III. Liam
Pela primeira vez desde que cheguei a Lugar Algum, cogitei a ideia de morrer, de ir para o Mundo do Mortos e renascer em uma nova família na qual eu não seria tão negligenciado. O que mais me indignou foi o fato de que os pais saíram de casa sem nem pensar duas vezes em deixar uma criança de oitos anos sozinha e à própria sorte, criaturas assim não deveriam nunca ser chamadas de pais. Se eu renascer talvez tenha sorte de parar em uma família que se importe ao menos um pouco mais que essa. Ainda não sei muita coisa, mas o que seria bom o bastante para me segurar àquela vida cuja a qual duvido que tenha melhorado com o tempo?
Talvez minha única motivação esteja ligada ao sentimento de preocupação e responsabilidade que sinto pela coisa que devia estar fazendo quando morri. Esse sentimento é a única coisa da qual tenho certeza, a única coisa concreta que me faz prosseguir nessa busca insana por memórias que não me dão as respostas que eu quero e pelo contrário, só me trazem mais dúvidas. Respiro fundo e tento esvaziar minha mente, eu tenho um objetivo a cumprir e desistir não é uma opção válida. Enquanto esse sentimento estiver em meu peito, eu não vou escolher morrer por nada, mesmo com uma vida bagunçada como a do pequeno Liam, eu não vou desistir. Vou continuar minha busca sem mais hesitar.
No chão escuro tem ainda mais cartas que da última vez, como se cada memória que eu assistia me ligasse a várias outras do mesmo jeito que nosso cérebro funciona um pensamento que leva a outro, que leva a mais outro e assim por diante. Talvez essa seja uma das funcionalidades de Lugar Algum. Fecho os olhos, pego uma carta aleatória pronto para embarcar em mais uma desventura.
***
Dessa vez, Liam está sentado à mesa em uma cozinha pequena que mal sobrava espaço para transitar, no cômodo havia apenas um fogão de quatro bocas, uma pia das menores que tem e embaixo um gabinete improvisado com cortinas encardida escondendo seu interior, um armário de duas portas fixo na parede acima da pia que parecia querer cair a qualquer momento pelo excesso de peso, no canto um frigobar que servia de geladeira, sobre ele tinha meia dúzia de copos aparentemente limpos, dois pratos e uma jarra de suco com cinco talheres dentro, a mesa com menos de um metro quadrado ficava de frente com a mini geladeira de forma que quando alguém senta não se pode abrir a porta do eletrodoméstico, só tinha uma cadeira na qual Liam estava sentado observando os pais com olhos indecifráveis, dele não vinha um único ruído. Por outro lado os pais pareciam travar uma guerra com olhares, o pai se rende e fala primeiro.
"Camila, leve-o embora." Ele parecia controlar a voz.
"Não! Já disse que ele vai passar o fim de semana com você." Retruca a mãe inabalável.
"Olha em volta, não tem espaço! não tem espaço nem pra mim." Ele ainda se continha.
"Dá seu jeito. Não quero saber o filho é teu e a responsabilidade também!"
Então o pai explodiu fazendo o som reverberar por toda a minúscula construção. Liam levou um pequeno susto mas se recompôs logo em seguida.
"Eu deixei aquela maldita casa pra você e vim morar nesse buraco, onde eu nem posso me espreguiçar sem esbarrar em alguma coisa, justamente para você cuidar do moleque! Então que palhaçada é essa agora?!" o homem estava vermelho de cólera.
"Eu tenho um compromisso e não quero que ele atrapalhe." A mulher disse isso já saindo pela porta sem nenhuma olhadela para trás.
O pai olha para a porta por um tempo como se tentando entender o que tinha acontecido, pela primeira vez que eu tenha notado ele olhou para o menino sentado imóvel e solta o ar pesadamente.
"E agora?" O menino não respondeu. "Alguma idéia do que podemos fazer?" Liam balança a cabeça em negativa. "Eu não tenho muito dinheiro sobrando mas é suficiente para pelo menos um sorvete, quer?"
O menino sorri e pula da cadeira. O pai pega a chave e sai com o menino da pequena moradia, era um anexo aos fundos de uma outra casa maior e mais luxuosa, o menino parece não reparar nisso estava contente com a perspetiva de um sorvete.
"Pai, porque você não vai mais para casa?" O homem para de caminhar por um segundo, mas responde sem demora.
"Porque sua mãe e eu brigamos muito e não podemos mais morar na mesma casa."
"E por isso você tá morando naquela casa apertada agora?"
"Sim. Mas não vai ser por muito tempo, um amigo me deixou morar ali até eu conseguir coisa melhor." O pai olha para o filho, "está chateado por eu não morar mais com você e sua mãe?"
"Hum, eu não ligo." É só o que o menino responde. O pai não parece surpreso com a honestidade do garoto.
O dia de sábado seguiu bem depois do sorvete, ambos rodaram pela cidade sem nenhum lugar para ir, pararam em uma praça onde almoçaram cachorro quente de um food truck estacionado, Liam ficou brincando com outros garotos na praça. Só voltaram para a casa do pai no fim da tarde depois de Liam comer outro lanche. Em casa a criança parecia feliz e tagarelava sobre os amigos que fizera na praça, porém o pai não estava igualmente entusiasmado embora respondesse ao filho todas as perguntas que lhe eram feitas. O homem olhou o relógio no pulso e se levantou, pegou o controle da televisão e colocou num canal que passava um programa infantil.
"Liam, eu vou sair rapidinho, fique aqui quietinho assistindo TV e sem fazer bagunça, não chegue perto do fogão e coisas parecidas. Eu volto logo."
Mas ele não voltou logo. E a memória se desfez.
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