Capítulo Único
"In your house I long to be
Room by room patiently
I'll wait for you there
Like a stone
I'll wait for you there
Alone"
- Audioslave
Eu tive um sonho onde me deitava de bruços na areia de uma praia, sentindo as ondas de um mar de tinta avançarem vagarosas sobre o meu corpo. Os movimentos daquele oceano traziam várias cores que nunca misturavam os seus belos tons, e eu as observava ali, deitado, sem fazer nada, apenas se sentindo em paz. Dizem que o mar que aparece em nossos sonhos representa a nossa vida, e a minha sempre foi uma caixinha de surpresas, como a caixa de chocolates que Forrest Gump dizia no filme, e a maior de todas elas surgiu quando eu entrei no apartamento 210.
Mas tudo começou quando eu acordei em mais um dia que poderia ser normal, mas não foi. Me revirei no leito sentindo a preguiça domar os meus movimentos, se eu pudesse ficaria deitado o dia todo retido nos meus pensamentos, longe de todo mundo. Depois de mais de meia hora tentando aceitar o fardo de viver mais um dia, me levantei e caminhei até o banheiro, onde encarei o meu reflexo no espelho sobre a pia.
Eu me chamo Isaque, tenho dezoito anos, e tudo sempre parece igual, como o outono e as folhas que caem no quintal. Eu vejo os mesmos olhos escuros me encarando através do espelho, a mesma pele negra contornando a silhueta do meu corpo, as mesmas sobrancelhas grossas e bagunçadas, o mesmo brinco na orelha esquerda e o mesmo cabelo cacheado e volumoso. E essa é a parte que eu mais gosto no meu corpo, o meu cabelo, me sinto relaxado quando enrolo os cachos nos meus dedos e sinto o cheiro adocicado do shampoo que uso, isso me ajuda a lidar com minhas ansiedades.
Meus dias também são sempre iguais, mas hoje pelo menos não vou ter aula na faculdade de administração, e essa é a deixa perfeita para passar o dia todo no meu quarto ouvindo música e jogando meus videogames. Após meu ritual higiênico matinal, abro a porta do meu quarto e sou recepcionado pelos latidos animados de Raito, o chihuahua amarelo e peludo da minha avó. Eu saí da casa dos meus pais no interior e vim morar com minha avó na capital para estudar, mas o real motivo é que alguém precisava ficar de olho nela. Minha avó não é tão velha mas é inquieta, sempre tá fazendo alguma coisa absurda como subir em cadeiras bambas para pegar potes em cima do armário ou outras peripécias, e todo mundo morre de medo dela acabar se machucando. Mas eu não me importo, até gosto de cuidar da minha avó, e pelo menos ela é uma ótima cozinheira. Já faz mais de um ano que vim pra cá e o Raito já estava aqui quando cheguei, minha avó não lembra direito de onde ele veio, talvez seja um animal de rua que ficava pela vizinhança e veio parar aqui por causa da comida que minha avó deixava na calçada para os cãezinhos, mas eu já ouvi o porteiro do nosso condomínio dizendo que ela ganhou esse cachorro num bingo.
Tomo meu café da manhã com minha avó enquanto conversamos sobre novelas bíblicas e depois levo o Raito para passear pela vizinhança. No caminho, aproveitando a tranquilidade que vem com a brisa fresca de uma manhã na área nobre da cidade, aproveito para organizar meus pensamentos e relembrar tudo o que tenho que fazer hoje, o que não é difícil já que é quase nada. Como disse antes, hoje não vou ter aula e o ponto alto do meu dia vai ser ir malhar. Eu sei que eu devia ir atrás de emprego como qualquer outra pessoa da minha idade, mas sempre que eu procuro uma vaga lembro das outras pessoas com mais necessidades que vão em busca da mesma vaga e isso me desmotiva. É difícil sobreviver sendo tão altruísta.
Por alguma ironia do destino, a academia é o único lugar onde o barulho e a convivência com outras pessoas não me incomoda, e começar a malhar foi a melhor coisa que eu fiz desde que cheguei aqui, é como se uma bomba de autoestima explodisse no meu cérebro a cada exercício. Também foi lá que eu conheci o Lucas, e descobri que coincidentemente nós temos a mesma idade, que ele estudou na mesma escola onde eu fiz cursinho antes de passar na faculdade, e que moramos no mesmo condomínio. Engraçado como às vezes a gente tem que sair de casa pra conhecer gente de casa.
— Ei, Isaque — Lucas me aborda durante minha série de repetições no puxador vertical. Tirei os fones do ouvido e pausei o álbum do U2 que eu costumo escutar no Spotify durante os treinos. Mas antes de responder pude dar uma boa olhada nele. Lucas é um pouco mais baixo do que eu, não que eu seja a pessoa mais alta do mundo. Sua pele é branca e rosada, e seus cabelos castanhos levemente loiros sempre estavam arrumados sobre sua testa. Lucas até era forte, apesar do corpo pouco definido e meio esguio, mas sua maior característica era a cara de marrento, como se tivesse raiva de tudo e todos, mas é só a cara mesmo, Lucas sempre foi um fofo — Vai fazer alguma coisa hoje de tarde?
— Só um monte de nada — Respondo com um sorriso no rosto. Eu gosto de ser bem humorado, a vida já é chata demais pra se levar a sério.
— Quer ir comigo no colégio buscar minha carteirinha? — Percebo uma certa hesitação nas palavras de Lucas, e ele nunca foi de ser tímido.
— Pode ser — Respondo, e em seguida coloco os fones de volta no ouvido e recomeço a música — Passa lá em casa na hora.
— Tudo bem, até mais tarde.
Lucas foi embora em seguida, e eu terminei o meu treino e o álbum do U2, mas o refrão melódico de "Sunday Bloody Sunday" continuou grudado na minha cabeça pelo resto do dia. Voltei para casa e para minha satisfatória obrigação de não fazer nada após um belo almoço. As horas se arrastaram naquela tarde preguiçosa, e o único esforço que eu fiz com meu corpo fatigado do treino foi para movimentar meus dedos ágeis nos comandos de um videogame.
Lucas chegou aqui lá pelas duas e pouco e já se acomodou sentado na minha cama, ele sabia que eu ainda demoraria uns quinze minutos me arrumando, em especial o meu cabelo. Logo gostei das roupas que ele usava e da combinação de rosa e preto que me lembrou um Pokémon chamado Granbull, a perfeita combinação de fofura e agressividade. Desde que ele chegou nós começamos a conversar sobre assuntos banais da juventude, e foi assim durante todo o trajeto até a escola e também na volta. Lucas parecia contaminado com o marasmo da tranquilidade daquele dia sem nada de especial, e era até bom vê-lo despreocupado depois que tudo que aconteceu recentemente. Mesmo assim, ainda percebi o mesmo tom hesitante de antes, em especial quando ele me encarava buscando algo. Porém, talvez eu esteja enganado, nunca fui bom em ler as pessoas.
Já era perto das três e meia da tarde quando retornamos. Caminhávamos pela passagem principal do nosso condomínio, onde os blocos se dispunham simetricamente à nossa volta na forma de casas tropicais de três ou quatro andares divididos em diversos apartamentos, todas iguais, com os mesmos telhados inclinados e paredes brancas. Raito já veio correndo em meio a latidos ao nos avistar, e, ao fundo, pude ver minha avó sentada numa cadeira reclinável de praia em frente ao nosso bloco. Raito balançava seu rabo alegremente enquanto brincava com Lucas e corria à sua volta, ele sempre ficava mais animado perto de Lucas como se ele exalasse algo contagiante. Confesso que, às vezes, me sinto da mesma forma.
Em seguida, ele tirou uma foto do bolso. Era um retrato de uma mão segurando um anel de coco em contraluz, com uma janela de fundo e um filtro amarelado por cima da fotografia original.
— Preciso da sua ajuda para mais uma coisa — Lucas passa a foto para mim e a observo com curiosidade — Essa é a única pista que tenho sobre o antigo apartamento do meu primo, aquele que ele sempre ia para se inspirar — Ele me faz um sinal para virar a foto e eu encontro o número 210 escrito no verso numa grafia simples de caneta esferográfica.
— Você não sabe onde o seu primo morava? — O encarei com uma certo ar de confusão, aquilo realmente foi estranho.
— Eu sei, quer dizer, eu sabia. Por algum motivo não consigo lembrar — Isso me deixa ainda mais confuso, e eu expresso claramente minhas dúvidas no olhar — Vai dizer que você sabe? — Ele me pergunta enquanto cruza os braços, me desafiando. E realmente, eu não sabia dizer se sabia. Como diz o velho ditado, só sei que nada sei — Acho que 210 é o número do apartamento.
— Mas e o bloco?
— É o que temos que descobrir.
Mesmo estranhando toda a situação, aceitei e embarquei na história. Lucas era muito apegado ao primo, um músico que morreu alguns meses atrás num acidente de trânsito, que até hoje temos nossas dúvidas se foi realmente um acidente ou um suicídio muito bem elaborado. Eu cheguei a vê-lo vez ou outra por aqui, parecia ser um cara legal. Depois disso o Lucas ficou muito mal, se isolou por um tempo, sumiu até da academia. Às vezes eu ia conversar com ele ou ele vinha no meu apartamento para jogar videogame, e ficamos juntos um bom tempo, assim as coisas foram se normalizando aos poucos, mas sempre houve aquele peso de ter passado por um momento difícil. Fiquei pensando um pouco sobre o caso do apartamento secreto, aquele número me era bem estranho, acho que nunca tinha visto nenhum acima do número 170, mas o condomínio era bem grande e eu ainda não tinha explorado tudo, não me impressionaria se tivesse muitos outros além do 210.
— 210? Deve ser para lá — Minha avó disse, apontando para o fim da passagem, quando a perguntamos sobre o apartamento. Raito continuava incansável, correndo por aí com as orelhas erguidas — Mas o que vocês querem por lá?
— Estamos numa caça ao tesouro — Lucas respondeu fingindo animação, arrancando um suspiro de esclarecimento da minha avó e mais um olhar confuso meu, talvez eu tenha andado muito confuso ultimamente. Ele sorri quando nos encaramos.
— Ah! Essas crianças de hoje em dia não tem mesmo nada melhor para fazer — Apesar de gostar muito da minha avó, preciso confessar que ela pode ser bem inconveniente de vez em quando.
— Melhor a gente ir andando! — Agarro Lucas pela mão e sigo na direção indicada. Se eu tivesse sido um pouco mais atento, teria percebido uma reação inesperada do meu companheiro.
Caminhamos até o fim da passagem ainda sem rumo, e sem sucesso na investida a melhor opção foi voltar a entrada e perguntar ao porteiro. Diferente da minha avó, esse interlocutor não caiu na desculpa da "caça ao tesouro" criada por Lucas, e foi preciso um pouco mais de enrolação para arrancar a informação desejada. Enfim, após momentos de sufoco, conseguimos descobrir onde fica o apartamento 210, e para nossa surpresa, era bem distante de onde achávamos que era.
Percorremos uma passagem secundária interligada com a principal e logo encontramos nosso destino, era o apartamento do segundo andar do primeiro bloco a nossa frente, não foi difícil achar. Sempre imaginei que os apartamentos vazios ficavam com algum aviso na porta indicando que estavam vazios, mas a porta branca do apartamento não tinha nada de especial além do número 210 cravado sobre o olho mágico.
Lucas abriu a porta com facilidade, e o fato de entrar assim num lugar que devia estar trancado chamou a minha atenção, mas eu apenas o segui. O apartamento secreto não era diferente dos outros, tinha a mesma arquitetura básica padrão naquele condomínio, e assim que entrei encontrei a janela vitrô que eu havia visto na foto. O lugar era aconchegante, e realmente inspirador, tinha plantas por todos os lugares, algumas em grandes vasos no piso e outras penduradas nas paredes por cestinhas. Alguns itens da mobília haviam sido removidos, entre eles algumas tomadas, o que deixou alguns buracos nas paredes com fios sobressalentes, mas os que ainda estavam no apartamento foram arrumados e embalados. Tudo estava limpo. A porta principal levava para uma sala de estar onde havia um pequeno sofá enrolado com plástico, diante dele havia uma pequena cômoda vazia, onde antes imaginei que deviam estar uma televisão, CDs, livros e outras miçangas. Ao ver os armadores na parede, também imaginei que diante do vitrô devia ter uma rede. E aquele pequeno espaço tinha muitas caixas com todo tipo de coisa dentro, desde porta-retratos até brinquedos velhos, memórias que ainda não tinham sido recolhidas da região do luto.
Continuei observando o ambiente à minha volta enquanto Lucas acendeu cigarros para a gente. Meu organismo foi entorpecido pela nicotina quando decidi explorar o resto do lugar. Segui para o corredor, onde uma pequena brincadeira no interruptor me fez perceber que não tinha energia elétrica, depois descobri que também não tinha água quando mexi nas torneiras da cozinha. Passei por um quarto onde encontrei um armário com as portas abertas e uma cama bagunçada, o que me fez ter pensamentos libidinosos sobre o fato de ter um lugar vazio e acessível, talvez alguém já tivesse usado aquele espaço para festinhas particulares. Tentei afastar essa imagem impura da minha mente enquanto me observava num espelho que achei por ali e dava mais uma tragada no cigarro. Meu cabelo continuava lindo. No fim do corredor tinha o que devia ser uma cozinha antes, agora sem todos os eletrodomésticos e outros itens que fazem uma cozinha ser interessante, a coisa mais legal que encontrei ali foi um banheiro com banheira. Eu nunca tinha visto uma banheira antes, e me permiti o prazer de entrar nela e me deitar naquela cerâmica gelada por um tempinho.
Quando voltei a sala, encontrei Lucas sentado no sofá plastificado, fumando cabisbaixo enquanto batia seu pé no chão de maneira ansiosa.
— Fizeram aqueles blocos novos do outro lado, ainda não decidiram o que fazer com o apartamento do meu primo — Ele disse quando percebeu que eu me aproximava, mas sem olhar para mim.
— E o que estamos procurando aqui? — Joguei o que sobrou do meu cigarro no piso e esfreguei meu pé sobre ele. Eu comecei a me sentir nervoso, acho que estava começando a ficar assustado. Apartamentos abandonados que ninguém lembra onde ficam e com portas destrancadas, tudo estava muito estranho. Confesso que nessa hora senti vontade de ir embora, sair correndo mesmo, mas eu não queria deixar o Lucas sozinho ali, eu sabia muito bem tudo que ele havia passado, não podia ser tão egoísta ao ponto de desrespeitar um momento como aquele.
— Nada — Lucas levantou-se do sofá e veio em minha direção. Continuei na mesma condição, encostado na parede observando ele se aproximar. Agora era eu quem demonstrava está hesitante - Já encontrei.
Lucas se aproximou ainda mais, e pude ver meu reflexo refletido no fundo de seus olhos, agora muito próximos dos meus. Então, ele me beijou, colando seu corpo no meu e me envolvendo em seus braços. Eu fui pego de surpresa, fiquei sem reação, mas logo retribui o beijo, eu estava gostando, não do que estava acontecendo com os nossos corpos, mas de saber que o Lucas gostava de mim, porque lá no fundo eu também gostava dele sem saber. Eu me preocupei quando vi ele mal, fiquei feliz ao vê-lo se reerguer, e ficaria ainda mais feliz ao vê-lo seguir em frente, mas saber que ele queria fazer tudo isso comigo ao seu lado fez me sentir especial.
Só então eu entendi como tudo se encaixava. Aquela história de não se lembrar onde fica o apartamento de seu primo nunca existiu, ele só queria me levar até algum lugar onde pudesse ficar comigo em privacidade, mas eu gostei até disso quando percebi que ele queria sair da zona de conforto antes de apresentar as cartas na mesa. Se ninguém souber onde fica algum lugar, obviamente não vai ter ninguém lá para te julgar quando você se arriscar a fazer aquilo que você mais quer, tanto faz se der certo ou errado. Isso foi genial demais, e agora tudo fazia sentido.
Como eu disse antes, a minha vida sempre foi uma caixinha de surpresas, e elas sempre vem quando a gente menos espera. Eu não esperava encontrar um mar de tinta no apartamento 210.
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