Mágoa
Tum tum tum.
— Alice!
Tum tum tum.
— Alice!
Alguém chama enquanto bate na porta do meu quarto, me despertando lentamente do meu sono.
Que horas são?
Me viro na cama e, contra vontade, abro os olhos e miro o relógio no criado mudo. São nove e quarenta e cinco da manhã. Já é tarde. Bem, pelo menos pra mim.
Normalmente eu já teria acordado, mas não ia dar ao meu pai o gostinho de me ver de pé antes das sete horas da manhã, mesmo que fosse para minha corrida diária.
Se ele me visse acordada àquela hora, teria esperanças de me encontrar no escritório mais tarde.
Já tem algumas semanas que ele vem deixando instruções e dicas de como eu poderia facilitar e melhorar o ambiente de trabalho, de como a empresa dele acolhe e dá oportunidades incríveis para arquitetos e o quanto seria importante a minha presença por lá. É claro que ele não disse nada disso diretamente para mim, muito menos olhando na minha cara — nós não nos falamos há anos. Ele foi cuidadoso, deixando suas sugestões com quem ele sabia que passaria todas elas adiante: Carmem. Mas eu já tomei minha decisão sobre esse assunto, um grande e sonoro NÃO. Eu não vou trabalhar na Vega, e não tem absolutamente nada nesse mundo que me faça mudar de ideia.
— Alice, estou entrando!
Carmem entra pisando forte no chão, indo diretamente na direção do controle que abre as cortinas fechadas na frente dos vidros enormes que vão do chão ao teto e ocupam quase todo o meu quarto. Meus olhos reclamam da claridade quando ela aperta o botão e as cortinas se abrem, mas então a vista deslumbrante do mar de águas azul clara da praia do Joá aparece, e eu logo esqueço de qualquer protesto que estava prestes a fazer.
— Você viu que horas são, mocinha? Seu pai já ligou aqui três vezes, porque disse que o seu telefone — diz, apontando para meu telefone sobre o criado mudo ao lado da cama — está desligado. Ele está esperando por você, Alice! — esbraveja de cara amarrada e com as duas mãos na cintura.
— Ligando diretamente para o meu celular? Nossa, quanto progresso! — Ironizo com um bocejo quando me sento na cama, mas Carmem só me olha com aquela cara: a cara de quem não aprova o meu tom.
— Bom dia pra você também, Carmem. Como você está? — Abro um sorrisão, sabendo que ela vai amansar com a cara de anjo que estou fazendo.
Ela suspira e suaviza seu olhar para mim. Viu? Sempre funciona!
— Bom dia, querida. Estou bem. E você, como está? Tirando o fato de estar em pé de guerra com o seu pai, é claro. — Ela diz erguendo uma sobrancelha. Seu tom de voz bem mais suave, e ela começa a organizar coisas aleatórias pelo quarto.
— Eu não estou em pé de guerra com meu pai! — Rebato, mas ela menospreza minhas palavras e me olha como quem não acredita em nada do que estou dizendo. E ela sabe muito bem. — Não estou! — insisto. — E eu estou ótima! Melhor impossível. Na verdade, me sinto tão bem que vou até encarar o convite da Jessica e ir fazer umas comprinhas com ela, e você sabe que preciso de muita paciência e boa vontade para isso. — Digo e Carmem dá uma risadinha.
— Deus te ajude nessa missão.— Zomba. Carmem não é muito fã das minhas amigas, e eu acho que nem posso culpá-la por isso. Elas não são exatamente o que chamamos de "anjos da guarda".
— Mas me escute, estou falando a verdade, meu bem. Seu pai ligou mesmo três vezes. Parecia preocupado com a possibilidade de você não aparecer por lá. Disse alguma coisa sobre a empresa receber alguns funcionários novos hoje e fazer questão da sua presença para dar a eles as boas vindas, como parte da equipe Vega.
Reviro os olhos. Carmem sempre cai como um patinho no papo do meu pai — ela faz questão de reafirmar tudo o que ele diz. E essa história de "equipe Vega" é, no mínimo, engraçada. Saio da cama e me levanto para me alongar.
— Não vou trabalhar com meu pai, Carmem. Já disse. Decidi tirar um ano sabático. — Falo quando alcanço os dedos dos meus pés com os dedos das minhas mãos e solto um gemido, sentindo meu corpo se esticando quando faço o movimento. Quando me levanto, ela está boquiaberta.
— Mas você se formou e depois passou quase um ano viajando! Por Deus, menina, você chegou há menos de seis meses! — Ela protesta com uma vozinha aguda, totalmente horrorizada com a minha notícia — Você não pode tirar um ano sabático se nem se quer começou a trabalhar, Alice!
Eu dou risada de sua reação; e ela, percebendo minha brincadeira, me dá um leve tapinha no bumbum que logo é seguido por muitos outros. Corro para o banheiro e tranco a porta, escorando-me nela para fugir do ataque. Ouço minha respiração ecoar pelo banheiro espaçoso enquanto tento recuperar o fôlego perdido com tantas risadas. Do lado de fora, Carmem chama meu nome.
— Já é seguro abrir a porta? Minha bunda não está pronta para mais palmadas!
Adoro Carmem! Amo ela de paixão. Trabalha para nossa família há tantos anos, que praticamente faz parte dela. Ela é muito gentil e inocente, e sempre acredita em tudo que dizemos para ela, mesmo que seja brincadeira — ou mentira! É muito engraçado ver suas reações às coisas que contamos. Ás vezes, eu e a Júlia, minha irmãzinha, simplesmente inventamos alguma história absurda, e ela, como sempre, acredita em tudo, ficando horrorizada com cada frase que sai de nossas bocas.
— Alice — Ela me chama. Seu tom de voz voltou a ser sério e ela me encara com o semblante preocupado quando abro a porta. — Por que está fazendo isso? Por que se nega a trabalhar com seu pai? É o que você sempre quis fazer, menina. Arquitetura é a sua paixão, sua vida, assim como a dele. — Ela passa as pontas dos dedos pela minha bochecha enquanto diz a última frase, um gesto que usa desde que eu era mais nova quando quer tentar me convencer de alguma coisa.
Mas não me deixo levar pelo seu gesto carinhoso e fecho a cara. Eu não vou ceder.
— Não! Nem começa Carmem! — Aviso, voltando para dentro do banheiro — É como se eu, a mamãe e a Júlia nem morássemos junto com ele na mesma casa! Por quatro anos ele tem nos ignorado, recebendo dele no máximo um bom dia - isso quando temos a "honra" da ilustre presença dele, é claro. E agora eu devo dar a ele a satisfação de trabalhar na empresa dele? Ou dar pulos de felicidade com a possibilidade de ser ignorada por ele não só em casa, mas também no trabalho? Não, muito obrigada! — Explodo, já sentindo um nó crescendo na minha garganta quando termino de dizer em voz alta o meu maior ressentimento. Posso sentir as lágrimas chegando, e confirmo que estou prestes a desabar quando vejo meu reflexo no espelho: minhas bochechas estão ficando vermelhas, deixando minhas poucas sardas aparentes.
— Dê uma chance a ele, querida. — Carmem pede gentilmente, mesmo depois do meu descontrole.
— Não, não dou! Já tomei minha decisão, Carmem. E chega dessa história, não quero mais falar disso! —Disparo, evitando seus olhos e caminhando em direção à banheira. Me curvo para girar a torneira, e quando me viro, ela já foi embora.
Quando não enxergo o rosto solícito de Carmen, sou tomada por um enorme arrependimento. Preciso me desculpar com ela, afinal, ela não tem obrigação de aguentar meu tom rude, ela não merece ser tratada como "saco de pancadas", mesmo que precise entender que não faz sentido continuar insistindo nesse assunto. Eu não vou trabalhar com me pai; ponto final.
*
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