I. Liam
Ar.
Preciso de ar. Não consigo respirar!
Levantei bruscamente inspirando a maior quantidade de ar que meus pulmões conseguiram. Estou respirando de novo, acho que respirar nunca me deu tanto prazer antes; antes… não tem nada de “antes”. Minha mente e um vazio inexplicável, assim como o espaço em que estou agora, sem uma única fresta de luz sequer. Como vim parar nesse lugar? Forço minha mente mas nada aparece, é um completo nada, mas então vem uma sensação, um instinto talvez, eu estava fazendo uma coisa importante. Meu coração acelera, não lembro o que era, mas é importante.
Pulo de pé, mesmo sem estar sentado em nada visível, tenho que achar a saída desse lugar estranho, todo meu corpo grita para que eu saía e termine seja lá o que for. Corro em todas as direções, mas não há paredes ou teto nem mesmo o chão no qual eu piso parece ser sólido. Eu tenho que sair agora!
“Você não pode sair assim.”
Fico imóvel, ou eu estou delirando ou tem mais alguém aqui. A segunda opção não me parece confiável.
“Confiável ou não sou a única que sabe como te tirar daqui.”
Abro a boca mas não tenho como argumentar. Olho em volta mas não vejo ninguém, franzi o cenho. Qualquer coisa que se esconda nas sombras e sabe o que você está pensando deve-se desconfiar.
“Como eu saio daqui?” perguntei para a entidade oculta.
“Primeiro não estou oculta porque quero,” ela enfatiza a palavra, o que me deixa ainda mais com o pé atrás. “Eu não possuo forma física sou quase puramente uma consciência, tomo a forma que, com a qual, você pensa em mim.” Ela explica, sua voz e fria e calculada.
“Como vou pensar em você sem nem sei quem é você?”
“Eu sou o que vocês chamariam de morte.”
Meu queixo caí. De repente uma forma surge em minha frente. Uma criatura muito magra, branca como papel e com buracos pretos no lugar dos olhos, a boca enrugada e cheia de dentes podres, seu manto era cinzento e poeirento com o final das mangas esfarrapadas revelando dedos nodosos e esquelético, a barra do manto também estava puída. A coisa não tinha pés e flutuava no ar. A Morte se examina.
“Ao menos não tem foice” murmura com sigo. Não entendo o que ela quis dizer, mas não faço perguntas, só aceito. “Um dia, quem sabe, alguém me veja como uma criatura um pouco menos assombrosa.”
“Sim, um dia, no futuro. Agora aqui, no presente, como eu saio daqui? Eu estava fazendo alguma coisa importante, não me lembro o quê, mas era muito importante e eu tenho que voltar logo.”
“Infelizmente não será tão rápido assim, mas por outro lado isso é irrelevante.” A Morte diz.
Sinceramente as coisas que ela diz não fazem muito sentido para mim, mas estou com pressa demais para pedir explicações.
“Gostei de você. Menos perguntas, menos trabalho.” Ela diz confirmando com a cabeça.
"Ótimo, ótimo. Também gostei bastante de te conhecer, Morte." Dizer o nome em voz alta fez eu me sentir louco, bem talvez eu estivesse, talvez tudo isso seja meramente coisa da minha cabeça, talvez essa sensação de algo importante seja simplesmente uma bombagem e que tudo isso e meramente loucura da minha cabeça.
"Não, não é loucura. Você está mais são do que…"
"Então, você sabe o que eu estava fazendo antes daqui?" Perguntei interrompendo-a, ela fez uma careta de desaprovação. Encolhi os ombros como um criança preste a levar bronca.
"Sei." Respondeu ela seca. "Mas antes que você me pergunte, não posso te dizer o que era."
"Por que não?"
"Porque existem regras que eu tenho que seguir e não lhe contar coisas do seu passado é uma delas." A Morte me pareceu um tanto brava.
"Por falar nisso, por que eu não tenho nenhuma lembrança de antes de eu acordar? Eu bati a cabeça e fiquei com amnésia? O que foi que aconteceu comigo?" Perguntei mais para mim do que para ela.
"Você morreu." Disse ela sem rodeios, mas como eu não disse nada ela perguntou. "Não está surpreso, assustado ou coisa assim?"
"Não. Eu já imaginava que era isso, só quero saber como ou por que aconteceu." Digo tranqüilamente. A expressão dela era de pura incredulidade. "Ah, qual é?! Eu acordo num lugar estranho com uma 'consciência' que se intitula de morte, é tão fácil quanto somar um mais um, é evidente que estou em uma espécie de limbo!"
"Durante toda a minha existência você foi o primeiro a chegar a essa conclusão e não surtar com a confirmação."
"Tá, mas porque estou sem memória?" Isso é o que mais me incomoda no momento.
"Vou explicar tudo que você deve saber no momento, então preste atenção." Eu apenas confirmei com a cabeça. "Primeiro você precisa saber que está na fronteira entre o Mundo dos Vivos e o Mundo do Mortos, como você disse uma espécie de limbo, chamada de Lugar Algum, daqui você pode tanto voltar para o Mundo dos Vivos quanto seguir para o Mundo dos Mortos. Você está aqui porque, apesar de ter morrido, tem alguma coisa que você se nega a deixar para trás, e para sair você tem que descobrir o que te prende ao mundo dos vivos para então poder decidir se vive ou se morre, porém este lugar consome todas as suas lembranças, como um efeito colateral."
"E como eu vou saber do que é que eu não quero desistir sem minha memórias?!"
"Você vai acabar descobrindo como. Mas agora eu devo ir, há sempre muito trabalho a fazer. Bem, adeus."
A Morte se foi tão misteriosamente quanto aparecera, ainda me deixando com muitas perguntas. Mas por hora tenho que dar um jeito de recuperar minha memória, o único problema era em como fazer isso. Sento-me de pernas cruzadas e apoio o queixo na mão, fecho os olhos e forço minha mente, mas não me recordo de nada, por mais que eu tente na minha cabeça só tem as memórias de depois de acordar sem fôlego. Percebi que balançava as pernas irritado pela falta de resultado embora eu estivesse realmente me esforçando. Solto um suspiro pesado abrindo os olhos, mesmo não tendo diferença na escuridão, olho para minhas pernas agitadas, eu simplesmente não conseguia deixá-las quietas. Reparei num retângulo de papel a apenas uns dois palmos de distância, com certeza isso não estava aí antes. Era uma carta de baralho, para ser mais exato um ás de espada, o símbolo era todo ornamentado como na maioria dos baralhos. Quando peguei a carta na mão senti um formigamento subir pelo meu braço e se espalhar por todo meu corpo e então uma tontura como se eu fosse desmaiar.
* * *
Quando abri os olhos novamente estava em uma sala de estar, a estante e as prateleiras ao redor repletas de quinquilharias dando a sala um tom multicolorido, o ar tinha cheiro de açúcar aquecido como se estivesse assando um bolo ou biscoitos. No sofá coberto por um forro florido estava sentado um homem, já com seus cinquenta anos ou mais, embaralhando um baralho tranquilamente e, na outra ponta, um garotinho o olhava com muita atenção, não ousava nem mesmo piscar, o homem então parou de embaralhar e posicionou o baralho em uma das mãos deixando-o na vertical e com a outra pairando acima das cartas faz um movimento circular balançando os dedos e então fingiu atrair uma carta que surgiu do meio do baralho, a criança olhava admirada para o ás de espada que surgira, incapaz de entender como aquilo era possível.
"É a minha carta! A carta que escolhi!"
Era a mesma carta que eu tinha encontrado em Lugar Algum, isso me faz prestar mais atenção no garoto sentado, seus olhos e seu cabelo escuros quase pretos tinha um contraste muito forte em sua pele pálida, magro como um graveto, não me surpreenderia se fosse anêmico. Procurei meu próprio reflexo na tela da televisão antiga ou em qualquer outro lugar mas em vão. Bem, não haveria como eu ter um reflexo em uma memória de qualquer modo, acho que sou como um fantasma aqui sem poder alterar nada na memória, e isso inclui o reflexo, mas considerando os fatos essa deve ser uma das minhas lembranças roubadas, não há porquê ter dúvida: aquele menino mirrado com certeza sou eu.
"Como o senhor faz isso?" Perguntou eufórico o menino. Seus olhos brilhavam de excitação.
"Ora, um mágico nunca revela seus segredos" respondeu o senhor dando com uma piscadela.
Nesse momento uma mulher, também beirando os cinquenta, apareceu na soleira da porta secando a mão num pano de prato.
"Liam, sua mãe ligou e disse que vai chegar tarde, mas que chega antes das dez para te pegar." O menino não pareceu se importar apesar do rosto amargurado da mulher. "E o seu pai sabe-se Deus por onde anda a essa hora. Onde já se viu isso…" e ela voltou resmungando para a cozinha, aparentemente indignada com alguma coisa.
Liam… o nome me soou muito familiar, não pude deixar de sorrir à descoberta do meu nome, não tinha notado, até agora, que me sentia tão incomodado por não lembrar nem meu nome. Um nome faz com que eu me sinta mais real, mais sólido. O garoto me tira do meu devaneio.
"Faz de novo?! Por favor." Pediu a criança. O homem faz o truque novamente e mais uma vez o pequeno Liam olha para sua nova carta admirado. "Vô, me ensina a fazer mágica, por favor?" Pelo tom impaciente do menino essa não foi a primeira vez que fez o pedido.
"Ainda não. Já disse que você ainda não está pronto para entrar no mundo misterioso dos mágicos." Para qualquer adulto era evidente a embromação do avô, mas para a criança de seis ou sete anos era puramente verdade.
"E quando eu vou está pronto?" Choramingou ele.
"Quando for mais velho, acredito eu." Ele respondeu. "Isso se você ainda quiser aprender." acrescentou.
O garoto fechou a cara emburrado.
"O senhor me diz isso desde sempre. Eu nunca estou velho o bastante." Disse cruzando os braços.
"Ora, já lhe contei como é perigoso mexer com magia, por isso é importante ter idade suficiente." Disse o avô com ar autoritário. "Chega de mágica por hoje. Vá lá na cozinha sua vó fez bolo, pede um pedaço para ela, vai." Diz o avô encerrando o assunto. Liam olha em direção a porta da cozinha por onde a avó desapareceu de vista, mas não fez menção de levantar-se. Ele se volta para o avô.
"Por que a vó não gosta do meu pai?"
O homem faz uma careta e pondera a resposta, parecia não saber se mentia ou se falava a verdade.
"É porque seu pai parece não lembrar que tem filho," ele optou pela verdade pelo visto " é um irresponsável. E sinceramente sua mãe não fica muito atrás se quer saber."
Não tenho certeza se o garoto entendeu tudo o que o homem disse, mas seu olhar inexpressivo me diz que faz ideia do que o avô quis dizer.
"Lá em casa eles brigam muito" Liam contornava com o dedo o desenho da flor no sofá quando disse isso quase num sussurro.
"É, eu sei" respondeu o avô igualmente baixo. "Bom, se você não quer bolo, eu quero!"
Dito isso ele se levantou do sofá mais rápido do que eu poderia julgar ser capaz, o menino também se assusta, mas se recompõe num minuto, pula de pé também e passa na frente do avô para chegar a cozinha primeiro.
Antes que eu possa decidir se devo segui-los a memória se desfaz em uma nuvem de fumaça e eu estou de volta na escuridão de Lugar Algum.
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