Sobre Gatos e Bruxas
"Desde o início do mundo, os humanos e os animais foram melhores amigos, companheiros leais, inseparáveis desde o dia em que Deus chamou o homem e ordenou que desse nome a cada criatura vivente nessa mundo..."
Foi esse o discurso de minha mãe e de Lena para me dar uma indireta sobre a questão de meu familiar, bem na hora do café da manhã.
- Sabemos que você ainda é um filhote Chest, mas quando for um gato adulto, poderá morar com seu familiar - disse Lena.
Minha mãe estava insegura, eu percebí isso nela, afinal, como toda mãe, ela era super protetora, e como todo filho, eu sabia que um dia teria que me separar dela. Mas o que eu não conseguia entender, era o porque da conversa sobre animais e humanos, ou sobre gatos e bruxas, sei lá.
- Chest, você está nos ouvindo?
-???
Pensar que minha vida seria apenas para acompanhar um humano seria algo fácil, mas levar um chute fortíssimo por defender um, foi algo muito difícil de se encarar, embora Lena tivesse me curado e todos me vissem como um herói, eu me via completamente a mercê do destino, como se o único sentido da minha vida fosse ser o bichinho de estimação de um humano.
- Eu não quero um familiar - disse com convicção.
- Por que você diz isso? - a loura perguntou surpresa.
Respirei fundo.
- Eu tenho muitos outros objetivos para minha vida. Se me prender a um humano, terei que segui-lo em sua jornada, e não terei tempo para a minha - respondi.
As duas me fitaram surpresas.
- Quem o ensinou a falar desse jeito? - a gata branca perguntou com um certo transtorno.
- Eu sempre admirei o jeito como você fala mamãe, sabe disso. E... andei praticando com um esquilo outro dia - respondi lembrando da minha pequena aventura da semana anterior.
Lena se aproximou da minha cadeira, onde eu tinha que ficar sentado em uma pilha de livros em cima da mesma, para que pudesse alcançar minha refeição.
- Chest, quando eu vivia sozinha aqui nessa casa, eu era muito triste. Mas quando conheci sua mãe, fiquei mais feliz - ela falou dando uma breve coçadinha em minha cabeça.
- A verdade é que você não pode se recusar a ter um familiar, pois o destino dará um jeito para que vocês se encontrem - mamãe proferiu comu ma piscadinha.
- E no momento em que se encontrarem, um laço fraterno muito forte os ligará. Serão inseparáveis - Lena concluiu esticando sua mão para acariciar sua familiar.
- Quanta melosidade! - reclamei -Eu já lí sobre coisas assim nos livros em que estou sentado.
- Não vai poder fugir do seu destino - minha mãe alertou-me.
- Eu farei o meu próprio destino - respondi. De maneira cortês, é claro.
Lena voltou ao seu lugar da mesa e tornou a tomar seu chá, e mamãe a tomar seu leite.
- Deve ser mais uma fase - a bruxa cochichou para a gata.
- Essa relutância indica que ele está na fase do "não" - a gata afirmou decidida.
- Lembra quando ele estava na fase do "porquê"?
-Claro que lembro. Foi logo quando ele completou dois meses. Era sempre "o que é isso?", ou "para quê isso serve?", ou "por que as coisas são assim?"
- E quando ele resolveu dar início ao treinamento de "se tornar o gato mais forte de todos?" - o sorriso da mulher brincou.
- Foi a fase do "sou diferente de todos que vivem no mundo", isso ele terá para sempre, não tem como tirar da cabeça dele - disse mamãe.
- Vamos torcer para que isso não se transforme na fase do "sou melhor que todo mundo" - Lena afirmou.
Ótimo, elas estavam fazendo aquela coisa irritante outra vez: Falando das minhas fases. Até mesmo para um gato cortês como eu era impossível continuar calmo com mamãe e Lena falando e rindo sobre mim. Além disso, elas estavam completando a frase uma da outra. A conexão de familiares deve mesmo ser algo irritante e meloso, de maneira nenhuma eu iria querer acabar dessa maneira.
Ah, pelo amor de Deus! É difícil ficar calado quando falam coisas comprometedoras de você bem na sua frente! Por quê tive que nascer nesse reino, estar nessa cabana e viver com essas duas?!
Eu pensei em dizer isso, mas me contive. Não me importo em que lugar estou, contanto que essas duas estejam comigo.
- Já terminaram? - perguntei tedioso.
Lena e mamãe riram baixinho por uma última vez, depois ficaram em um silêncio inquietante, como se estivessem me escondendo algo, talvez uma surpresa.
- O que foi? Por que estão assim de segredinho?
Depois de uma breve troca de olhares, elas responderam, finalmente:
- O que nós queremos te contar mesmo, Chest, é que hoje é o dia do festival de Claira, e queremos que venha conosco para a cidade - disse Lena.
- Festival de Claira?
- Hoje é o aniversário do reino. O reino inteiro vai celebrar nas ruas - a gata explicou.
- E todos do reino estarão lá - Lena completou - Será o momento ideal para conhecer o seu familiar, seja lá quem for - os olhos verdes da bruxa logo ganharam fulgor.
- E se nenhum deles for meu familiar?
-Algum deles terá que ser, Chest - mamãe afirmou.
- Mas... e se o meu familiar não estiver aqui? E se ele estiver... em outro lugar? - retruquei pensativo e satisfeito pelo fato de que houvesse a probabilidade de nunca o encontrar.
- O destino fará acontecer, tenha fé. Mas nunca saberá se não tentar - a mulher respondeu com alegria.
Elas ainda não haviam compreendido a minha vontade. De maneira nenhuma eu desejaria uma bruxa familiar, isso traria problemas para mim!
- Vamos ao festival? - mamãe me encarou com aquela típica e doce expressão, sempre me foi iimpossível resistir à esse olhar.
Ah mãe! Está jogando sujo!
Elas continuaram a aguardar minha resposta. Eu não queria ir, mas percebendo que mamãe e Lena estavam tão esperançosas por mim...
- Vamos - respondi a contragosto, mas acabei aceitando por não querer decepcioná-las.
E mesmo que negasse, teria que ir do mesmo jeito.
Mamãe me acariciou com a pata e Lena me deu um beijo de tanta felicidade, felicidade até de mais, como se ela quisesse mesmo ir à cidade, mas porquê?
Espere, um momento...
- Lena, você parece muito feliz por ir à cidade... - iniciei desconfiado.
- Claro, hoje é um dia de festa - ela respondeu com animação. Bebeu o chá rapidamente, o pão foi empurrado para a garganta sem demora, então se levantou de seu acento e começou a limpar a mesa - Assim que terminar de arrumar, vamos ao festival.
Está fingido? Disfarçando?
- Por quê tanta pressa, Lena? Não serei eu quem conhecerei meu familiar? - indaguei com o olhar semi cerrado - Existe algo a mais nessa história que esteja escondendo?
-Escondendo? O que esconderia? Chest, tudo o que eu faço é presenciado por você e sua mãe! - Lena esclareceu, mas desta vez, parecia nervosa.
- Tem certeza, Lena? - mamãe pareceu notar a anciedade da loura.
- Tenho, Égide - ela respondeu.
- Ainda acho que você esconde alguma coisa.
- Chest!
- Mãe, olhe pra ela. Ela está mais animada desde que... - parei de falar assim que percebi Lena corar.
Mamãe pareceu entender o que estava insinuando.
Não demorei tanto para resolver esse mistério, tudo o que precisei fazer foi pensar um pouquinho: Hoje é o aniversário do reino e todos comparecerão na festa, e se Lena que ir à um festival cheio de pessoas, (coisa que ela não costuma fazer, afinal bruxas não podem sair andando por aí) significa que ela quer encontrar alguém, e certamente, alguém muito importante aponto de fazê-la enfrentar o risco. Quem será que se encaixa na conclusão?
Eu sabia!!!
- A Lena quer ver o sir. Cléber! - exclamei infantilmente, esquecendo da minha cortesia e agindo como um gatinho irritante.
- O quê?! - Lena gritou em defensiva. Agora estava pálida e nervosa.
- Lena, você quer se encontrar com o sir. Cléber? - mamãe a interrogou surpresa.
- Claro que não!!!
- Não adianta negar, Lena - começava a me vingar dela um pouquinho satisfeito - Você quer ver o sir. Cléber. Tudo bem, eu entendo, eu também gostei dele.
A feiticeira ficou sem-jeito novamente.
- Você usou seu dom nele, não foi? O que você viu nos olhos dele? - ela perguntou, tentando, mas não conseguindo disfarçar sua curiosidade.
Encarei Lena com o meu olhar utimato, fixo no seu:
- Por que não pergunta para o próprio sir. Cléber?
Estávamos seguindo a trilha da floresta em direção à cidade, devo admitir que no começo eu não havia me interessado nem um pouco em ir para esse festival apenas para brincar de "encontre seu futuro familiar", mas depois de um tempinho, fiquei bem animado para ir à cidade por causa da festa, minha vida na floresta era monótona, comum, trivial, insípida (como é bom ser um gato cortês... me sinto tão nobre) e acho que um pouco de diverção faria bem.
Mas por outro lado, Claira é um reino que mata bruxas - pensei comigo - mesmo com a proibição da caça, seria impossível não notar os olhares maldosos que lançariam sobre Lena, a única bruxa que restara no reino.
Felizmente, ela estava coberta com uma longa capa cor-de-ocre, com a intenção de que ninguém a notasse. Mas por baixo daquela capa sem brilho, estava uma linda mulher usando pintura leve no rosto, o cabelo solto bem arrumado e um vestido vermelho simples, mas que modelava-lhe a silhueta. Eela estava muito bonita, ao contrário de mim, que estava usando um laço rosa, grande e horroroso no pescoço.
- Por que eu tenho que usar isso mãe?
- Você tem que ficar bonito para o festival.
- Mas esse laço é rosa!
- As garotas gostam de rosa.
- Mas e se for um garoto? Ele vai me achar ridículo mãe!
Minha mãe continuou me explicando que eu deveria estar com a melhor aparência o possível, mas eu prefiria acreditar que se um dia eu tiver um familiar, com certeza me aceitaria do jeito que eu sou, assim como eu aceitaria do jeito que ele ou ela seria...
Andamos por um longo tempo na floresta até Lena avisar que já estávamos chegando na cidade, quando para minha desgraça, um certo alguém me chamou ao longe.
- Ei gatinho! Você está uma gracinha!
Olhei nervoso para todos os lados da floresta, não havia ninguém.
- Gatinho, aqui em cima!
Levantei a cabeça na direção em que ouvi aquela voz fina e irritante, parecia com a voz do...
Não pode ser!
- Esquilo! - gritei raivosamente para o meu pequeno rival, que me retribuiu lançando uma pinha do alto do galho em que estava.
Não disse que era minha desgraça?
- Bom dia senhoritas Lena e Égide - o oedor cumprimentou-as.
- Bom dia Arth - elas responderam em soneto.
- Vocês conhecem ele? - me surpreedi com o fato.
- Ele vive na floresta Chest, é claro que o conhecemos - respondeu mamãe.
- Vai pra onde, gatinho? - o irritante falou.
- Não é da sua conta! - respondi completamente envergonhado por me encontrar trajado da pior maneira o possível.
Como amaldiçoo esse laço!
- Seja lá pra onde está indo, volte antes que se embarasse todo. Entendeu? Antes que se embarace todo!
E o esquilo gargalhou sózinho de sua piada.
-Deixe esse tolo falar Chest, você está lindo - disse mamãe.
Por que será que não me sinto assim?
Depois de passar da árvre onde o esquilo estava e andar um pouquinho mais além, pude ver pequenas casas e muitas pessoas andando pelas ruas, havia muita música, dança e alegria, como nunca havia visto antes. Flores enfeitavam as ruas e as casas, crianças brincavam e comiam, bandeiras com o desenho de uma flor de amaranto - o brasão de Claira - enfeitavam todo o cenário. Uma festa verdadeiramente vibrante e colorida.
- São muitas pessoas - disse admirado.
- Todas do reino - Lena explicou, em seguida se abaixou para falar à mamãe e eu:
- Aproveitem a festa, mas tenham muito cuidado. Devemos ser discretos.
- Lena, como vamos encontrar o sir. Cléber no meio dessa mutidão? - perguntei-lhe.
- O rei e sua comitiva sempre vem para o festival. Eles podem aparecer a qualquer momento com a guarda real, acredito que sir. Cléber estará com eles - ela respondeu.
- Mas se a guarda real virá, Saiden também estará aqui - mamãe proferiu.
- Eu serei discreta, prometo. Já estive em festas como esta antes quando mais nova - Lena falava em sussurros - Agora vamos. E divirtam-se.
Lena seguiu em uma direção e mamã e eu em outra, pois gatos de mais perto de uma mulher chamaria muita atenção, disse mamãe.
- Fique sempre perto de mim Chest, para não se perder - ela alertava enquanto andávamos entre uma horda de pés, andando pra lá e pra cá; e eu, que era um filhote, me vi ao risco de ser pisoteado.
Talvez fosse uma coisa boa morrer alí, pensei entediado, já estava cheio de passear entre os humanos.
- Como vou poder escolher um para ser meu familiar se só consigo ver os pés deles?!
- Você não precisa da sua visão ou do seu dom, apenas continue andando. Se passar por perto de alguém e sentir algo, então você encontrou seu familiar - mamãe explicou.
- Sentir o quê? - perguntei confuso. O estresse me impedia de continuar.
- A conexão - respondeu - Será como um sentimento de amor fraterno muito profundo, você saberá quando sentir. Agora se concentre e vamos.
- Não consigo me concentrar com esse laço idiota...
- Você disse o quê?!
- Nada mamãe.
Continuamos a andar por toda aquela multidão, e não senti nenhuma conexão ou coisa parecida. Talvez eu estivesse certo, talvez meu familiar não seja desse reino ou talvez nem exista, eu pensei.
- Estou cansado de tanto andar mamãe, minhas patas estão doendo...
- Tudo bem, faremos uma pausa.
Fomos para embaixo de uma carroça de frutas e descansamos em sua sombra.
- Está com fome filhote? Me espere aqui, trarei algo para comer.
Depois que minha mãe sumiu na multidão, me entreti com um raminho das folhas das uvas que estava semi-caída na carroça. Em meu momento de distração, maginava que era um dos fios das bolas de lã que Lena usava para tricotar e bordar.
- Oi gatinho - escutei aquela voz outra vez.
Mas será possível?!
Virei o rosto e avistei ele. Estava lá, comendo um pequeno cacho de uvas. Era ninguém mais do que aquele maldito esquilo.
- Então é isso o que os gatos fazem quando estão querem passear? Se enfeitam com laços rosa e brincam com raminhos de videiras? - disse provocativo.
- Para sua informação, não estou inteiramente em um passeio. Estou aqui à procura do meu familiar - esclareci com arrogância, defendendo-me após ter sido pego desprevenido.
- Só uma bruxa pode ter um familiar, e parece que você chegou tarde, porque a única bruxa que restou nesse reino é a familiar da sua mãe - disse o esquilo, ou melhor, disse Arth.
Ele estava mais do que certo, fiquei sem saber o que responder, tudo o que me restou a fazer foi disfarçar dando de ombros e desviar minha atenção para a festa.
Descansando sob a carroça tinha uma visão melhor das festividades. Humanos dançavam alegres ao som dos instrumentos de corda e sopro; haviam muitas crianças felizes, todas lindas e sorridentes; homens e mulheres aproveitando o dia para lucrar com suas barracas de venda; tanta animação em pouco tempo, tantos humanos em um só lugar... Tantos perfumes, de frutas, de pessoas, flores, assados, especiarias, doces, bolos, refrescos e vinhos...
Perfumes demais invadindo meu faro.
Isso além do barulho das músicas misturados às vozes de vendedores e clientes.
Assim não dá mais. Quero ir embora.
- Essa festa é muito injusta, sabia? - o esquilo disse tentando puxar assunto, ao mesmo tempo se aproximando de mim.
- Injusta?
- É... Há séculos atrás esse reino inteiro era uma única floresta de amaranto, e os únicos habitantes desse lugar eram os animais mágicos, de todas as espécies. Mas os humanos invadiram essa terra e expulsaram a maioria das criaturas mágicas, e hoje, eles comemoram mais um ano dessa injustiça.
- Esse reino pertencia aos animais?
-Pertence - respondeu Arth.
Logo, o festival de Claira ganhou um novo sentido para mim.
Essa festa é muito injusta.
- Como sabe dessas coisas? - ainda olhava a festa quando perguntei ao roedor.
- Um velho amigo guardião da floresta me contou essa e muitas outras histórias. Ele é muito sábio e gosta de dividir os seus conhecimentos com os outros animais da floresta.
Voltei meu olhar sobre o olhar de Arth, não sei porque não havia feito isso antes, então resolvi fazê-lo de uma vez e enchergar sua lembrança mais marcante.
...
- Ei gatinho, seus olhos estão vermelhos - o esquilo falou aproximando o rosto ao meu com curiosidade - O que está acontecendo com você? - perguntou, enquanto o encarava profundamente.
- Digamos apenas que admirei as janelas da sua alma - respondi.
Logo depois, minha mãe voltou com uma coxa de galinha assada na boca, pode se dizer que meus olhos brilharam ao ver aquele pedaço de carne apetitso que mamãe trazia consigo nos dentes.
- Aqui querido, coma. Mas tenho uma má notícia, não poderemos mas ir para aquele lado - disse mamãe.
- Ela não é a única a se arriscar por você - sussurrou Arth em meu ouvido, o que me deixou irritado em parte. Felizmente, consegui resistr à sua provocação controlando-me no olhar cativante de minha mãe, ignorando Arth por completo.
- Obrigado mamãe. Coma comigo, a senhora merece.
- Não posso, eu preciso ver como Lena está - mamãe respondeu, voltando em seguida, a atenção para o irritante - Arth, poderia cuidar do meu filho enquanto procuro Lena?
- Tudo bem, contanto que ele me obedeça dessa vez.
Trocamos um olhar de gato e rato apó a partida de minha mãe .
Se eu não tivesse visto através dos olhos de Arth, nunca teria aceitado ficar sob a guarda dele na ausência de minha mãe.
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