Capítulo 53
- Eu não acredito que você fez isso.
Estou sentado no sofá do consultório da Dr. Lúcia, porém nossa sessão hoje está sendo um pouco incomum.
Ao invés de estar eu e minha terapeuta, cara a cara, cadeira frente a cadeira, a sala se transformou em um círculo com seus assentos.
Junto comigo, no sofá, está Rafael, emburrado e de braços cruzados, assim como eu. Do meu lado, senta Thomas em uma cadeira, e do lado de Rafael, sua mãe, Raquel, em outra cadeira. Dr. Lúcia permanece em sua poltrona, de forma que todos conseguimos vê-la, potente, como a mediadora daquele julgamento.
- É para o bem de vocês dois. –Meu irmão responde.
Há café e água na mesinha de centro. E de certa forma, espero que minha psiquiatra esteja ao menos um pouquinho desconcertada com aquela situação, porém está calma como se estivesse na praia.
Os dias anteriores a esse se passaram.
Os jogos das Olimpíadas Escolares acabaram. Rafael foi muito bem, conseguiu os pontos necessários para completar o ano.
Não nos falamos desde então. Ele saiu de todos os grupos do Whatsapp em que eu era membro, quebrando nossa amizade por completo. No início pensei até que Chul, Anna e Akin tivessem feito parte dessa quebra. Não que eles estivessem conversando, ou saindo, nem nada. Porém via ele e Akin conversando ou discutindo algo na sala, nada demais, coisas triviais de escola, ou vestibular, talvez. Porém Akin é cortês, e apesar disso, sei que ele está doido para meter o cacete na fuça dele desde aquela maldita festa.
Um mês se passou, eu de castigo e ele também, ao menos foi o que eu soube de Thomas e sua conversa com Raquel.
Tudo o que eu recebi dele foi uma mensagem esfarrapada com "Desculpas" escrito via Whatsapp, antes de eu bloqueá-lo. Mesmo assim ele não me parou de seguir no Instagram, e eu não o silenciei. Conseguia ver suas postagens, que ficaram bem menos frequentes desde a nossa briga.
Anna e Chul tiveram tentativas fracassadas de fazer ele deixar de ser orgulhoso, admitir o erro e me pedir desculpas decentes. Akin ficou um pouco na dele, pois acho que ele viu mais da briga e ficou bravo.
Também tentaram fazer com que eu desse o primeiro passo para uma conversa, porém meu orgulho já havia sido ferido demais nesses últimos anos por Rafael Albuquerque, e eu resolvi me poupar.
Não que seja um ato gigantesco de amor próprio, porque nesse resto de mês de junho e início de julho, eu me afundei legal na escola. Minhas notas caíram, fui novamente conversar com a Ingrid, aquela vaca, Thomas me deu um sermão, ameaçando eu ficar mais uma semana de castigo, e como eu já estava entediado o suficiente, ao menos tentei ser inteligente. Quando não conseguia estudar, eu lia um pouco de alguns livros que Lily e Anna me deram, e quando eu não estava lendo eu olhava para o teto do meu quarto, contemplando a minha existência e como tudo deu errado.
Então, cá estou eu, faltando pouquíssimos dias para o meu aniversário de 17 anos, sentado nessa merda de consultório, onde pensei que era um espaço seguro para compartilhar sentimentos.
Aparentemente, não.
- Nós podemos começar com essa fala do Thomas. –Dr. Lúcia se pronuncia. –Thomas, por que fazer isso é para o bem deles?
Meu irmão, despreparado, arregala os olhos.
- Ah, acredito que a briga dos dois naquela noite passou dos limites, né? E ficamos tristes de ver uma amizade de tanto tempo assim.
Dr. Lúcia fica calada, encarando nós quatro.
- Isso é uma daquelas terapias em grupo, ou algo do tipo? –Questiono de escárnio.
- Está mais para terapia de casal. –Raquel solta um risinho cúmplice para Thomas, e ele também ri. Minha psiquiatra tenta esconder o sorriso. Mas, nossa, o que está rolando aqui?
Nem olho para o lado para perceber que Rafael está vermelho como um tomate, igualzinho a mim.
- Vamos chamar de terapia dupla, que tal? Raquel e Thomas, podem nos deixar a sós agora.
Os dois se levantam, e vão até a porta. Aos cochichos, ouço os comentários:
- Eu falei algo errado? –Raquel pergunta.
- Além da verdade? –Meu irmão debocha. E eles batem a porta.
Ah, mas eles me pagam.
- Então, me contem, o que aconteceu nessa briga? Por que brigaram?
- Ele deu o primeiro soco. –Rafael fala primeiro. –Eu só me defendi.
Dr. Lúcia ergue as sobrancelhas, um pouco surpresa.
- Tyler, o que te levou a agredir o Rafael? Qual foi o seu limite?
Contraio o maxilar.
- Eu já estava com raiva dele a muito tempo, estava sendo estranho comigo e não sendo ele mesmo, porém quando na nossa discussão ele citou meus pais, eu perdi o controle. E, sei que foi errado partir para agressão, e... –Respiro fundo, deixando todo o meu orgulho de lado. Eu já estava aqui mesmo, não tinha como fugir. –Peço desculpas por isso, Rafael. De verdade.
- Ok. –Ele murmura, ainda fechado.
Para ele é mais difícil, percebo, no entanto, a dr. Lúcia não ia deixar barato.
- Por que tem agido estranho, Rafael? Você concorda com as alegações de Tyler?
- Sei lá. –Ele dá de ombros.
- Hmm, então vamos fazer diferente aqui. Tyler, quais atitudes do Rafael te magoaram?
- Muitas.
- Pontue algumas para ele.
Rafael já estava bufando, olhando para o teto e querendo sumir dali. Eu podia sentir.
Isso me deu forças para lavar um pouco de louça e botar as cartas na mesa.
- Bom, desde que ele voltou da viagem se afastou dos amigos, não só de mim, como Anna Raylla, Akin e Chul...
- Chul nem está mais na mesma escola que nós! –Ele rebate.
- Rafael, é o momento de Tyler falar.
Ele se cala e eu continuo.
- E, ok, normal voltar estranho, foi um bom tempo longe. Mas ai ele, você...- Hesito. Não sei mais para quem estou falando o quê. –Começou andar com pessoas que eu não gosto, que me magoaram de verdade, o Lucas e grande parte do time de futsal, e quando não estava com eles, nos ignorava, e só se aproximava para fazer algum tipo de média, ou interesse para tirar notas boas. Tudo bem, se você não quiser nossa amizade, que se foda. Mas no dia da festa, o que você apoiou foi horrível, ficar do lado do Lucas naquela situação e contribuir com isso, para mim foi o fim. –Não preciso repetir a história, já havia desabafado numa sessão anterior com a Dr. Lúcia. -Eu nunca pensei que me decepcionaria tanto com uma pessoa como eu me decepcionei com você naquele dia.
Foi pesado dizer aquelas palavras, porém necessário. Ele precisava saber o quanto eu estava machucado.
- Então, o que você está dizendo, Tyler, pelo o que eu entendi. Você sempre foi um amigo leal, companheiro, e quando Rafael não fez o mesmo, você ficou bravo, chateado?
- Sim.
- O que também poderia ser apenas uma expectativa sua, é claro, e por isso que guardou por muito tempo o que o incomodava.
- É, mas acredito não ser apenas expectativa, pelo menos, não... –Olho para ele de soslaio, meio envergonhado. –Pelo menos não em relação a nossa amizade, sabe? E eu não era o único a perceber isso. Anna e Akin, que convivem com ele no colégio, também notaram.
Ela assente.
- Então, querendo ou não, você e seus amigos guardaram um pouco desse sentimento de exclusão para vocês. Esse "ser deixado de lado". Não chegaram a conversar sério com Rafael ou o botaram contra a parede?
- Não. –Rafael responde, e eu o fuzilo. Ele ignora.
- Acho que não. Comentamos uma vez ou outra, mas nada sério, porque a impressão era que...
- Quê? Continue.
- Que ele queria isso, que estava fazendo de propósito, e eu não entendi nada.
- Mas é claro que não. –Ela sorri para mim. –Como isso está acontecendo, não é mesmo? Você sempre foi tão sincero com ele. –Ela faz uma pausa. –Você se considera honesto, Tyler, em relação a sua amizade com Rafael?
Eu paro por um momento, com a pergunta repentinamente acusatória.
- Eu acredito que sim. Nunca o deixei de lado.
- Sempre dava uns puxões de orelha, se necessário, o apoiava, estavam juntos sempre, nunca escondeu nada importante... –Minha terapeuta complementa para mim.
Agora eu entendo para onde ela quer ir. Dou uma boa respirada antes de continuar.
- Sei que não sou nenhum amigo perfeito. –Encaro Rafa, e ele também me olha, de verdade, pela primeira vez. –O que é bom, até certo ponto, pessoas que combinam demais são chatas, e sei lá, eu e Rafa somos o equilíbrio um do outro. E estamos juntos desde sempre, e talvez essa harmonia tenha ficado um pouco abalada, quando eu me assumi gay, sei lá. Foi algo que demorou eu conseguir falar para ele, porque, o problema nem era ser gay, e sim porque, eu sei que ele saberia na hora, que eu gostava dele de outra forma, e isso, isso poderia realmente acabar com toda a amizade que tínhamos, e para mim, ter ele como amigo era melhor que nada. Não queria que ele se afastasse de mim, porque, sempre achei que ele fosse hétero. –Dou uma pausa, sem conseguir olhá-lo. –E acabaram que as coisas saíram um pouco diferentes do que eu imaginei, misturamos muito as coisas, ficamos confusos, e acho que é isso.
Dr. Lúcia sorri para mim.
- Muito corajoso, Tyler, de dizer todas essas coisas. –Sorrio de volta, e ela fita Rafa. –Vamos ver se o Rafael também tem essa coragem. –Logo, o meu amigo loiro se endireita. Quem não ama um desafio, ainda que não tão explícito? –Se Tyler foi tão honesto sobre si, por que você não foi? Ainda que cada um tenha seu tempo, por diversos motivos. Por que não tem sido sincero com seus amigos?
Rafael também dá um longo suspiro. Não tem para onde fugir, e agora que eu falei, ele também se sente instigado.
- Eu estava arrasado, desde que cheguei nos Estados Unidos. Minha tia não tem estado boa, e sua situação só piorou desde então, porém minha mãe a ajudou muito ficando esses meses por lá. E a tia Carla é a única irmã dela, minha única tia, minha única família. Meu pai nos abandou quando eu ainda nem sabia andar. Não lembro nada dele. Nem sei sequer seu nome. E minha mãe nunca quis me falar, mesmo quando eu insistia, sendo um garotinho querendo encontrar o pai. E hoje, eu sinceramente, prefiro não saber mesmo. Eu não tenho pai. Meus avós estão mortos. Não tenho contato com tios-avós ou primos de sei lá quantos graus. Minha tia é solteira e sem filhos, somos nós três da família Albuquerque, e eu, o único homem. E acaba sendo um pressão do caralho.
- Sua mãe e sua tia fazem pressão em você? –Dr. Lúcia pergunta.
- Não, não desse tipo. É uma coisa mais enraizada invisivelmente pela sociedade patriarcal que vivemos. Algo que minha amiga Anna Raylla me ensinou muito. –Rafael me encara, com um sorriso. -Mas falar e entender é mais fácil do que realmente mudar hábitos problemáticos. Sempre achei que deveria tomar conta de tudo, mesmo não tendo noção de nada, e sempre pensei que jamais poderia ter comportamentos que nossa sociedade heteronormativa considerasse femininos. Por exemplo, sempre amei tirar fotos, de mim, dos outros, de paisagens, mas foi algo que nunca investi até me mudar para a Califórnia, onde é a arte que move tudo. E nesse lugar eu poderia recomeçar do zero, e ser quem eu quisesse. Aqui, outros colegas meus, me zoariam de fazer pose para a câmera, e eu sempre quis fugir dessas coisas idiotas. E, eu sei... Qual é? Essa galera nem são meus amigos de verdade. Meus amigos de verdade me apoiariam. –Ele novamente me olha. Seus olhos pedem desculpas. –Mas nunca suportei a rejeição, gosto de atenção, até demais, e preciso de várias pessoas perto de mim, talvez para preencher minha família, o quanto eu a acho pequena. E, Ty, quero te pedir um perdão em específico, pois já cheguei até sentir inveja de você, por isso. Fiz você ir visitar seu pai na prisão com um argumento sujo de "você ainda tem um pai, pelo menos." E não gostei do que falei depois, e nunca consegui te pedir desculpas. Ele não é um pai, Thomas é. E Thomas tem a Lily com aquela família enorme dela, cheia de primos e tios, e eles acolheram vocês dois, e sempre me senti enciumado por isso. É super mesquinho.
- De forma alguma, Rafael. –Dr. Lúcia comenta. –Seus sentimentos são válidos, ainda que problemáticos, você reconhece isso, e acabou de pedir desculpas, é um ótimo passo. Por favor, siga.
- Valeu. –Ele solta o ar, aliviado. –E também, acredito que seja um dos motivos de, além de tentar manter amizade com todo mundo, fiquei com várias garotas nos últimos anos, e sei que magoei algumas, e outras nem fiz questão. Nem cheguei a comentar muito, porque nem eu gostava de ficar com tantas. Mas eu precisava daquilo para preencher também outra parte de mim vazia. –Rafael para por uns segundos e encara seus tênis, suas costas curvadas. Pensei que ele se sentiria mais leve após confessar tanto, porém o sinto cada vez mais pesado. –Quando nos beijamos naquele estúpido jogo de verdade ou consequência, Tyler, foi uma das noites mais confusas da minha vida. Eu não conseguia aceitar me sentir tão cheio de vida beijando você, parecia certo demais, e eu ficava botando na minha cabeça que era um erro, mas todo o meu corpo falava que foi a coisa mais correta que já fiz na vida. Por isso eu bebi tanto e vomitei no seu tapete, para parar o conflito na minha mente. Fiquei em negação por semanas, tentando entender. E eu sentia que você talvez tivesse mais afeição por mim do que um amigo normal teria, e eu quis cortar isso na hora, por isso também falei aquela baboseira de "somos só amigos" ao final do seu aniversário de 16 anos. Peço desculpas por essa merda também.
- Desculpas aceitas.
- E eu não conseguia entender. Porque sempre gostei de meninas. Quando eu as beijava, eu gostava, queria ir mais longe também, sabe? Todo o meu corpo gostava do que as meninas tinham. Porém não conseguia parar com uma só, não sei o porquê. –Ele dá de ombros, confuso, e sacode a cabeça como que para se livrar do pensamento. –E aí eu percebi que também curtia garotos, quando eu te beijei, e beijei Chul e beijei aquele garoto numa festa em Los Angeles. Eu estava lá, já todo esquisito por conta do que rolou entre a gente, e novamente, eu senti que poderia ser eu mesmo naquele lugar novo. E eu gostei de ter ficado com ele, assim como a garota que me beijou em seguida. Então, qual é o problema? Naquela madrugada, pós festa, eu li todas as definições possíveis de bissexualidade e meu cérebro fritou. –Ele dá uma risada desanimada. –Porém nenhum beijo daqueles pode se comparar ao seu.
Eu o encarei, boquiaberto, sem conseguir me expressar.
Olhei para minha psiquiatra que escutava e via aquilo tudo se desenrolar como uma bela de uma novela. Só faltava pegar a pipoca.
- Daí eu percebi que talvez eu gostasse de você também daquele jeito. E isso foi o meu fim. Gostar de garotas? Ok. Gostar de meninos? Nada ok. Não para mim. Porque fiquei com medo de ser um alvo, de sofrer preconceito, deles apontarem o dedo para mim e dar como justificativa que eu sou assim apenas porque não tenho pai, porque não tive um figura paterna para me "consertar" ou "dar o exemplo". Tyler, você teve uma coragem do cacete ao postar aquele vídeo, se expondo não só para a escola, mas para o mundo da internet inteiro. É uma bravura que eu nunca vou ter. E invejo isso.
- Inveja, de mim? –Minha mente não processava mais nada. Onde Rafael teria inveja de mim? Era ele por quem as pessoas babavam.
- Sim, você é incrível. Não necessita da aprovação dos outros, só daqueles que ama, e às vezes nem isso. Você é verdadeiro, doa a quem doer. E lindo, demais. Me corrói o coração você não se dar conta disso.
Eu estava embasbacado, não tinha o que sentir mais. Rafael olhava carinhosamente para mim, algo que eu não enxergava desde o carnaval em seus olhos.
- O medo de ser julgado em contraste com o desejo que eu sentia me fez agir daquele jeito com você no carnaval. Foi errado te tratar como objeto. Você não é apenas carne. Eu tentei parar, porém tudo o que eu queria era você. Depois de provar seu gosto uma vez, eu estava viciado, para sempre.
Eu também senti exatamente isso, porra. Queria gritar e me jogar em cima dele, porém me contive com a minha terapeuta vendo tudo aquilo de camarote.
- No entanto, me reprimindo cada vez mais, sabendo que aquilo seria passageiro, talvez eu tenha me embolado com as palavras e dito coisas contrárias as que eu sentia. Novamente, problemático. Não queria admitir que estava me apaixonando por você, com tanto medo e receio envolvidos ainda, continuei escondendo o que sentia da maneira que dava. Mensagens ignoradas, vácuos de horas, e me esquivando de conversas. Você não merecia nada daquilo.
Assinto, ainda sem palavras para expressar o mix de emoções que eu estava sentindo. As cartas foram tacadas a mesa rápido demais, e todas elas caiam uma a uma no chão agora.
- Sua mãe e sua tia te apoiam, Rafael? – Dr. Lúcia se pronuncia.
- Elas sinceramente nem ligam. Não que eu tenha conversado sobre nada disso com elas, porém minha mãe sempre amou o Tyler, e desde que ela viu aquele vídeo no seu canal do Youtube, ela cismou que estamos namorando e fica me zoando por isso, de forma encorajadora. –Rafa dá um sorriso tímido. - Acho que ela é uma das pessoas que mais shippa eu e o Tyler. Minha tia é tranquila também.
- Shippa? –Ela fica momentaneamente confusa. Gírias jovens demais, Rafa.
- Ela apoia. Shippar significa apoiar algo, dar suporte. É mais usado quando se fala de casais na internet.
- Ah sim! Mas além disso, elas te apoiam, no geral? No lance da fotografia, por exemplo?
- Sim! Minha tia até me deu uma câmera profissional de presente. Me ajudaram a arrumar um emprego temporário na cidade. Então, sim, eu as amo, demais.
Fico um pouco triste. Rafael nunca me contara nada sobre gostar de fotografia. Nunquinha. Tem tantas partes dele que eu estou conhecendo apenas agora, e ele sempre viu tudo de mim.
- Então me diga, Rafael. Antes, você já estava confuso e com medo desses sentimentos, por coisas internas suas. O que é compreensível. –Meu amigo assente. –Entretanto, o que fez você mudar tão repentinamente quando voltou agora? O que aconteceu, nesse meio tempo, da visita aqui no carnaval até sua chegada, há um mês atrás, no Brasil?
Ele abre a boca para falar, porém a fecha no último segundo, hesitante.
Dr. Lúcia suspira.
- Me permita fazer uma pergunta mais dura. O que fez você não só deixar de lado, mas destratar, não apenas os seus amigos, como também o garoto pelo qual, como você disse, estava apaixonado? Por que tanta dureza?
Olho para Rafael, depois de alguns segundos sem resposta. As costas encurvadas e os olhos marejados o entregavam. Ele guardava algo para si, e o pior estava por vir.
- Porque... porque não queria que gostassem mais de mim. –Ele encara o chão, sem conseguir fixar seu olhar em mim ou na Dr. Lúcia. –Porque não seria justo eu ir embora e deixar saudades e sentimentos não resolvidos. Fiz eles me odiarem, para só eu ter a dor de deixá-los. –Sua voz estava embargada, e suas bochechas coradas e encharcadas.
- Ir embora? Mas que merda é essa?
- Ty, me desculpa por ter sido o pior melhor amigo do universo. Me perdoa de verdade. Eu não, eu não sei nem como...Ah, droga vamos lá. –Mais silêncio, exceto por sua respiração ofegante. –Eu e minha mãe vamos nos mudar definitivamente para Los Angeles. Minha tia precisa dela, e é mais fácil nós irmos para lá, do que ela vir para cá. Tia Carla tem cidadania americana, e está com licença médica, ou seja, ela continua recebendo uma quantia que ainda a ajuda. Minha mãe é mais feliz com o emprego dela lá e com sua irmã por perto. E eu...
- Vai se foder, Rafael.
- Tyler. –Dr. Lúcia me repreende.
- Eu não consigo ver minha vida sem você, Tyler. Mas eu também fui muito feliz lá nesses últimos 6 meses, fui alguém que nunca me permiti ser aqui, e tem sido difícil para caralho manter essa porra de personagem metido a besta para te afastar. Eu te machuquei dos piores jeitos, e ninguém merece esse tipo de amor. Eu fui um covarde de não ter te contado a verdade. Em parte porque sei o quanto você ficou triste pelo tempo que fiquei nos Estados Unidos, e sei lá, pensava que esse seria o jeito mais fácil de ir embora. Cortar todos os laços que um dia tive aqui. Eu entendo se você não me perdoar, porque eu estaria puto, muito puto mesmo, se você fizesse isso comigo. Mas me perdoa, de verdade, pela milésima vez hoje.
Fico quieto. Não sei nem o que pensar. Ele vai embora de novo, e dessa vez, para sempre.
- Eu te perdoo. –Minha voz sai baixa, pequena, mais chateada.
O alívio e conforto que eu senti com suas declarações ao longo da sessão vão embora, dando lugar a um aperto no peito, tão conhecido pelo meu corpo. O de preocupação com a saudade que eu vou sentir, se vou aguentar, se não vou aguentar.
Não. Não depois de tudo o que ele falou. Não sabendo o que eu sei o que ele sente agora.
- É demais para mim. –Digo. –Eu fico feliz que você tenha dito tudo isso para mim, Rafa. De verdade. Eu te amo desde que me entendo por gente, mas, mas... eu não entendo. Pra quê isso tudo?
Ao invés de Rafael responder, é a Dr. Lúcia que responde.
- Tyler, ainda que o quê o Rafael fez foi muito errado, ele pediu perdão para você, deu desculpas sinceras, desabafou conosco aqui hoje, o que já foi muitíssimo bom para uma única sessão. No fim do dia, todos nós temos nossos motivos para fazer o que fazemos. Plausível ou não, existe um motivo. Rafael não pediu para que tudo voltasse a ser como era, apesar de que seja isso que ele quer, tenho certeza. No entanto, essas coisas levam tempo. Hoje, ele só deu uma explicação e pediu desculpas. E por ora, é o suficiente.
Engulo em seco, com esse gosto agridoce na boca, depois de ouvir tanto.
- E há tempo. –Ela continua. –O que vocês decidirão fazer com esses meses que terão juntos, cabe a vocês. Os dois são bons garotos, inteligentes e jovens. O tempo é preciosíssimo para vocês. Espero que o usem com sabedoria.
Lúcia dá o seu melhor sorriso enigmático com uma bela pausa dramática. Se levanta e vai até a porta.
- Rafael por hoje é só.
O loiro se levanta, e já estou quase o seguindo à saída, quando minha terapeuta me para.
- Pode voltar a se sentar, Tyler, ainda não acabei com você. Vai ser rápido.
Dou meia-volta e me jogo no sofá.
Escuto a despedida deles.
- Foi ótimo ter você aqui hoje, Rafael. E você tem muito o que resolver.
- Obrigado. Eu sei.
- Dei o número de um colega de trabalho meu para sua mãe. Semana que vem sua consulta é com ele, viu? E se necessário, ele chama o Tyler também.
Seu tom era de brincadeira, porém me caguei só de pensar na possibilidade de outra terapia em dupla.
- Tudo bem.
Eles se despedem, e Lúcia volta a se sentar em sua poltrona.
- Por que continuo preso aqui? –Digo brincando.
- Porque, mocinho, você tem dever de casa.
- Quê? A ideia de mais um dever para fazer vai me fazer enlouquecer para valer agora!
- Não é nenhum complicado. Prometo.
- Lá vem...
- Tyler, eu percebi que houve um gatilho, no dia em que você agrediu o Rafael, e queria conversar mais sobre ele. O fato de seus pais terem sido o seu limite...Claro que havia outros fatores envolvidos, como ressentimentos acumulados em relação ao Lucas e o Rafael, e, pelo que conversei com seu irmão, você andou bebendo, confirma?
- Confirmo. –Digo desanimado com o rumo da conversa.
- O que pode ser um problema. Mas o seu irmão diz confiar muito em você, e em nenhum desses momentos, você misturou seus remédios, certo?
- É, eu nunca misturei remédio com bebida. Sempre que eu sabia que iria numa festa, e queria me divertir um pouco mais, eu não tomava no dia.
- Melhor. E nunca teve um sentimento negativo, pela falta dos remédios, ou que a bebida desencadeou?
- Acho que nunca. O máximo de tempo que fiquei sem tomar os remédios foi no carnaval, mas estava me divertindo muito, então, nada. Já chorei ou fiquei com raiva por uma coisa ou outra em rolês, mas era mais pelo que estava acontecendo com as pessoas ao meu redor ou o rumo que as coisas tomaram. Então, acho que até certo ponto, é também compreensível.
- Sim, claro. O álcool no seu sangue te deixa mais desinibido, e também suscetível as emoções mais a flor da pele. Porém, seu cuidado deve ser redobrado. Lembre-se disso. Pois não só pode arranjar problemas para o seu irmão, por ainda ser menor de idade, mas também para mim. Entendido?
- Entendido. Beba com moderação. –Falo na entonação das propagandas de cerveja.
- E temos que ter ainda mais cuidado com a soma bebida + estresse = comportamentos agressivos. É um padrão que queremos fugir, principalmente pelo histórico familiar.
Sua voz é mansa, mas ainda me fere.
- O meu pai. Alcoolismo.
- Sim. Não estou dizendo que você é como ele, ok, Tyler? Longe disso. Você é um garoto doce, cheio de vida e muito atencioso. Mas pode ser genético, então o cuidado deve triplicar.
- Certo.
- Voltando aos gatilhos, apesar de várias sessões feitas, desde que te conheço, ainda há coisas guardadas em relação ao seus pais. Ainda mexe com você, ainda que pouco, ou que você não demonstre muito. A verdade é que esses sentimentos ficam, Tyler. É difícil ter pontos finais, porque a vida continua, as lembranças ficam, e você tem que estar sempre procurando por esses fechamentos, para não deixar as coisas ruins sobre eles entrarem de novo na sua cabeça. É um ciclo, mas não precisa ser infinito. Pode ter algumas curvas, de altos e baixos.
Apenas concordo, sem saber aonde ela está querendo chegar.
- Então vou te passar um exercício para a nossa próxima sessão. Quero que escreva uma carta para sua mãe e outra para o seu pai. Sobre o que você quiser, fale o que você desejar, se derrame no papel. Só exijo que seja manuscrito. A letra nem precisa ser legível, pois só lerei se você autorizar. Apenas me mostre os papéis na semana seguinte.
- Parece fácil.
- Vai ser, se você de fato se permitir tentar.
- Eu vou.
- Bom, então por hoje é só Tyler. –Ela me encaminha até a porta. –Até semana que vem.
Saio da sala, ainda desorientado por tudo o que aconteceu, me perguntando se tudo isso não passa de delírio coletivo.
Vejo de relance alguém se levantar e caminhar em minha direção. Percebo que é Rafael. Nas cadeiras de espera, sentados mais a frente, sua mãe lê uma revista e Thomas digita no celular.
- De novo, me desculpa. –Ele me diz frente a frente, olhando no fundo dos meus olhos.
- Eu já te desculpei, por tudo.
- Posso te abraçar? Eu senti tanto a sua falta.
Deixo ele me segurar entre seus braços e também entrelaço os meus em suas costas. Seu cheiro me conforta, mas não como antes.
- Senti sua falta também. –Me afasto um pouco, no entanto, ele não desgruda os braços de mim. –Mas ainda tô magoado.
- Eu sei. Você está certo.
- Tem que contar tudo à Anna, Chul e Akin. Pessoalmente. –Friso.
- Eu vou. Comprarei até pizza para a reunião que essa torta de climão vai deixar. Quer participar?
Tudo o que eu queria era ir, mas ainda me sinto estranho.
- Talvez, não sei. Preciso de um tempo para processar as coisas.
Ele assente.
- Não me odeia?
- Não te odeio, Rafael. –Digo, já quase perdendo a paciência.
- Ah bom, porque eu me odeio um pouco agora.
- Vai ser bom para o seu ego. –Debocho.
- E como... -Silêncio. Ele ainda segura meus antebraços. –Sei que não estou em posição de te pedir mais nada, mas como eu não sei quando vou te ver de novo, eu, eu... Ah, deixa.
- Eu o quê? Começou termina, caralho! –Bato nele, sorrindo.
- Eu posso te beijar?
Rafael me pega desprevenido. Me sinto pelado em frente a uma multidão de conhecidos.
Nunca o vi desse jeito. Tão... afetuoso. Tudo nele parece aberto e carinhoso, escancarando algo que ele tem segurado junto com seus segredos.
Não respondo. Deixo nossos lábios roçarem levemente, e quando ele pressiona sua boca na minha e se prepara para introduzir sua língua, eu me afasto, dando dois passos para trás.
- Por hoje é só. –Minha voz sai firme, porém estou tremendo da cabeça aos pés, pois tenho certeza que Raquel e meu irmão viram aquilo.
- Tudo bem... -Ele começa a se afastar, mas volta atrás. –O que fará no seu aniversário?
Dou de ombros.
- Nem ideia. Não planejei nada.
- Entendi... Se toda essa confusão de ir morar com minha tia não tivesse acontecido, eu teria te pedido em namoro, no dia do seu aniversário.
Fico o encarando, boquiaberto, com a declaração. Quem era esse Rafael?
- Muito cedo...? –Ele diz, receoso.
Suspiro, dou-lhe um meio sorriso.
- Talvez muito tarde.
E vou embora.
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