito como um mantra por alguns minutos. Preciso ser forte e contar como a minha pureza — por mais que isso não devesse possuir o poder de classificar as mulheres — foi roubada de forma atroz e sádica. Como Hope, nossa pequena esperança, foi concebida. Todavia, infelizmente isso é algo que acontece com milhares mulheres, e suas vozes são caladas pelo medo e a sociedade cruel que as culpam pelo ocorrido.
Ela provocou;
Olha as roupas que ela usa, está pedindo para ser abusada;
É culpa dela, o homem é fraco com seus desejos.
Sinto nojo dos que pensam dessa forma, são hipócritas. Ninguém merece passar por isso. É desumano dizer que a culpa é da vítima, seja mulher, homem e até crianças. Ninguém merece.
— Laryene era apenas sorrisos após iniciar o namoro com Bruno. Por causa de seus olhares maliciosos, acabei me afastando dela. Não queria atrapalhar sua felicidade com minhas paranóias. — Solto uma risada engasgada, as lágrimas ameaçam irromper dos meus olhos a qualquer momento. — A burra aqui não ouviu seu sexto sentido. Não percebeu como Laryene era falsa. Como uma idiota, fui atrás dela após receber uma ligação pedindo ajuda. — Cuspo, essas palavras deixam um gosto amargo na minha boca. — Se eu não tivesse entrado naquela maldita casa, nada teria acontecido. Não teria sido vítima daquele monstro nojento! — grito, as lágrimas escorrem pelas minhas bochechas sem qualquer piedade. — Naquele dia fui violentada, Dominic. Esse monstro pegou minha pureza para si de forma nojenta. Foi assim que nossa Hope foi concebida: em um ato cruel e nojento!
Os soluços escapam de forma horrível e engasgada. Nossas mãos se soltaram quando comecei a gritar, nem consigo olhá-lo, tenho medo do que irei encontrar em suas íris. Assusto-me com o estrondo de vidro se estilhaçando. Ergo a cabeça e através dos meus olhos embaçados encontro Dominic de costas, em uma de suas mãos tem outro vaso e em questão de segundos vai de encontro a parede.
— Porra!
Seu corpo estremece e em poucos passos se aproxima da parede. As lágrimas parecem cessar um pouco no momento que ele começa a desferir uma série de socos nela.
— Dominic — sussurro.
Levanto-me do sofá receosa, ao ouvir minha voz parou de desferir os socos. Contudo, ainda está de costas, arfando como se houvesse corrido por horas. Com poucos passos me aproximo, hesito por alguns segundos antes de abraçar sua cintura, apoio a bochecha no meio das suas costas. Antes que ele diga algo, afasto-me assustada e coloco as mãos na minha barriga.
— Angel! — Ele se vira e cai de joelhos na minha frente. — O que foi? Aconteceu alguma coisa? Me desculpa, princesa.
— Ela se mexeu — sussurro, com medo desses leves tremores pararem.
— Ela se mexeu?
Dominic parece estar em estado de choque, os olhos arregalados.
— Acho que ela está preocupada com o papai dela.
Deslizo uma mão por seus fartos cabelos, e a outra permanece na minha barriga.
— Agradeço todos os dias por vocês terem aparecido na minha vida — murmura, sua boca se aproxima da minha barriga e ele deposita um singelo beijo, reverente. — Queria sentir ela se mexendo... — Sua voz se desvanece. — Princesa, isso que você me contou...
— Não. — Coloco o dedo nos seus lábios. — Vamos esquecer um pouco esse momento. Hoje venci uma grande batalha: contar tudo para você. Agora, parece que um peso foi retirado dos meus ombros.
— Vou protegê-las com a minha vida. — Rosna, se levanta e emoldura meu rosto com suas mãos. — Quando um McDemott ama, sempre é intensamente. — Antes que o cérebro processe, ele encosta seus lábios nos meus. — Desculpa. — Se afasta, sinto sua respiração a poucos centímetros do meu rosto. — Estou indo com calma, princesa. Sempre com calma.
Abraço sua cintura, o barulho ritmado de seu coração desperta o conforto e a segurança. Sinto que finalmente cheguei em casa após muito tempo vagando sem rumo.
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