01. From endings come new beginnings
“Quando você perde algo que não pode substituir
Lágrimas rolam pelo seu rosto.”
— Fix you; Coldplay
Eu deveria estar morta.
Essa é a verdade cortante que invade minha mente e contrasta com as nuvens brancas que enfeitam o céu azul. É mórbido, cruel e insensível, um pedaço de um desejo egoísta que ainda ecoa de maneira silenciosa em minha alma. Mas essa não é a realidade. Estou aqui. Viva.
Porque? Quero levantar meu rosto e gritar a pergunta ao universo, já que é o único responsável por tal decisão. O que eu tinha de tão especial para sobreviver? Porque não me deixaram seguir em frente quando meu corpo quis desistir naquele leito de hospital?
Observo através da janela do carro, vendo as copas das árvores, seus borrões esverdeados passam rapidamente pelos meus olhos. O som suave do carro em movimento preenche o silêncio, enquanto minha mente continua presa nos mesmos questionamentos. Logo à frente, uma placa indica a distância até chegarmos no local que será meu novo lar.
Thunder Bay, 12.5 milhas.
O nome não é uma novidade para mim, assim como a estadia. Já a visitei diversas vezes durante minha infância, seja para passar alguns meses ou poucas semanas, mas a percepção de uma criança para uma quase jovem adulta é totalmente diferente.
Eu mudei, assim como acredito que aconteceu com a cidade.
— Estrelinha…
A voz do meu pai é baixa, mas o apelido é suficiente para chamar a minha atenção de volta à realidade. Encaro em silêncio seu rosto pelo retrovisor, os cabelos castanhos bem alinhados, um leve sorriso em seu rosto e os olhos verdes cobertos de sua tão conhecida gentileza se chocam rapidamente com os meus, antes dele desviar a atenção para a estrada.
— Seu quarto está pronto, não o decorei para que você mesma pudesse fazer isso. Então a organização é básica.
— Básico tá legal.
Respondo voltando minha atenção para a janela. Aos poucos, as densas árvores são substituídas por postes de luz e grandes construções. Deixando claro que estamos cada vez mais perto da cidade e da minha nova casa.
— Então já está preparado? Acredito que isso será uma atividade interessante para Emma. Ela poderá fazer sua própria decoração.
Vanessa, a assistente social que me acompanha, diz de maneira suave.
— Quem sabe quando sairmos para passear em Thunder Bay não aproveitamos e passamos em algumas lojas para isso?
Encaro-a, vendo que está interessada na minha possível resposta, então aceno com a cabeça concordando com sua ideia. Mesmo que sem interesse de realmente seguí-la.
Volto a minha atenção para a paisagem e tamborilo os dedos na minha perna, tentando diminuir a sensação amarga da ansiedade. É quase como uma planta parasita, sugando toda a minha energia e deixando apenas a aflição para trás.
— Hm… sobre… a escola…
Tento puxar assunto. Minha mente está caminhando para outro lado, mais inseguranças, dúvidas e incertezas, mas preciso de algo para me centrar, uma realidade palpável, como a psicóloga disse uma vez.
— Você ainda terá algumas semanas de adaptação com a cidade e a nova rotina antes de retornar às aulas. Não queremos te sobrecarregar sem necessidade.
Vanessa explica tranquilamente.
— Uma mudança de cada vez, lembra?
Aceno em confirmação e dou uma espiada de canto, vendo que sua postura está relaxada, um sorriso meigo enfeita seu rosto e traz um alívio inesperado para meu peito.
— Obrigada. — Respondo baixinho.
— Também manteremos o acompanhamento com a psicóloga e psiquiatra, Emma. Começando por essa semana, é essencial que não seja interrompido.
Concordo com a cabeça e a apoio no encosto do banco, deixando a tensão em meu corpo se aliviar aos poucos.
— Estava conversando com Vanessa a respeito do seu anonimato. Acredito que será melhor mantê-la afastada da mídia, por segurança. Você é minha filha, mas não é algo público e nem precisa ser.
Uma sombra de sorriso passa pelos meus lábios com sua explicação. Sei que em uma cidade como Thunder Bay não fará tanta diferença eu ser mais uma riquinha influente com sobrenome conhecido, mas para a grande parte da mídia, seria um assédio sem precedentes e uma confusão que não estou preparada para enfrentar.
Afinal, todos sabiam que Andrew Donovan tinha uma filha, só não houve uma aparição pública ou materiais o suficiente para identificar quem é a herdeira do grande império contábil. Ou seja, minha identidade permaneceu anônima, ao menos pelo lado paterno.
— Eu prefiro estar fora dos holofotes por tempo indeterminado. — Volto meu olhar para a janela admirando a paisagem.
Escuto uma leve risada, sabendo que é do meu pai. É uma sensação de normalidade, considerando tudo o que me fez chegar aqui e o nosso pequeno estranhamento nos primeiros contatos.
— Emms… — Percebo o cuidado em sua voz ao me chamar. — Sei que não foi fácil lidar com tudo o que passou, mas agora você não está mais sozinha, ok? Nada mais vai te fazer mal enquanto eu estiver aqui. É uma promessa. Você está segura.
Eu. Estou. Segura.
Respiro fundo enquanto repito mentalmente essas palavras testando-as. É algo que nunca pensei que teria novamente: alguém que se preocupa realmente comigo e coloca minha segurança como prioridade.
Eu tenho isso com Vanessa e toda a equipe responsável pelo meu caso, mas é muito diferente quando é algo que vem de uma obrigação para uma situação que envolve um cuidado genuíno. E é perceptível pela forma que meu pai expressa cada palavra. Ele quer cuidar de mim e garantir o meu bem.
Isso faz meu coração doer. Um desejo infantil, ou talvez apenas um pequeno fragmento de esperança, de que se minha mãe tivesse a mesma preocupação, talvez tudo teria sido diferente. E eu nunca sofreria aquilo.
Sinto minha garganta arder e meus olhos lacrimejam, mas não faço nenhum barulho que denuncie minha quebra emocional. Mesmo sabendo que Vanessa está atenta às minhas reações, preparada para me amparar caso necessário e apenas um espaço vazio entre os bancos nos separa.
Como tudo mudou tão rápido? Um dia estava brincando e correndo pela casa falando para meu pai que seria uma grande ginasta e, no outro… Tudo aconteceu. E parou de existir. Acabou.
Passo a manga do casaco no canto dos meus olhos, limpando as lágrimas antes que elas possam escorrer pelo rosto e volto a encarar a paisagem que Thunder Bay me proporciona, tentando distrair minha mente.
Não quero mais pensar nas possibilidades, nos “porquês” ou “e se”. Aconteceu e é algo definitivo, que está marcando com cicatrizes físicas e emocionais que nunca irão embora. Esse é o fato. Infelizmente.
Passamos por várias entradas que exibem portões de ferro de diversas cores e modelos, guardando casas, ou melhor, mansões ostensivas e bem cuidadas. Deixando evidente o poder aquisitivo das pessoas que moram ali dentro. Um local de grande classe e, possivelmente, nomes poderosos.
Aos poucos, o fluxo de casas vai diminuindo, dando mais abertura para o comércio, onde várias pessoas perambulam pelas ruas ou conversam entre si. Continuamos nos afastando dessa área mais movimentada e barulhenta da cidade, indo em direção a um caminho conhecido.
Noto as diversas placas informando que estamos nos aproximando da saída em direção à Meridian. Então, meu pai vira à esquerda e alguns minutos depois, à direita, parando em frente a um portão de ferro cinza com arabescos.
Reconheço os padrões rapidamente, trazendo uma sensação agridoce de nostalgia. É a mansão Donovan, sua casa e, agora, a minha também. Assim que é aberto, o carro acelera seguindo em direção à entrada. Tudo parece do jeito que me recordo, com a diferença de que é um pouco menor do que minha versão de dez anos acreditava ser.
Assim que o barulho do motor para, abro a porta e desço do carro, encarando a entrada em minha frente. As cores claras me transmitem paz, trazendo à tona a diferença entre os meus pais. Mamãe nunca deixaria os tons próximos do branco existirem em sua residência. Papai já não se importa.
Fecho a porta do carro e olho para trás, esperando que Vanessa ou meu pai se aproximem para que eu possa subir às escadas.
— A casa também é sua, fique à vontade, estrelinha.
Um sorriso surge em seu rosto enquanto acena com a cabeça para que eu siga em frente. Volto a olhar para a entrada e, com passos incertos, subo os poucos degraus. É como se um pedacinho de cada memória guardada ganhasse vida, mostrando como a minha versão criança agia totalmente diferente de quem sou agora.
Quando paro diante da porta, seguro a maçaneta fria e a movimento com cuidado, escutando o ‘click’ suave de que está aberta. Empurro levemente a madeira e tenho, aos poucos, a visão da área interna.
Não fico surpresa com a decoração, ainda parece a mesma de seis anos atrás: paredes claras com detalhes pretos, o piso de cerâmica polido e o cheiro amadeirado permeando o ambiente. É quase reconfortante.
Adentro a casa em direção ao que ainda penso ser a sala de estar, atenta a cada pedaço que pertenceu a minha infância. Assim que chego ao local, uma imagem no porta-retratos me atrai.
Quando me aproximo, consigo ver melhor do que se trata.
É uma foto do dia dos pais. Tenho por volta de sete anos e uso um vestido lilás estilo princesa, que eu mesma escolhi. Sorrindo para o fotógrafo, abraço meu pai pelo pescoço enquanto ele me segura no colo e beija minha bochecha. Em sua mão livre está mostrando a plaquinha escrita “o melhor papai do mundo”.
Sinto uma pontada no peito com a lembrança. É perceptível a minha felicidade e inocência, como se nada no mundo fosse capaz de me atingir. Essa pequena Emma ainda estava intacta das maldades da vida.
— Isso não existe mais. — Sussurro enquanto passo a ponta dos dedos pela foto.
Dou uma olhada ao redor percebendo que estou sozinha, então respiro fundo e volto para a entrada principal, onde a assistente social e meu pai estão entretidos numa conversa.
— Esse período pode ser complicado, mas é a fase de readaptação, uma vez que ela estará de maneira definitiva…
Sua voz parece diminuir o tom gradativamente enquanto me aproximo.
— Já está explorando sua casa, Emma?
As palavras são leves e soam de forma divertida, mas seu olhar e postura indicam o comprometimento com seu trabalho, analisando-me de cima a baixo.
— Continua a mesma.
Sussurro para ninguém em específico. Ainda me sinto afetada pelas lembranças ao ponto de não saber como agir ou responder, então encaro as escadas, tentando evitar ao máximo criar contato visual.
— Seu quarto ainda é o mesmo. — A voz do meu pai chama minha atenção. — Corredor direito, a segunda porta. Tive que guardar algumas coisas para ter mais espaço. Acho que os brinquedos não estão mais na sua lista de coisas favoritas.
Nossos olhares se chocam e vejo um leve sorriso surgir em seus lábios. As íris esverdeadas são amorosas, aquele tipo de afeto que não precisa tocar para sentir e, por um instante, acredito que está tudo bem.
— Acredito que esse seja o momento em que me despeço e deixo Emma se instalar melhor.
Minha atenção vai para Vanessa, que se aproxima e me dá um abraço rápido. Sequer tenho tempo de reagir quando ela se afasta.
— Pode me ligar a qualquer momento, ok? Estaremos planejando um passeio pela cidade e a visita para sua escola o mais breve possível. Enquanto isso, descanse e aproveite sua casa.
Ela me dá um de seus sorrisos meigos e se vira, sendo guiada por meu pai até saída, fazendo com que eu os perca de vista.
Sozinha novamente, aprecio o silêncio e o cheiro que me envolve. Começo a subir os degraus para o primeiro andar, deixando as lembranças se instalarem na minha mente e causar um aperto no meu peito.
Sigo em direção ao meu quarto, desejando ter um tempo para mim sem que esteja sendo constantemente observada. Assim que eu encontro a porta de madeira escura, giro a maçaneta e entro.
As luzes acendem automaticamente, deixando à mostra as paredes em tom creme e os móveis marrom claro e branco. A cama que antes era de solteiro e abrigava minha versão criança, foi substituída por uma de casal.
Tranco a fechadura e começo a observar as coisas com mais cuidado. É estranho estar nesse ambiente. Mesmo sabendo que é meu, ainda sinto como se estivesse invadindo um espaço que não me pertence. Sou uma intrusa.
Aperto as mangas do casaco e dou mais um passo em direção ao centro do quarto, minhas mãos estão geladas e as sinto tremendo.
Está tudo bem, eu estou segura. Essa é a minha casa.
Meu olhar vai direto para o espelho, sem saber exatamente o que estou encarando. É o meu reflexo? Minha alma? O que estou procurando? O que quero ver?
— Uma alma quebrada, cansada…. Porque você sobreviveu?
A resposta não vem. Mas continuo observando atentamente cada detalhe refletido: desde meus cabelos castanhos caindo em cachos pelo meu busto mudando a cor para um vermelho vivo, até as minhas roupas de moletom que escondem cada pedaço de mim.
Minha atenção permanece nas pontas vermelhas, uma tentativa de mudar o visual e me desprender de quem já fui. Só que é impossível, ela sempre estará aqui fazendo parte de quem sou.
Chego mais perto do espelho e passo as pontas dos dedos pela superfície gelada. Meus olhos parecem mortos, perdidos. Mostrando exatamente o que está guardado no meu interior: a minha alma morta.
Desvio minha atenção e vou em direção a cama. Tiro os tênis e as meias, colocando-os no cantinho no chão, então desfaço a arrumação e me enfio debaixo da coberta, virando um montinho escondido.
Respiro fundo tentando acalmar minha mente e adormecer mais rápido.
Eu só quero dormir sem pesadelos.
༘୧゚🖌
⊹ ₊ᜰ 01. Depois daquele susto, agora realmente começamos a história! Peço desculpas pela demora, mas minha rotina está uma loucura e mal tinha tempo de sentar e me concentrar em Ápeiron.
⊹ ₊ᜰ 02. Algumas mudanças já são perceptíveis no capítulo anterior e nesse, mas aviso que a linha do tempo está diferente! Assim como a idade deles e alguns acontecimentos...
⊹ ₊ᜰ 03. Andrew e Vanessa, assim como Emma são personagens originais e não aceito inspirações, adaptações ou cópia. Plágio é crime e não sou tolerante com isso.
⊹ ₊ᜰ 04. Novamente, agradeço pelo carinho e por esperarem o retorno de Ápeiron. Amo vocês! 🥰❤️
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