II. Liam
Novamente em Lugar Algum, reflito sobre a memória Que acabei de ver, mas duvido que vou achar uma resposta logo na primeira e isso me dá nos nervos. Pelo chão há mais cinco cartas de baralho, mais portais para lembranças, acredito eu. Realmente não entendo esse lugar, e acho que nem poderia, mas acredito que seria muito mais eficiente se eu não tivesse que reviver minha vida inteira, ou se pelo menos me desse a memória certa de uma vez. Essa lembrança e nada é quase a mesma coisa, foi inútil. E pelo visto vou ter que ver muito mais delas antes de sair. A ideia de perder mais tempo me irrita. Chuto uma pedra invisível e a imagino acertando a parede que se quebra como um espelho e me dá a passagem de saída daqui.
"Infelizmente não é assim que funciona" não preciso olhar para saber que é a Morte, acho que nunca vou me esquecer dessa voz que me causa calafrios. "Não se preocupe você não vai se lembrar de mim depois que sair de Lugar Algum, seja para continuar a mesma vida ou seja na próxima."
"O quê quer dizer com 'próxima'?" Indago.
"Que se você escolher morrer vai passar um tempo no Mundo dos Mortos e depois renascer em um novo corpo com novas experiências." Seu tom de voz era como se estivesse comentando o clima, sua indiferença chega a ser assustadora. "Ócios do ofício, meu caro." Tenho quase certeza de que ela deu de ombros, mas pode ter sido só um balanço da manta esfarrapada.
"Cartas de baralho" não é uma pergunta mas também não é um exclamação.
"É, aparentemente eu gosto de mágica." digo sem entusiasmo.
"Quê mais você descobriu com essa lembrança?" Não sei porquê a Morte se dá ao trabalho perguntar, ela obviamente sabe tudo que se passa na minha mente.
"Meu nome" respondo, pois o silêncio me deixa desconfortável.
"Liam é um bom nome, gosto dele." Dou de ombros pois, realmente não sei como reagir com esse comentário. "Já faz alguma ideia do que te prende aqui?"
Eu a fuzilei com o olhar, eu já estou irritado com essa coisa toda, não preciso dos seus comentários para me lembrar que ainda estou no mesmo lugar, eu só quero sair daqui o mais rápido possível, porque parece que estou carregando chumbo dentro de mim e quero me livrar dessa sensação. Sinto que a cada segundo aqui é um desperdício, que será tarde demais para nem sei o quê, não saber também me irrita.
"A raiva não vai ajudar" diz ela. "Mas é compreensível, você está frustrado porque não pode sair imediatamente, porém não faz diferença." Ela fala olhando para mim, mas não consigo sustentar seu olhar.
"O quê não faz diferença?" digo ainda sem olhá-la.
"O tempo." Agora eu a olho, a Morte conseguiu toda a minha atenção. "Em Lugar Algum o tempo não existe, não importa quanto tempo você passar aqui no Mundo dos Vivos, o único onde o tempo corre, não se passa mais do que segundos."
O alívio recai sobre mim amenizando a raiva, mas ainda sinto o impulso de correr, de fazer algo a respeito da coisa importante que me atormenta desde que acordei aqui. Mesmo que o tempo não conte lá fora, aqui eu o sinto passar, posso contar os segundos e os minutos até que virem horas. Não sei quanto tempo vou aguentar aqui com essa sensação no peito. Não consigo olhar para a morte por mais tempo, sua face desprovida de emoções e suas órbitas sem olhos fazem meu cabelo no pé da nuca arrepiarem. Ela é assustadora, estremeço com a idéia.
"Não é minha culpa você ter medo de mim, os seres humanos têm tanto medo de morrer que esperam que eu tenha uma aparência assustadora para justificar seu medo. Então se está tão incomodado com minha aparência pare de ter medo e me imagine como um gatinho fofo." Detecto um fiozinho de irritação e sarcasmo em sua voz.
"Queria que fosse mais fácil do que falar." Balbucio um tanto envergonhado.
"Tenho trabalho a fazer, volto depois." Ela se vira bruscamente, acho que eu a magoei.
"Quando você fala 'trabalho' quer dizer matar pessoas?" Não sei bem por que perguntei, mas ela pára e se vira novamente.
"Entenda, eu não sou a causa, sou a consequência. Não é como se eu quisesse que os seres vivos morressem. Eles morrem e eu tenho que buscá-los. Esse é meu trabalho." A Morte diz a última frase dando as costas para mim e antes de terminar de falar já tinha sumido de vista e o eco de sua voz ainda pairando no ar.
Olho atentamente para as cartas ao chão, 2 de paus, 9 de copas, 5 e 7 de espada e o valete de ouro, não consigo decidir qual deles devo ver primeiro, acho que o direito de escolha é pior do que não ter opção, agora só poderia culpar a mim mesmo pela memória irrelevante que poderia ver. Escolho o valete que é a carta de maior valor entre as minhas opções, não sei se isso tem diferença mas espero que sim. Pego a carta e me preparo para a mudança de cenário.
***
A primeira coisa a invadir meus sentidos é o barulho de discussão aos gritos que parecia vir de longe. Eu estava em um quarto, a luz de um poste que entra pela janela não era suficiente para clarear o cômodo, mas consigo ver o contorno de um guarda-roupa pequeno num canto, e encostada na parede oposta à janela havia uma escrivaninha entulhada de coisas incluindo pacotes de salgadinhos, copos sujos, brinquedos e roupas jogadas de qualquer jeito, também havia roupas no chão e reparei que tinha um tênis com o par no outro hemisférios do quarto, era uma zona sem tamanho. Me surpreendo que o quarto não esteja fedendo, tamanho é o descaso. A cama é um emaranhado de cobertores, lençóis, travesseiros e mais roupas, reparo que o cesto de roupa suja ao lado do guarda-roupa estaria vazio se não fosse uma meia solitária lá dentro, esse quarto não deve ver uma vassoura à semanas, é impossível um ser humano viver nessas condições, arregalei os olhos surpreso, ainda mais um ser humano com pouco mais de um metro de estatura.
Eu não o tinha visto na cama até que ele que se mexeu, o menino estava embaixo de toda a bagunça com o travesseiro sobre a cabeça, não sei se acabou de acordar com o barulho ou se estava tentando abafar o som com o travesseiro para tentar dormir. Seja lá o que fosse o motivo ele desistiu de ficar na cama, ele se levantou arrastando as cobertas e mais algumas coisas para o chão. Liam estava de pijama, devia ter uns oito anos agora, continuava magro, não se incomodou de pegar um chinelo ou coisa parecida só saiu do quarto sem fechar a porta. Eu o segui. O garoto se sentou nos primeiros degraus da escada e pelas grades de proteção observava a discussão do casal na sala, acredito que seja seus pais... Os meus pais.
O casal era incrivelmente jovem duvido que passem dos 27 anos, a mulher era ainda mais jovem, ela chorava não sei se de raiva, angústia, ou desespero, talvez por tudo isso. O homem parecia embriagado, mas ainda sóbrio o bastante para saber o que falava.
"Eu não devia estar surpresa," disse a mulher levando a mão a cabeça, "você já foi demitido, sei lá, umas cem vezes. Você tem que entender que tem um filho para sustentar, não pode se dar ao luxo de perder mais um emprego para farrear como um adolescente sem pensar nas consequências!" Ela mal respirava ao dizer essas palavras.
"Ele não é só meu filho!" O homem gritou de volta. "Você é tão responsável por ele quanto eu. E o que você tá fazendo?! Hã?"
"Eu faço o que posso tá bom! E não vem falar que é pouco, porque eu me mato de trabalhar naquele maldito restaurante fingindo ser a garçonete mais feliz do mundo! Trabalho que nem condenada pra ganhar uma miséria que mal dá pra pagar as contas. E eu nem posso procurar emprego melhor porque por sua culpa eu não pude nem terminar o ensino médio!"
"Ah, claro né, porque eu sou o único culpado por você ter engravidado." Desdenhou o homem. "Você era uma vagabunda que abria as pernas pro primeiro que aparecesse, eu só tive o azar de ser o da vez quando você engravidou!"
Eu estava horrorizado, olhei para o menino sentado na escada assistindo de camarote ser culpado de simplesmente existir, com o rosto inexpressivo. Não sei o quanto da discussão ele compreendia mas minha vontade era de tapar os olhos e os ouvidos dessa criança e levá-la para longe e fazê-la esquecer o que presenciara. Mas não era possível, eu odiei essas pessoas por dizer coisas tão horríveis mesmo que não soubessem que seu filho os ouvia. Ouvi um estalo e desviei a atenção do garoto, a mulher tinha dado um tapa na cara do marido.
"Nunca mais se atreva a me chamar de vagabunda!" Ele a olhou com ódio, cerrou os punhos, temi que ele fosse revidar o tapa, mas ele só fungou.
"Vá à merda, Camila." Ele cuspiu as palavras. "Pra mim já deu!"
Ele se vira e sai da casa batendo a porta com força. A mulher se deixou cair no sofá com as mão trêmulas no rosto, depois de um tempo ela seca os olhos e bochechas o melhor que pode se levanta e sai pela mesma porta que o marido, a diferença é que ouço a chave girar no trinco. No mesmo instante Liam se levanta e desce a escada trotando, ele vai até a cozinha, abre a geladeira, pega uma garrafa de refrigerante já quase no fim, vai no armário e pega um pacote de bolacha de chocolate e saí da cozinha. Ele vai até o sofá se senta e liga a televisão. Seus movimentos eram tão naturais e decididos que me ocorreu que essa não era a primeira vez que isso acontecia. Que não era a primeira vez que era deixado trancado sozinhos em casa. E eu desejei que essas não fossem minhas lembranças.
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