E mais uma vez abandonado, será que alguma vez eu não tenha sido deixado sozinho em casa? Me pergunto o que meu pai estava fazendo. Suponho que tenha ido à alguma festa e se embebedou o bastante para esquecer o filho em casa. Como é que eu fui ter pais tão irresponsáveis e egocêntricos? 

Suspiro, é inútil se focar no que não se pode mudar, meus pais são o que são, jovens imaturos, só mesmo o tempo poderá mudá-los. Não perco mais nem um minuto nesse dilema e escolho minha próxima carta. Quero sair de Lugar Algum, o quanto antes melhor.

***

Ouço a voz empolgada do Liam antes mesmo de o cenário se desanuviar, sorri ainda sem saber o motivo de tanta euforia, mas se ele está tão feliz só posso esperar por uma memória agradável. 

"Vô, e no circo vai ter um mágico e ele vai se cortar no meio! O senhor sabe fazer isso, se cortar no meio?" O menino estava inquieto gesticulava e dava pulinhos no mesmo lugar, o avô também estava animado, contagiado pelo neto.

"Ah, não. Esse eu não me atrevo a fazer, é a mágica mais perigosa, imagina se você não conseguir desfazer a mágica!" O senhor entra na onda do menino.

"Ia ser muito engraçado ver só as pernas dele andando por aí" o garoto ria, "a parte de cima ia ter que andar plantando bananeira." Liam riu-se mais ainda com essa nova imagem.

"E o que mais terá lá?" Perguntou o avô.

"Eu não sei." A criança parou pensativa. "O meu pai disse que vai ter várias barracas de comida e brincadeiras, eu vou ganhar um montão de prêmios, você vai ver."

"É mesmo?! Essa eu quero ver." disse o senhor em tom de desafio. "Se você conseguir pelo menos três prêmios eu te ensino truques de mágica." Os olhos de Liam se arregalam com a perspectiva.

"De verdade?! Vai finalmente me ensinar mágica?" 

"Claro! Mágicos não mentem!" Disse o avô com veemência e um toque de irônia.

"Você vai ver então." Disse Liam confiante.

"Ver o que?" Perguntou a avó que acabava de entrar no cômodo.

"Vó!" Liam correu para abraçá-la. "Meu pai vai me levar no circo e vai tem um mágico e um monte de barracas de brincadeiras, o vô disse que se eu ganhar três vezes vai me ensinar mágica!" A senhora olha para o marido sentado em sua poltrona, ele dá de ombros como resposta.

"E quando será isso, Liam?" perguntou a avó.

"Sábado!" Disse o menino prontamente.

"Hoje ainda é quarta-feira, então guarde essa sua energia para depois." Disse a senhora colocando a mão na cabeça do menino.

Uma névoa envolve a memória e quando se desfaz eu não estou em Lugar Algum, como aconteceu das outras vezes. A memória não terminou?! Estou em outra lembrança, teriam elas se emendado e se tornado uma? Talvez seja isso…

°°°

O burburinho e o tráfico constante de pessoas dificulta minha localização, demoro um pouco para identificar Liam saindo de uma tenda juntamente com o pai e mais uma mulher. Me aproximo.

"Ele nem se cortou no meio!" Dizia Liam num tom decepcionado e indignado. "Eu queria ter visto ele cortado em dois, ele nem fez isso! Esse mágico é um mentiroso. O vô disse que mágicos não mentem, mas esse é um grande mentiroso, o vô é um mágico melhor que ele!" O menino bufou zangado.

"Ta bom, Liam. Já entendi, ele é um charlatão." Dizia o pai tentando aplacar a fúria da criança. "Você não quer comer alguma coisa? Vou comprar o que você quiser." 

"O que eu quiser?!" O menino parecia maravilhado, logo esquecendo da frustração causada pelo mágico de araque, Liam olhou em volta procurando entre as barracas de comida qual mais lhe agradava. "Não consigo ver o que tem." Queixou-se no final.

"Vamos andar por aí então, assim Liam vai poder ver suas opções de perto." Sugeriu a mulher.

Olhando-a mais de perto ela me parece familiar, uma vaga ideia de que já fomos apresentados me vem à mente. Acredito que tenha sido pouco antes de meu pai me falar do circo, ele me apresentou a essa mulher disse que era sua namorada e que eu deveria ser legal com ela, seu nome é Helena. Ela é muito gentil e foi um dos primeiros adultos - tirando meus avós - a me dar alguma atenção, Helena demonstrava gostar de mim e eu retribuía o sentimento.

O trio rodou pelo festival a procura de algo que Liam gostasse, acabou escolhendo um cachorro-quente os outros dois o acompanhou no lanche. Ao terminarem o garoto estava todo lambuzado de ketchup e a mostarda, Helena o limpou o melhor que pode com o guardanapo, sua afeição pelo garoto é quase palpável.

"Pai, podemos ir nas barracas de brincadeiras agora?" Pediu Liam. "O vô disse que se eu ganhar três prêmios ele vai me ensinar mágica!" É claro que ele não se esqueceria disso. 

O pai olha para a namorada que confirma com a cabeça sorrindo pelo entusiasmo do menino. A primeira barraca em que pararam era a de uma pescaria, havia vários peixes de plástico boiando em uma pequena piscina, Liam não demorou muito para conseguir fisgar seu peixinho amarelo, como prêmio ele recebeu um chaveiro do Nemo, ficou muito feliz com sua conquista e confiante também, rompendo para a próxima barraca sem hesitação. O próximo jogo escolhido foi o de acertar algumas latas empilhadas com três bolas de tênis, o objetivo era derrubar todas as latas  para ganhar o prêmio, mas Liam não conseguiu dessa vez, faltou duas latas, mas o pai o ajudou na nova tentativa e conseguiram o boneco de um soldado como prova da conquista. Por último foi a barraca das argolas, foram preciso três tentativas para ganharem qualquer coisa mesmo com a ajuda do pai e até mesmo de Helena, mas Liam estava satisfeito, conseguira seus três troféus que mostraria para o avô o quanto antes, e assim ter suas aulas de mágicas. Sei que ele vai ficar muito decepcionado quando descobrir que tudo não passa de truques baratos, mas no momento ele está tão feliz, não há como destruir sua ingenuidade agora. O pai parece pensar o mesmo que eu e o deixa tagarelar sobre como ele vai se tornar um grande mágico, que fará as coisas levitarem e que se cortaria ao meio. Todos sorriam satisfeitos enquanto voltavam sem pressa para casa.