5. Elise
De volta a fronteira fico pensando no pouco que lembrei da minha vida. Sei que meu pai morreu atropelado por um ônibus por minha culpa e que ele era otimista e uma ótima pessoa, ele tinha uma irmã mais nova que também é legal, minha mãe tem algum tipo de psicose e Elise parece ser uma das crianças mais infelizes do mundo.
Isso é só o que sei até agora, apenas três memórias mas foram suficiente para me fazer ver o mundo com outros olhos. E o pior é que também não sei o que me prende a esse lugar vazio, escuro e solitário. Bem não tão escuro e nem tão solitário pois tem as estrelas/memórias que ilumina o céu e também a Morte que me visita de vez em quando. Mas definitivamente ele é vazio. Vazio como minhas lembranças. Me pergunto se há realmente um motivo para estar aqui. Do jeito em que estão as coisa é difícil aceitar que Elise e eu somos as mesmas pessoas, quero dizer, sinto uma familiaridade com essas memórias e com Elise mas não como se fossemos a mesma pessoa… apesar de sermos.
Grito angustiada para a escuridão, minha voz ecoa. Eu não poderia simplesmente morrer? ou continuar vivendo aquela vida infeliz? Por que tudo tem que ser um pouco mais complicado que o normal na minha vida - ou no caso, morte? Estou cansada disso. De tudo aliás.
Me pego olhando em volta à procura da Morte, geralmente é nessas horas que ela costuma aparece com algum comentário, mas não dessa vez. Percebo o quanto ela tem sido prestativa comigo apesar de seu jeito frio. Ela poderia ter simplesmente me largado aqui, mas optou por me ver de vez em quando e conversar comigo sobre meu progresso, mesmo sendo ele minimo. Estou sentindo falta dela será que demora a voltar? Me sinto solitária nesse vazio, temo pela minha sanidade se eu ficar por muito mais tempo por aqui, se é que já não estou louca visto que estou esperando pela morte, literalmente falando. É tão silencioso que quase posso ouvir meu próprio coração. Não quero entrar em outra memória agora, que só me fará mais triste e mais inclinada a morre de vez.
Cantarolo uma música improvisada para espantar o silêncio, balançando as pernas no ar suspensas pelo balanço no ritmo. Penso em descer, mas não sai da minha cabeça que, se eu o fizer, vou cair infinitamente - o que não teria problema pois não terá chão no qual me esborrachar. Mas por outro lado minha bunda já está quadrada é dolorida de ficar sentada.
Depois de tanto pondera decido descer. Segurando bem firme nas correntes do balanço e vou descendo um pé muito devagar a procura de um chão que eu não podia ver. Parecia não ter fim! Logo estou de pé sã e salva. Respiro aliviada, me estico e alongo, olho em volta e não sei o que fazer agora que estou de pé. Começo a andar em volta do balanço ainda cantarolando sem me afastar muito pois tenho medo de perdê-lo de vista e não encontrá-lo de novo. Será que sempre fui tão patética assim? Depois de um tempo fico entediada e como a Morte não aparece tomo coragem para mais uma memória que muito provavelmente será desagradável como as anteriores.
***
Nessa nova memória Elise estava patinando no gelo, está crescida, com uns 14 anos provavelmente, ela olhava para o chão com as sobrancelhas topadas de tão franzidas, absorta em seus pensamentos. Ela patinava de costas sem olhar para onde estava indo, ela se aproximava da mureta às suas costas achei que iria bater até levei as mãos a cabeça, mas ela, sem tirar os olhos do chão, fez a curva com a maior naturalidade, fez duas voltas em lupi e continuou em um zig-zag ondulado e fez a curva antes de bater na mureta oposta. Foi nesse momento que me dei conta de que ela, de tão familiarizada, conhecia a pista de patinação melhor que a própria mão. Era fascinante vê-la se mover ao ritmo de seus pensamentos, pensamentos quais eu gostaria de saber.
Ela se aproxima do lugar onde estou e de perto posso ver seus olhos marejados e o rosto inexpressivo contendo suas emoções, ela aprendera a suprimir muito bem suas mágoas para não deixar que fossem percebidas pelas pessoas ao seu redor, mas isso era sufocante, sufocante demais, eu podia sentir. Agora eram meus olhos marejados e, por impulso ou instinto ou seja lá o for, eu a abraço oferecendo conforto.
No momento em que nos “tocamos” sinto-me sendo sugada, absorvida por Elise. Eu estava em seu corpo, via o que ela via, sentia o que ela sentia, e mais importante pensava o que ela pensava. No instante em que nos encostamos ela deixou de ser Elise e se tornou Eu.
°°°
Estou patinando para tentar absorver o dia de merda que tive hoje, ele irá para minha lista de “top 10 piores dias da minha vida”, que se eu pensar bem teria que aumentar esse número para 30 ou quem sabe 50. Mas se for parar pra pensar, o pior dia de sua vida será sempre o de hoje, porque o presente sempre dói mais que o passado. Amanhã quando avaliado ele não será o pior dia, mas no momento ele é, porque está doendo insuportavelmente hoje!
Eu acordei relativamente feliz hoje. Estava tudo do jeito que deveria estar - não que isso signifique que estava tudo bem -, fui para a escola a pé e sozinha como sempre fui. Chego na escola em dez minutos e vou direto para a sala de aula e me sento no mesmo lugar de todos os anos - a última mesa da fileira encostada na parede - porque acho que é o lugar onde fico mais invisível para todos. Eu me concentrava na explicação do professor, não por ser uma boa aluna mas para me distrair dos meus demônios internos. O professor de história está falando sobre a colonização do Brasil e os reflexos da cultura portuguesa que sofremos. Gosto das aulas de história porque a matéria exigia que o professor falasse bastante, o que é uma distração muito bem vinda. As outras aulas foram de biologia e matemática, materias não tão atrativas mas que ainda servem ao propósito de distração. Acabo tirando boas notas com isso o que não me deixa tão invisível para os professores, que hora e outra me mandam responder uma pergunta me expondo para toda a turma.
Meu dia estava sendo bom. Palavra chave: estava. Ele ruiu completamente no final do intervalo. Eu almocei a comida sem gosto que a escola oferecia, me demorando ao máximo para ter algo o que fazer e não parecer tão deslocada no cenário de interação social e conversas entre amigos, o resto do tempo passo no banheiro lendo ou mexendo no celular. É sempre um alívio ouvi o sinal de término do intervalo. Saio do banheiro e vou para a sala de aula, no corredor vejo David com seu grupinho de amigos, meus pulmões apertam, ele é minha paixonite desde dois anos atrás e vê-lo sempre fazia minha respiração tropeçar.
“Elise!” meu coração para por um segundo, olho para ele. “Se você vai ao psicólogo, você é louca igual a sua mãe?!”
Cada uma dessas palavras foi como uma facada cravada em meu coração que agora pulsa descompassado, estou acostumada as zombarias e ao bullying dos outros alunos, muitos desses eu conheço desde sempre, todos conhecem a situação da minha mãe e toda a merda que veio depois, mas com David era diferente, ou eu achava que era, ele nunca me falou nada, parecia que nem me enxergava e era bom assim. Sinto meu rosto ruborizar e meus olhos arderem, reprimo as lágrimas com toda minha força a última coisa que quero agora é demonstrar fraqueza. Todo o sentimento que tinha por ele queima se tornado decepção e raiva. Queria mandá-lo à merda, socar-lhe a cara e gritar que eu não era louca. Mas todo o que faço lançar-lhe um olhar fulminante. Desejei queimá-lo com os olhos. Depois de dez segundos encarando-o volto a andar, como se eu não me importasse com suas palavras. Mas o fato é que eu me importo! Estou decepcionada com ele e comigo, por me reprimir tanto, por não dizer umas verdades para ele. Me acostumei a isso, minhas experiências me fizeram preferir evitar conflitos, me fizeram submissa e abaixar a cabeça, mas nem sempre será assim. Espero um dia me livrar dessas amarras e me deixar ser quem sou. Mas ainda não é hora para isso.
Sou trazida de volta à pista de patinação a nova funcionária está dizendo que é hora de fechar e que eu tenho que ir embora, ainda estou me acostumando em não ter minha tia trabalhando aqui, ela sempre me deixava passar do horário se eu precisasse. Até mesmo meu lugar de paz foi tirado de mim. Solto um suspiro conformado e pego minhas coisas para ir embora.
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