glory days | carlos sainz
— Não vejo a hora dessa temporada acabar.
Olho por cima do ombro, franzindo o cenho em uma careta entre a confusão e o divertimento. América está parada sob o batente da porta, de braços cruzados e com um bico desgostoso nos lábios cheios.
— Por quê?
— Pra eu poder atear fogo nesse uniforme — ela resmunga, descendo o olhar para a própria roupa e torcendo ainda mais o nariz. — Se eu soubesse que a Ferrari estava tão mal de designer, teria indicado a minha irmã pro cargo. Tenho certeza que a gente ia estar muito mais bem vestido agora.
— Você não vai superar isso tão cedo, né? — Balanço a cabeça em negação, rindo baixo ao me virar totalmente para ela.
— Tão cedo? — América ergue as sobrancelhas. — Não vou superar nunca.
— Fica tranquila. Só faltam... — faço uma pausa dramática, fingindo pensar — todas as corridas do calendário desse ano.
Minha preparadora física revira os olhos.
— Ha, ha. Hilário, cabrón. Muito engraçado mesmo. Só por isso, a primeira rodada hoje é por sua conta.
— Primeira rodada? — Junto as sobrancelhas.
— Tequila, Sainz. Tequila. Preciso sair pra beber. Você já tá pronto? Podemos ir? — América suspira.
— Ei... — Me aproximo, a segurando pelos ombros e procurando seus olhos com os meus. — O que aconteceu?
— Aconteceu que hoje é sábado e o último dia de testes, e nós não precisamos viajar amanhã porque já vamos ficar aqui pro início da temporada — explica, mas nem ela parece comprar a própria mentira. Semicerro os olhos. — É sério, cabrón. Só quero sair e relaxar um pouco antes de a nossa rotina virar a confusão que você já conhece, até melhor do que eu.
Depois de mais alguns momentos apenas a encarando, é a minha vez de suspirar, decidindo deixá-la ter a última palavra, pelo menos por ora. Depois de três anos ao lado de América, a conheço o suficiente para saber que, alguns shots de tequila depois, ela vai me dizer tudo provavelmente sem que eu precise sequer perguntar.
— Tudo bem, cariño. Tequila, então. Mas você sabe que não é exatamente a tarefa mais fácil do mundo conseguir bebida por aqui, certo?
— Eu sei. Por isso mesmo já tenho uma planilha com a relação de todos os lugares próximos do nosso hotel que vendem álcool. Além do mais, o Ramadã desse ano só começa em abril, então ainda não é tão difícil assim conseguir um drink. — Ela finalmente sorri, ainda que pouco, parecendo orgulhosa de si mesma.
E ainda que eu não vá admitir, também estou. Por mais tempo que eu passe com ela, nunca deixo de me surpreender com a sua dedicação e organização metódica. Me limito a espelhar a expressão divertida que América sustenta, chacoalhando levemente a cabeça em descrença.
— E então? Vamos?
— Vámonos, Reyes. Vámonos. — Encaixo a mochila nas costas e a sigo para fora da pequena sala reservada para mim dentro das instalações da Ferrari, antes de deixarmos de vez, pelo menos por alguns dias, o Circuito Internacional do Bahrein.
América Reyes sempre foi uma força da natureza. Quando meu primo e empresário anunciou que havia encontrado a treinadora ideal para marcar e me ajudar no processo de mudança de equipe — na época, da Renault para a McLaren —, ele não estava exagerando. A espanhola — uma coincidência louvável, diga-se de passagem —, com a sua baixa estatura e nariz empinado, conseguiu me colocar na linha como nenhum outro preparador físico havia feito.
Se atualmente estou na minha melhor forma física possível, devo isso a ela.
A grande questão é que, superada a fase inicial de adaptação e a impressão de que ela poderia desferir um soco bem no meio do meu nariz a qualquer momento, eu percebi que, muito mais do que uma treinadora, eu havia ganhado uma parceira. Alguém que, apesar de não levar o menor jeito para demonstrar sentimentos com palavras, nunca falhou em fazer isso com ações. Com o tempo, eu entendi que podia contar com América a qualquer momento, para qualquer coisa, profissional ou não. E ela entendeu que era recíproco.
Exatamente por isso, algumas horas depois e eu ainda a estou seguindo, dessa vez porta adentro de uma casa noturna em Manama, amplamente frequentada por estrangeiros, segundo a espanhola.
América não perde tempo, pedindo duas doses para cada um assim que nos sentamos em dois dos últimos bancos disponíveis em frente ao balcão do bar. Ela ergue o copo na direção do meu, com um dos seus raros sorrisos largos no rosto, e é impossível não sorrir de volta.
— Salud! — comemora, brindando antes de virar toda a tequila de uma vez só. Ao contrário de mim, sua expressão sequer treme com o álcool descendo pela garganta.
Mesmo vestindo apenas uma regata preta lisa, que contorna sua silhueta e termina onde a calça jeans rasgada nos joelhos começa, ela se destaca de todas as outras pessoas ali. Com as pernas cruzadas, os cotovelos apoiados sobre o mármore do balcão e o cabelo castanho em ondas balançando no ritmo da música alta que toca, o melhor adjetivo para descrevê-la não pode ser outro senão deslumbrante.
Algumas doses e conversas despretensiosas mais tarde, decido tentar a sorte e resgatar o assunto de mais cedo.
— Que horas vai ser, cariño?
— Hein? — América franze o cenho, inclinando o tronco na minha direção para ouvir melhor. — Do que você tá falando?
— Quero saber que horas você vai me contar o que aconteceu hoje pra te deixar ansiosa daquele jeito.
Sua expressão alegre murcha quase instantaneamente. Ela abre a boca, pronta para dar alguma outra desculpa, mas quando seus olhos finalmente encontram os meus, América para, inclinando a cabeça para o lado enquanto me estuda minuciosamente. Ela suspira, passando a mão pelo rosto.
— Você — a espanhola finalmente diz, em tom de derrota. Ela vira o último shot que pediu e ainda estava em cima do balcão antes de continuar: — Você aconteceu, cabrón.
Arregalo os olhos, pego completamente de surpresa. Ainda que escutar aquilo me preocupe, consigo identificar outro sentimento espreitando sob a minha pele. Algo muito parecido com expectativa.
— Como assim eu aconteci?
— Eu me preocupo com você, Sainz. Muito. Tô uma pilha com essa droga de temporada, exatamente como fiquei no início de todas as outras, desde 2019. Antes a preocupação era por mim, principalmente no primeiro ano, com o emprego novo e toda aquela coisa. Mas agora... — América balança a cabeça em negação, parecendo lutar contra os próprios pensamentos. — Agora eu quero que você tenha o que merece. Quero que tenha como mostrar tudo o que sabe fazer com maestria. Quero que as pessoas reconheçam isso.
Levo alguns segundos para assimilar tudo o que acabei de escutar, sem saber se estou mais impressionado com as palavras ou, vindo de América, com a quantidade delas. Não posso evitar sorrir fraco, a encarando com o mesmo carinho que vejo nos seus olhos escuros.
— Eu vou ter tudo isso, cariño. Principalmente com a sua ajuda. A minha primeira temporada na Ferrari superou as expectativas de todo mundo. Ou você esqueceu que me ajudou a conseguir o quinto lugar no campeonato? — Arqueio as sobrancelhas, alargando o sorriso. — Além do mais, se a gente desconsiderar a hora extra da Haas, o melhor tempo do dia de testes de ontem foi meu, mesmo com areia na pista e todas aquelas bandeiras vermelhas. Vai ficar tudo bem, Reyes. Não precisa se preocupar.
— Não sei, não — seu tom desconfiado me diverte. — A Ferrari já me traumatizou o suficiente em uma única temporada. Não sei se consigo colocar a minha mão no fogo por eles e acreditar que esse ano as coisas vão ser melhores.
A encarando com um pouco mais de seriedade, cubro uma das suas mãos com a minha.
— Então coloca a sua mão no fogo por mim. Se eu consegui o quinto lugar com o carro do ano passado, posso conseguir pelo menos o mesmo resultado esse ano.
Pressionando os lábios em uma linha fina, América assente, virando a palma da mão para cima e apertando meus dedos entre os seus.
— Tudo bem. Você tem razão. Não sei o que me deu pra ficar assim. Eu só... — Ela fecha os olhos e chacoalha a cabeça, desistindo de tentar organizar os próprios pensamentos.
— Você tem coisas mais importantes com as quais se preocupar — aponto, recuperando seu olhar atento sobre mim. — Precisa superar o seu preconceito pelo nosso uniforme novo, por exemplo.
Semicerrando os olhos, América morde o interior da bochecha para conter um sorriso enquanto ergue o dedo do meio na minha direção, ficando de pé.
— Vem, vamos dançar um pouco. Toda vez que você me provocar com isso vai ter que pagar um preço.
— Seu desejo é uma ordem, mi reina. — Também me levanto, deixando minha cerveja sobre o balcão e mais uma vez a seguindo, até a pista de dança.
Apesar da diversão merecida e necessária, o cansaço acumulado depois de três longos dias de testes de pré-temporada não demora a nos alcançar. Sem precisar dizer uma palavra, concordamos sobre a hora de ir embora com nada além de um olhar e pegamos um táxi de volta para o hotel.
Nos poucos minutos de trajeto, América consegue cochilar sobre o meu ombro, e preciso de toda a coragem que tenho para acordá-la quando o carro estaciona. Por causa do horário, o tempo fresco e o céu estrelado são as nossas únicas companhias até entrarmos no hotel.
— Ei... — América murmura, pouco antes de destrancar a porta do seu quarto, ao lado do meu. — Obrigada por hoje. Pela companhia e por me acalmar.
Sorrio de lado, acenando com a cabeça.
— Não foi nada, cariño. Você já fez muito mais por mim. Vê se descansa, tudo bem?
— Deixa comigo. — Ela devolve o sorriso, soprando um beijo antes de finalmente entrar no quarto.
Assim que também fecho a porta do meu, solto todo o ar que sequer percebi que estava segurando em um longo suspiro. No meu peito, a mesma sensação de mais cedo permanece. É um tipo novo de expectativa, quase desconfortável, como se não fosse embora até que eu fizesse algo a respeito.
Mas o quê?
Incomodado, decido tomar um banho antes de dormir, mas nem depois de alguns minutos sob a água morna consigo me livrar da ansiedade que rasteja pelas minhas veias. Deitado na cama, encaro o teto branco enquanto tento entender o que está acontecendo. A sensação é muito semelhante à de falta. Por algum motivo, a noite ainda parece incompleta.
As palavras de América de mais cedo se repetem na minha cabeça como um disco arranhado. A lembrança do seu olhar ao mesmo tempo preocupado e caloroso me deixa inquieto, e a palma da mão com a qual segurei a sua ainda formiga, como se sentisse falta do contato.
Impulsiono o corpo para cima, ficando sentado sobre o colchão. Seja o que for, está claro que o sentimento tem relação direta com a espanhola. Encaro a calça de moletom e a regata branca, ponderando se a roupa é adequada para deixar o quarto, mas no segundo seguinte já estou abrindo a porta, sem pensar muito.
E então dou de cara com América, parada à minha frente com uma mão erguida em punho, prestes a bater no meu quarto. Ela arregala os olhos, abaixando o braço.
— Oi — sussurra, depois de alguns segundos.
— Oi — sussurro de volta, sem conseguir tirar os olhos dela. — Entra.
Com passos hesitantes, ela passa por mim antes de eu voltar a fechar a porta.
— Não consigo dormir — diz, ainda me encarando.
— Eu também não — confesso.
América assente devagar, e tudo o que fazemos pelos momentos seguintes é sustentar o olhar do outro, sem trégua.
— Você ia a algum lugar?
— Seu quarto — digo simplesmente. Sua garganta se mexe quando ela engole em seco.
— Por quê?
— Não sei.
Ela umedece os lábios com a língua, assentindo mais uma vez.
— Também não sei por que vim — fala, respirando fundo. — Estava pensando sobre mais cedo. No incômodo que senti. Eu tinha me convencido que estava preocupada com você porque sou sua treinadora. Sua amiga. Mas... acho que não é só isso.
— Eu também estava pensando sobre mais cedo. Sobre você. E não é só isso — afirmo, ainda que não saiba de onde vem tanta certeza.
Estamos a menos de um metro de distância. América me encara de baixo, com os pés descalços no chão e a calça preta combinando com a minha. Com ela ali, percebo que a minha inquietação diminuiu, ainda que a expectativa passeando pelo meu peito só tenha aumentado.
— A gente não pode — ela finalmente fala, balançando a cabeça em negação. — Não. É complicado demais.
— Eu não acho que a gente deva se preocupar com o que pode acontecer. Aqui e agora. É tudo o que importa.
— Carlos...
— Estou falando sério, América. — Me aproximo, segurando seu queixo para que ela não desvie o olhar. — Eu não quero pensar demais. Não quero ir devagar ou esperar que isso esfrie — digo, e posso afirmar que ela sabe exatamente ao que estou me referindo.
— Não sei se é o melhor momento — ela sussurra, mas seus olhos dizem o contrário. — Talvez depois...
— O depois não existe, cariño. Se ficar esperando pelo melhor momento, vai esperar pra sempre. O melhor momento é sempre esse. Agora.
América concorda com a cabeça, devagar. Os lábios entreabertos denunciam sua respiração descompassada. Ainda segurando seu queixo, consigo captar com exatidão o momento em que ela toma a decisão, pelo brilho que atravessa seus olhos castanhos.
— Agora — repete em um sussurro, antes de colar os lábios nos meus.
Um suspiro de alívio deixa o meu peito, e enlaço sua cintura com os dois braços, a pressionando com firmeza contra o meu corpo antes de aprofundar o beijo. Enquanto sua boca macia toca a minha com a mesma dose de cuidado e desejo, todo o aperto que incomodava meu peito se dissipa como fumaça. Ela emaranha os dedos entre os meus fios de cabelo, e é a sua vez de suspirar entre o beijo, me fazendo sorrir.
Quando finalmente nos separamos, minutos ou horas depois, apenas nos encaramos, como mais cedo. Dessa vez, entretanto, ao invés de preocupação, um brilho de felicidade ilumina as feições de América, destacando seus lábios vermelhos. Se, no bar, a única palavra capaz de descrevê-la era deslumbrante, agora não existe um adjetivo sequer que faça jus a ela. Em nenhum dos idiomas que conheço.
— Qual é o plano agora? — ela pergunta, ainda levemente ofegante.
— Te beijar até amanhã — digo, com simplicidade. — Fora isso, nenhum.
Abrindo um sorriso largo, América passa a língua pelos lábios de forma divertida.
— Tudo bem. Me parece um bom plano. Acho que posso me contentar com ele.
— Fico feliz em saber. — Devolvo o sorriso, voltando a me aproximar e contornando sua boca com a ponta dos dedos. — Um dia de cada vez, tudo bem?
— Um dia de cada vez, cariño — ela concorda.
e não é que quem é vivo sempre aparece mesmo?
fui descaradamente coagida a escrever esse conto, que acabou nascendo de um surto de criatividade que durou mais ou menos da madrugada de ontem até hoje cedo. obrigada por isso, laura. escrever mais de duas mil palavras em menos de doze horas até me faz pensar que eu ainda sei o que tô fazendo 🤪
espero que tenham gostado dessa leve volta dos mortos de apex! a gente é assim mesmo, meio fernando alonso. diz que vai aposentar, mas volta e meia dá as caras de novo pra lembrar que não tem ninguém morta aqui (ainda).
um beijo especial pras minhas meninas que estavam sedentas por um continho com o espanhol. espero que tenha atendido às expectativas! 💙
vejo vocês numa próxima!
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