CAPÍTULO 11 - ESBOÇO DE UM CRIME FEDERAL
De fato, era um esquema cuidadoso. Ou tão cuidadoso quanto parecia possível. Na verdade, era uma ideia meio suicida. Ainda bem que Kristina não iria participar.
A execução ocorreria na madrugada do dia dez, Dia da Decisão. Assim, mais tarde, as milhões de pessoas que estariam no aguardo da aparição do presidente tornariam impossível aos militares esconderem ou modificarem a verdade do acontecimento. Sob o disfarce de um carro e equipamentos do exército, concedidos por Esteban Lan Paker — inclusive capacetes, embora não conectados à Rede Nacional —, o grupo invadiria o Palácio Presidencial à surdina. Isso seria possível porque Briel, com a copilotagem de Esteban, estaria em um esconderijo longe dali, controlando todo o sistema de segurança do prédio, podendo abrir o caminho pelo qual o grupo passaria. Além disso, eles também teriam acesso aos capacetes de cada guarda no local.
Briel e Tone tinham desenvolvido um programa para atacar os capacetes, criando neles uma descarga elétrica, através do fone de ouvido, capaz de imobilizar momentaneamente o usuário. A partir de seu notebook, Briel aplicaria o programa em determinados guardas. No mapa do Palácio Presidencial que teria em sua tela, esses guardas estariam indicados por pontos, devido às coordenadas enviadas pelos capacetes. Cada integrante do grupo teria consigo um localizador ao qual só Briel e Esteban teriam acesso, podendo vê-los no mapa como pontos de outra cor.
Kristina perguntou se os funcionários do Palácio não poderiam acessar o próprio Computador Administrador e tirar Briel do controle. Elinor explicou que, enquanto a conexão de Briel estivesse ativa, qualquer um que quisesse entrar no sistema teria que desvendar o algoritmo para a criptografia que ele colocaria. Portanto, o grupo precisava terminar o serviço antes que alguém descobrisse o tal código.
Com disfarces completos e com Briel a guiá-los, Marko, Elinor, Adriana e Tone (e Ronan, caso não estivesse preso) iriam se dirigir até os aposentos de Sarto, no terceiro andar, sempre discretos e incapacitando quantos guardas fosse preciso.
Franke ficaria no primeiro andar, escondido, encarregado de garantir uma saída na hora da fuga. Com a cobertura dos outros, Elinor entraria no quarto do Marechal e o finalizaria. Então todos sairiam. Essa era a parte na qual, se os militares conseguissem quebrar o algoritmo e tirar Briel do controle, o grupo estaria exposto, pois já teriam causado desordem demais para não chamarem atenção. Mas o trabalho já estaria feito.
Durante toda aquela ação, Kristina estaria protegida na mansão dos Lan Paker, esperando o grupo voltar. Ou não voltar, se fracassassem. De qualquer forma, eles garantiram que Kristina retornaria para casa no fim do dia dez. Depois, para o bem dela e de todos, deveria apagar aquela semana da memória, como se nunca tivesse feito parte de nada.
— Vai dar tudo certo, querida — disse Adriana. — O Briel vai poder voltar com você. Mas eu acho melhor nós irmos logo atrás dele. Se algum familiar ou qualquer pessoa tiver registrado o desaparecimento, corre risco dos soldados acharem ele primeiro, e aí, infelizmente, já sabemos o que vai acontecer.
— Pode até já ter soldado atrás do cara — disse Franke. — Ou atrás dessa aqui.
— Não — disse Kristina. — A mãe dele não quis chamar a DI, e a minha mãe com certeza também não vai chamar. — A não ser que ela me queira presa ou morta, completou mentalmente.
— Então é melhor a gente agir logo antes que elas mudem de ideia — disse Elinor.
— Não dá — disse Marko. — Como a Kristina vai com a gente até o Fígado assim? E se acontecer alguma coisa no meio do caminho? Ela não deve nem saber usar uma arma.
— Mas a gente sabe — rebateu Elinor. — Quanto antes, melhor.
— A gente ainda tem quase uma semana. Vamos separar uns dois dias antes de ir, eu tô falando.
— Marko tem razão — disse Franke. — Não dá pra carregar a calourinha pra outro Estado. Se acontecer alguma coisa, ela vai foder a porra toda.
— É verdade — disse Tone. — Menos a última frase, que não foi muito gentil. Enfim, vamos dia sete?
— Mas precisa de dois dias? — disse Elinor.
— Viajar é tão perigoso assim? — perguntou Kristina, vacilante como uma criança perguntando se é mesmo verdade que fadas não existem.
— Acontece que temos um rosto aqui que tá no banco de dados do governo como procurado — disse Adriana. — Mesmo que dê pra dar um jeito, não podemos descartar a hipótese de ter complicações pra cruzar a fronteira ou passar por qualquer inspeção que decida parar a gente.
— Por isso a Kristina tem que treinar, nem que for um pouquinho — disse Marko.
— Tá — cedeu Elinor. — Então, Marko, leva ela pra sala de treinamento enquanto a gente termina de decidir tudo.
Era um aposento espaçoso, com um tatame cobrindo boa parte do chão. Dispostos pela sala, encontravam-se sacos de pancada, luvas, halteres e outros equipamentos que Kristina não sabia o nome, mas já vira em uma academia militar quando visitara um quartel em um passeio de escola. A um canto havia uma divisória que formava, com a parede ao lado, um corredor largo e longo. No fundo do corredor, quatro placas com alvos em forma de pessoas, cada alvo mais distante que o outro. Em outra parede via-se diferentes tipos de armas penduradas. Marko pegou uma pistola.
— Quer aprender primeiro a atirar ou desarmar?
— Não faço ideia.
— Segura aí.
Era a primeira vez que Kristina empunhava uma arma. Mais pesada do que parecia, a pistola era uma estranha que não se encaixava bem em suas mãos.
— Vem cá. — Marko tomou novamente o objeto para si. Parecia familiarizado com aquilo, suas luvas sem dedos lhe conferindo, na aparência, um toque quase profissional. Os dois foram até o início do corredor onde ficavam os alvos. — Segura desse jeito. Você precisa de uma mão de apoio, tá vendo? E com esse dedo você aperta o gatilho, mas deixa ele fora quando você não tiver atirando. Aqui é a trava de segurança. Pra cá ela tá acionada, pra cá tá destravada. Como você tá começando, presta atenção na postura. Olha como eu tô. Olha a distância das minhas pernas e a altura dos meus braços. A arma é na altura dos olhos, e os braços assim, pra você conseguir fazer esse movimento de esticar, dobrar e dar coronhada, se precisar. Agora tenta você.
Kristina se arrumou na postura. Marko corrigiu a disposição de suas mãos, pondo-as mais para cima. Passou o outro braço por trás dela até sua mão de apoio para ajeitar a posição de seu polegar. Como se aquele abraço por trás fosse realmente necessário! Mas Kristina ignorou isso. Destravou a arma e mirou.
— Deixa os dois olhos abertos pra mirar e não se assusta com o coice — instruiu seu mais novo professor.
Pah! Ela acertou de primeira, deixando um pequeno buraco na cabeça do alvo.
Marko determinou mais alguns pontos para ela atingir. No entanto, a sorte de principiante não estava mais ativa, fazendo Kristina errar todos os alvos pelo menos três vezes antes de acertá-los. Então, Marko propôs que eles treinassem desarme. Segundo ele, se Kristina soubesse desarmar alguém, possivelmente não precisaria atirar.
— A primeira coisa sobre desarme é não desarmar. Se der pra você se esconder ou fugir, faz isso. Em qualquer ocasião, você, Kris, só vai pra cima de alguém se não tiver outra escolha. Fechado?
— Fechado.
— Primeiro a gente vai com a pistola. Eu vou te ensinar uma técnica que não precisa de muita força pra usar.
Ele ensinou Kristina a remover o pente de balas da pistola e ela a apontou para ele, atentando ao posicionamento correto. Marko realizou os movimentos devagar, explicando passo a passo o que fazia:
— A primeira coisa é pôr as mãos pro alto, na altura da cabeça, com os braços abertos, assim, e os pés firmes no chão. Essa é a postura de defesa. Eu fico nessa posição até você chegar perto o suficiente pra eu aplicar o golpe. — Ela se aproximou. — Pra desarmar, eu não posso ficar na linha de tiro, então eu dou um passo pro lado da sua mão de empunhadura da arma. Se eu for pro lado da sua mão de apoio, é mais fácil pra você virar a arma e atirar em mim. Agora, eu vou segurar suas mãos desse jeito e torcer elas pra cima nessa direção. — Ele girou as mãos de Kristina de uma maneira que a forçou a dobrar os braços. — Se eu continuar torcendo e te jogando pra trás assim, eu tiro o apoio da sua perna e você cai, ou no mínimo fica de joelhos. — Ele continuou torcendo, até que a arma que Kristina empunhava ficou virada para o próprio rosto da garota e ela se viu obrigada a apoiar um joelho no chão a fim de não cair para trás. — Agora eu posso fazer duas coisas. A primeira é atirar na sua cabeça. A segunda é puxar a arma da sua mão e pegar pra mim. — Ele fez a segunda, passando a empunhar a arma pelo cano. — E então te dar uma batida na cabeça pra te atordoar. — Encostou o punho da pistola na têmpora de Kristina — E fugir. — Afastou-se com um passo para trás. Kristina se pôs de pé novamente. — Agora tenta você.
Ela tentou. A princípio, devagar, com Marko advertindo qualquer movimento errôneo. Depois, mais veloz, e com sucesso. Ele caiu aos seus pés e ela arrancou-lhe a arma da mão, reposicionando-a para mirar nele. Da inicial careta de susto, ele abriu um sorriso. Esticou o braço e puxou a perna dela, derrubando-a ao seu lado.
— Você esqueceu de se afastar — disse Marko, rolando por cima dela e disferindo uma espécie de chave no ombro para lhe tirar a arma.
Depois de ser liberta e de os dois já estarem sentados no chão, um de frente para o outro, Kristina perguntou, enquanto massageava o ombro golpeado:
— Onde é que você aprendeu essas coisas?
— Com o Sal. O velho da peixaria que você não foi com a cara. Ele já foi lutador, e era professor antes do Sarto proibir as artes marciais pros civis.
— Mas ele já tava velho nessa época. Ia ter que se aposentar de qualquer jeito.
— Sim, mas ia poder se preparar pra isso, ao invés de, do nada, descobrir que não ia mais poder trabalhar. E descobrir que é impossível arrumar um emprego bom sem ter diploma. E daí ter que pegar um barco velho do irmão pra passar o resto da vida como pescador na Costa Baixa, completando o salário com um auxílio de renda nojento do mesmo governo que destruiu a vida dele.
— Hum... E você? O que é que te fez virar ajudante dele, ou sócio, sei lá?
— Isso é outra história. — Ele olhou para baixo em uma pausa curta, depois voltou a encará-la. — Quero te fazer uma pergunta também.
— Qual pergunta?
— Como é sua relação com seu pai? É só uma curiosidade.
Kristina refletiu, primeiro, se deveria responder ou não; segundo, se sabia a resposta.
— Sei lá. Claro que a gente se gosta como pai e filha, mas meio que tanto faz também. A gente nunca foi próximo um do outro, eu acho.
— Então você é indiferente sobre ele?
— "Indiferente" é uma palavra forte pra isso. Mas não sei explicar.
Ela se levantou, limpando as mãos na lateral da calça. Marko ficou de pé também.
— Eu ainda tenho que te ensinar desarme de fuzil — disse ele.
— Mas agora é minha vez te perguntar.
— O que você quer saber?
Era uma questão que ela já tencionava colocar para grupo desde quando eles contaram o plano, mas preferiu tirar suas dúvidas apenas com Marko. Aparentemente, ele estava mais disposto a ser honesto, ou o mais perto possível disso.
— Como é que vocês sabem tantos detalhes sobre o funcionamento do Computador Administrador e do sistema? Eu não sabia que o Briel podia conseguir tanta informação sem nunca ter acessado o Computador. Ele ainda não pode entrar pelo notebook, né, pras pessoas que trabalham na Sala de Operações não descobrirem.
— É. Mas a gente tem uma das melhores fontes de informação do país, graças ao próprio Briel. Ele tava dormindo com a presidenta da Horizonte. Foi ela que botou ele na Sala de Operações.
— Quê? Iore Eston? Como assim? Há quanto tempo?
— Tem uns cinco, seis meses.
— Eu não acredito.
— Como você acha que ele conseguiu ser promovido tão rápido?
— Sei lá. Sendo bom, não sei.
— Espera — disse Marko, parecendo enfim notar a perturbação da garota. — Ele disse que vocês eram só amigos.
— A gente é só amigo.
— Acho que não, hein. — Ele tinha um sorriso de divertimento. — Relaxa, ele não te merece.
— Para. A gente pode não falar sobre isso?
— Como você quiser.
Os dois fizeram silêncio por um instante.
— Eu tenho outra pergunta — disse ela. Olhou para os lados para se certificar de que ninguém mais ouvia. — Por favor, você tem que ser sincero. Eu não vou trair vocês por causa disso nem nada, só preciso saber mesmo: vocês estão dizendo a verdade sobre meu pai?
— Como assim? — Ele estava sério de novo.
— Sobre ele ter sido preso. Sobre o flagra com a arma na gaveta. Sobre ele ser parte do seu grupo.
— Eu já te disse o que eu sei disso.
— E eu tenho dúvida se você e os outros estão sendo sinceros. Marko, eu tenho o direito de saber.
Ele hesitou. Relanceou em volta. Olhou nos olhos de Kristina. O coração da garota batia rápido, um tum-tum-tum exalando expectativas.
— Tá bom. Tá, eu conto... O Briel achava que o Ronan tava desconfiando dele. No dia antes da prisão, o Ronan foi perguntar algumas coisas pra ele, e falou pra ele ficar tranquilo que tudo ia continuar em segredo. O Briel não falou da gente, mas o Ronan sabia que ele tava escondendo alguma coisa, e pelas perguntas ele sabia que era ilegal. Mas a gente não pode deixar ninguém descobrir nada, nem sequer desconfiar.
— Então vocês forjaram pro meu pai ser preso?
— A gente precisou tirar ele do caminho. É assim que a gente faz as coisas. O Briel implantou o revólver e a gente ligou pros soldados com um telefone descartável.
Outro momento de silêncio se seguiu, e foi rompido quando o resto do grupo adentrou a sala. Elinor anunciou:
— A gente vai pro Fígado amanhã, dia seis. Antes da viagem, a Kristina vai aprender as coisas mais básicas pra se virar no caso de alguma coisa dar errado. A gente não pode colocar em risco nem o nosso grupo nem o nosso objetivo.
Olhou para Kristina como se esperasse algum tipo de concordância. No lugar disso, ela declarou:
— Eu não sei.
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