Capítulo 92- Faca de dois gumes
Olá, pessoal. Estou postando este capítulo, e ele não ficou exatamente como eu queria.Estou terrivelmente frustrada hoje, então me perdoem se realmente não os agradar. Cometem se acharem que vale a pena, e desculpem pelos erros ortográficos. Muito obrigada e beijos.
ANNE
Era mais um daqueles dias de inverno em que a preguiça tomava conta das almas trabalhadoras e estudantis, que dariam tudo por mais alguns minutos embaixo de seus cobertores quentinhos, ao invés de terem que enfrentar o vento cortante que castigava não só seus corpos, mas seus ânimos também.
Em qualquer outro momento, Anne faria parte desse grupo de pessoas que maldiziam o desconforto da estação que as obrigava a saírem de casa agasalhadas até os ossos arrastando-a até o centro de suas obrigações diárias, mas, após uma semana inteira sentindo-se naufragar por dentro, ela adquirira alguns hábitos que eram mais uma fuga da armadilha de seus pensamento, que insistiam em atormentá-la a todo momento.
As madrugadas se tornaram suas companheiras insones, e por isso, voltara a cozinhar, usando Cole e Pierre como seus cobaias que pareciam estar adorando essa sua nova faceta, e experimentavam sem reclamar todas as suas invenções.
Ela precisava urgentemente de uma distração, por isso, a obsessão recém adquirida de mestre cuca era seu porto seguro no momento no qual ela se agarrava para não perder o pouco de bom senso que lhe restava, e ajudá-la a se levantar da cama de manhã, tendo em mente algo mais útil que Gilbert Blythe.
Naquele manhã específica, o ritual se repetia. Ainda não eram seis horas, e Anne já estava debruçada sobre um caderno de receitas que pegara emprestado de Cole, ao qual tinha sido presente da mãe dele no último Natal, e que não havia sido usado até aquele momento. Ela ainda vestia sua camisola azul, e os cabelos tinham sido presos em um rabo de cavalo, para não atrapalhá-la no manuseio dos ingredientes que usaria para o café da manhã daquele dia. Ela se sentou em uma cadeira ali na cozinha, e leu com atenção cada um dos itens destacados na receita, ao mesmo tempo em que seus olhos corriam sobre os ponteiros do relógio que iam marcando o tempo que ainda faltava para que ela se vestisse e fosse para a Faculdade.
Anne sentiu seu peito palpitar com tal pensamento, enquanto seu corpo quase convulsionava com a possibilidade de cruzar com seu noivo em um dos corredores. Ela não sabia o que diria ou faria, tinha ensaiado sua fala dentro de sua cabeça assim como vinha fazendo para a peça de teatro que participaria, mas, Anne sabia que ali não se tratava de ficção ou fantasia, e sim uma realidade contra a qual vinha lutando desde que Gilbert a tinha mandado embora do apartamento.
Seus olhos se anuviaram ante as lembranças que tentara apagar vezes sem conta de sua mente, mas, elas continuavam voltando e voltando, até deixá-la sem forças, sem lágrimas e sem esperanças.
Quando o deixara naquela tarde em que Gilbert a acusara de não confiar nele, ela voltara para ao apartamento de Cole cega pelas lágrimas, e completamente coberta pela neve que recomeçara a cair, e assim que abrira a porta e encontrara o olhar de Cole que a encarava em expectativa, Anne desabou. Seu coração era como uma comporta se abrindo, e despejando no chão da sala todas as suas ilusões perdidas no breve encontro que acontecera aquela tarde, para o qual fora tão animada, sonhado em ter de volta seus dias dourados, e suas noites apaixonadas, porém, tudo escapulira pelos seus dedos, como um vendaval de desesperança, deixando-a sem nada.
Mais uma vez, o colo de Cole foi onde ela procurou abrigo, depois que Gilbert expulsou-a de sua vida, e sobre ele deixou que aquela dor atravessada em seu peito esgotasse cada um de seus sorrisos, cada uma de suas memórias felizes, restando apenas o sentimento de amor por Gilbert que nunca morreria, disso ela tinha certeza. Foi difícil adormecer aquela noite, porque ela ainda esperava que Gilbert entrasse pela porta do quarto, dizendo que tudo fora um engano e que a queria de volta, mas fora apenas um otimismo vão, e quando conseguiu dormir já era de madrugada, e despertou no outro dia se sentindo terrivelmente mal.
A gripe que fingira ter tido na últimas semana para esconder o real motivo de não ter comparecido as aulas durante três dias seguidos se tornara realidade. Quando Cole lhe medira a temperatura e observou aflito que chegava a quase quarenta graus, o rapaz foi obrigado a chamar um médico, que lhe receitou antibióticos e proibiu-a de sair da cama por uma semana. Não que Anne se importasse, pois em seu estado terrivelmente febril ela delirava, e em seus delírios, sua vida ainda era encantada, e tinha os braços de Gilbert para ampará-la em sua enfermidade que além de consumir seu corpo também estava consumindo sua mente. Anne não se lembrava, mas chamara por Gilbert muitas vezes durante dois dias, deixando Cole desesperado por vê-la naquele estado. Infelizmente ele podia fazer muito pouco pela alma doente dela que a mantinha presa no lado mais escuro da sua dor, assim, ele se esmerava para que pelo menos seu corpo físico se fortalecesse logo, trazendo-a de volta à consciência, pois desta forma ela estaria lutando uma batalha mais justa para tentar se reerguer novamente. Porém, seu lado sensível o fazia sentir uma certa revolta, ao se lembrar de quantas vezes Anne tivera que recomeçar do zero depois de um baque violento. A ele lhe parecia, que a felicidade de sua amiga nunca viria para ela cem por cento se não fosse maculada por algum tipo de sofrimento, e onde estava a justiça daquilo tudo afinal?
Cole, assim como Anne, fora criado dentro de princípios cristãos, mas, deixara de ser religioso a muito tempo por não acreditar que um Deus que diziam ser misericordioso nas escrituras sagradas fosse capaz de infligir tanta provação a seres imaculados como Anne. Ele próprio não sentira na carne o que a crueldade humana poderia fazer? Boa parte de sua vida ele fora julgado não por ser honesto, tratar as pessoas com cortesia, ser um filho obediente, mas sim por sua sexualidade que aos olhos de uma sociedade rígida e fingida era a pior das aberrações. Por isso, não conseguia ver nenhum ato divino na maneira como sua querida amiga vinha sofrendo ao longo de sua vida.
Anne era a criatura mais doce e nobre que já 'encontrara, e o aceitara como era sem nunca discriminá-lo. Ela conseguia enxergar o que ia além da aparência, e como almas não tinham sexo, ela via a si mesma e Cole como iguais. Ela fizera tanto por ele somente compartilhando sua amizade, ficando ao lado dele nos momentos em que ele quisera se esconder por achar que não se encaixava em lugar algum, ela fora uma verdadeira irmã além de amiga incrível, e ele gostaria apenas de fazer por ela o mesmo. Contudo, ele reconhecia que não era exatamente dele que Anne precisava naquele momento, porém, Gilbert Blythe não parecia disposto a bancar o príncipe encantado daquela vez.
Podia condená-lo por isso? Poderia francamente dizer que ele não tinha o direito de se sentir incompreendido, quando ele passara por cima de tantas coisas apena para dar a Anne tudo o que ela merecia? Cole podia ver que Gilbert amava Anne demais, porém, aquele amor era uma faca de dois gumes, que de um lado curava e do outro feria, e ambos estavam fadados a sacrificarem seus egos, orgulho e a própria identidade para se manterem juntos, e justamente por isso, talvez Gilbert chegara em um limite perigoso que em um passo em falso não teria mais volta. Apesar de tudo, de seu cinismo em relação a muitas coisas, de sua maneira irônica de ver a vida, e de sua pouca fé na humanidade, Cole Mackenzie era um romântico, e acreditava em finais felizes, e torcia que tanto Anne quanto Gilbert tivessem o seu e de preferência juntos.
No quarto dia de sua enfermidade, Anne começou a se recuperar lentamente. Ainda permanecia a maior parte do tempo deitada, mas, conseguiu se alimentar melhor, e a garganta não doía tanto. Ela parecia exausta, porém mais viva do que nos últimos três dias, e a dor no corpo também estava cedendo, mas, o que não a abandonava nunca era a imagem de Gilbert friamente a mandando embora. Era masoquismo ficar pensando nisso, ela sabia, mas não conseguia se livrar da sensação de que tinha errado com ele de alguma maneira, e talvez nem todo o amor do mundo fosse capaz de juntar todos os pedaços de ambos outra vez.
Sharon apareceu para visitá-la e conferir se ela estava melhor, e por uma grande gentileza de sua parte, provando seus laços de amizade com Anne, ela lhe trouxera toda a matéria da semana. Ela chegara durante a tarde, exatamente no quinto dia da doença de Anne, e sua alegria espontânea trouxera sorrisos ao rosto da ruivinha naquela semana pela primeira vez.
- Anne, querida. Como você está, minha amiga? - ela perguntara, sentando-se ao lado de Anne na cama e segurando-lhe as mãos carinhosamente.
- Fraca, mas, melhor do que nos dias anteriores. – Anne respondeu ao sorrir-lhe levemente.
- Tem certeza que essa sua enfermidade e estado de ânimo têm apenas a ver com sua fragilidade física? - Anne baixou a cabeça, pois o olhar de Sharon podia facilmente arrancar-lhe a verdade, e ela não se sentia forte o bastante para falar do que acontecera.
- Não sei o que quer dizer. - ela respondeu tentado fugir da conversa.
- Anne, Jonas me contou. Não precisa esconder nada de mim. Eu sou sua amiga, e estou do seu lado.
- Jonas contou sobre Gilbert e Dora? - ela perguntou piscando com força, tentado não chorar.
- Sim. Ele me contou que você os viu juntos, e por isso, você e Gilbert estavam afastados. - Anne balançou a cabeça concordando, e Sharon disse revoltada:- Aquela víbora! Anne, por favor, diz que me dá permissão para acabar com a cobra peçonhenta.
- Sharon. Que bem isso faria? Você acabaria suspensa, e no fim, isso não mudaria nada.
- Pode até ser que não mudasse nada, mas, faria bem ao meu ego e ao seu vê-la rastejar no chão. - a garota disse com seu orgulho inflamado que poderia evoluir rapidamente para ódio puro por aquela metida maldosa.
- Deixa isso para lá, Sharon. Isso não importa mais. – Anne disse sentindo-se mais triste do que antes.
- Como assim, Anne? É claro que importa. - Sharon disse em protesto.
- Eu e Gilbert não estamos mais juntos, Sharon. – Anne disse por fim. Seu peito querendo explodir ao deixar às clara aquela verdade.
- Mas, Anne. Jonas me disse que você foi falar com Gilbert. Não se acertaram, então?
- Gilbert disse que se não confio nele, não temos porque ficarmos juntos. - Anne balançou a cabeça, enquanto uma lágrima rolava pelo seu rosto. Ela a enxugou envergonhada.
- Anne, eu sinto muito. Não imaginei que as coisas estavam tão ruins. Tem alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar? - Sharon estava sinceramente tocada com o drama de Anne, e a ruivinha apenas respondeu:
- Só por estar aqui você me ajuda muito. Estava me sentindo solitária demais trancada nesse quarto. Mas, me diga, como estão os ensaios da peça? - Anne perguntou se sentindo aliviada por conseguir mudar de assunto.
- Não estamos ensaiando. Desde que você ficou doente, Roy Gardner se recusou a passar suas falas com qualquer outra pessoa. Ele disse que era uma falta de consideração com a protagonista principal. - Anne olhou para Sharon espantada e perguntou:
- Ele fez isso? Por que?
- Eu posso estar enganada, mas, creio que ele está apaixonado por você.
- Não consigo acreditar em uma coisa dessas. - Anne disse sentindo um súbito calafrio. Apesar de Roy ter mudado seu comportamento com ela nas últimas semanas, Anne não conseguia esquecer a má impressão que ele lhe causara antes.
- Por que não? Anne, você é linda. Qualquer cara poderia facilmente se apaixonar por você. E você tem que admitir que Roy é extremamente atraente.
- Eu não posso. - Anne disse com a voz um tanto exaltada.
- Eu não vejo porquê. Você não disse que você e Gilbert romperam o noivado? Então, por que não encontrar consolo em outro amor? - Anne balançou a cabeça novamente, Seu olhar caiu sobre a opala em seu dedo. Ela não tivera coragem de tirá-la. Era a coisa mais significativa que ainda tinha do seu relacionamento com Gilbert, e tirá-la de seu dedo era considerar que estava arrancando Gilbert de sua vida novamente, e ela não conseguiria fazer isso. Mesmo que nunca mais voltassem, ela manteria aquela opala em seu dedo para se lembrar sempre do amor mais lindo que já tivera na vida, e do rapaz a quem sempre pertenceria.
- Gilbert foi e sempre será o amor da minha vida, Sharon, e nenhum Roy Gardner, por mais bonito que possa ser vai mudar isso em meu coração. Mas, de qualquer forma, agradeça a ele por mim. Eu pensei que já tinha perdido o papel para alguma substituta.
- Fique tranquila. Se depender de Roy, aquele papel não será de mais ninguém. – Sharon dsorriu com seu olhos brilhando de malícia, e Anne não disse nada, pois tinha medo de pensar o que aquilo significava realmente. Roy não podia estar apaixonado por ela, ou Anne estaria realmente encrencada.
O barulho do relógio marcando 6:30 fez Anne acordar de seus devaneios, e se apressar com o café da manhã. Ela iria fazer sonhos com recheio de doce de leite, e como ela já tinha feito a massa no dia anterior, precisava apenas enchê-los de doce de leite e assá-los. Enquanto estavam no forno, ela se vestiu para a Faculdade, e logo que ficou pronta os sonho já estavam no ponto. Ela tomou um copo de leite, e comeu uma rosquinha, e em seguida colocou um sonho em um saquinho de papel, e os restantes deixou em cima da mesa para que Cole e Pierre pudessem saboreá-los quando acordassem.
Em poucos segundos já estava na rua, a caminho da Faculdade, e quando deu de cara com o enorme prédio branco, ela desistiu de ficar martelando coisas na cabeça e entrou, contando os passos até sua sala, mas ao virar um dos corredores ela o viu, e instintivamente parou no mesmo lugar, como se estivesse pregada no chão, enquanto Gilbert a olhava de cima embaixo como se a analisasse por inteiro.
Ele tinha cortado o cabelo e feito a barba, e sua aparência estava muito melhor que na última vez que Anne o vira. Ele parecia mais magro, mas não tão desesperado como dias antes, embora seus olhos cor de caramelo estivessem tristes. Será que ele sentia a mesma saudade que ela? Como seu coração podia bater tão alucinado daquele jeito por alguém? Se ela quisesse poderia diminuir a distância entre eles, e se atirar naqueles braços dos quais precisava tanto, mas ela não se moveu de onde estava e nem Gilbert fez qualquer menção de se aproximar, então, ela abraçou a si mesma, em uma tentativa de aliviar sua carência, sem saber se devia esboçar qualquer reação sem parecer patética ou ansiosa demais. Gilbert resolveu o problema, ao sorrir de leve para ela, e Anne retribuiu sorrindo de volta e fazendo um breve aceno com suas mãozinhas descobertas. Em seguida, ele se virou indo direto para sua sala de aula, e Anne seguiu seu caminho sentindo-se estranhamente triste.
No momento em que Anne cruzou a porta da sua sala, ela viu Roy olhá-la e sorrir. Não era um de seus sorrisos sarcásticos, e isso a inquietou, pois a fez se lembrar da conversa que tivera com Sharon, e por isso mesmo, sentiu sua apreensão aumentar. Porém, não deixou que aquilo a dominasse por muito tempo, pois acabou prendendo sua atenção no professor que falava naquele momento, e se envolvendo na aula dele completamente. Porém, isso não fez com que Roy Gardner parasse de observá-la, pelo contrário, ele concentrou toda a sua atenção nela, fascinado pela beleza dos traços de Anne que nunca deixava de fasciná-lo. Era engraçado como se sentia em relação a ela agora, pois tudo tinha começado apenas por diversão, pelo desafio que Anne de repente se tornara para ele, e nunca nenhuma garota recusara um flerte seu antes.
Roy nunca recebera um não, em toda a sua vida, e isso não se devia a apenas as garotas que queria conquistar. Ele vinha de uma família classe média alta, que sempre lhe dera tudo sem impor nenhum limite. Esta era a maneira de seu pai compensá-lo pelo pouco tempo que lhe dedicava, pois após a morte de sua mãe quando ele tinha seis anos, seu pai se enterrara cada vez mais no trabalho, deixando o garoto nas mãos de babás que não tinham autonomia nenhuma para educa-lo como se deveria.
Apenas uma babá entre tantas que entravam e saiam de sua cada em prazos menores que um mês lhe dera um pouco do amor de mãe que lhe faltava, e também era a única pessoa a quem tinha alguma consideração. Quando ela se aposentara anos depois, Roy pedira ao pai que lhe desse uma boa pensão com a qual ela pudesse ter uma vida digna, e sempre que podia, ele ia visitá-la, e passava algum tempo com a única mulher que o considerava como um filho.
Sua relação com o pai era fria, e nunca realmente se trataram como pessoas próximas que vinham da mesma família. Ele lhe dava ordens, e Roy obedecia, pois desde cedo aprendera que não devia deixar seu pai zangado, ou as consequências seriam enormes, assim como entendera que se mantivesse suas notas altas teria todas as vantagens possíveis. Fora assim que ganhara seu primeiro carro, e um apartamento no centro da cidade, viagens de luxo para onde quisesse, e uma mesada gorda no fim do mês. Seu pai nunca se importava como ele gastava o dinheiro que ganhava, pois desde que mantivesse o bom nome da família intacto, o resto realmente não lhe interessava. Roy era inteligente e gostava de estudar, por isso, manter as notas no nível que seu pai lhe exigia não era nem um pouco difícil, assim, ele conseguia tudo o que queria sem muito esforço.
Viver em um ambiente onde se tinha tudo, menos amor e disciplina deformara o caráter do menino Roy. Ele mentia, manipulava e enganava com tanta facilidade que isso se tornou parte de sua personalidade da adolescência até sua vida adulta. E quando se tratava de garotas, era ainda pior, porque ele usava sua inteligência e beleza para impressionar, até conseguir o que queria e assim descartar cada uma delas sem remorso algum.
Desta forma Roy colecionava uma fila de corações partidos e desafetos, e se divertia quando imploravam para tê-lo de volta. O que elas não sabiam era que ele nunca mais voltaria, porque por trás de todas as palavras doces que usava para capturar o afeto de cada uma das garotas que cortejava havia um coração de pedra que nunca soubera o que era amar, e continuaria assim para sempre se ele não tivesse conhecido Anne Shirley Cuthbert.
No princípio, Roy pensara que a ruivinha seria mais uma de suas presas fáceis, que cairia em sua lábia após trinta minutos de conversa, porém, ele percebeu que estava errado quando se deparou com uma garota incrivelmente inteligente, que possuía um conhecimento vasto em literatura, e uma língua ferina que o desestruturava toda vez que ele a cantava abertamente, e Anne o jogava para escanteio destruindo todos os seus argumentos. Em pouco tempo o encantado era ele, e Roy passou a sonhar com ela todas as noites, e eram sonhos que o deixavam inquieto, fazendo-o desejar o que nunca teria.
Anne estava noiva e pela maneira como falava de seu noivo, ele parecia ser o homem mais perfeito do mundo, e sua curiosidade o fez investigar e descobrir quem era o rapaz que o impedia de chegar até o coração de Anne, e o que descobrira o deixara desolado.
Gilbert Blythe era totalmente o oposto do que Roy era, e por essa razão tinha toda a adoração de sua noiva, fazendo Roy invejar alguém pela primeira vez, e foi aí que descobriu que estava apaixonado e queria aquela garota para sempre em sua vida. A consciência disso o fizera repensar tudo o que já tinha experimentado e feito até ali, e pensou que por Anne ele não se importaria em mudar seu caráter e deixar de ser o canalha que sempre fora. Ele decidiu que se tornaria o exemplo do homem que ela amaria, nem que tivesse que disputá-la com seu atual noivo para tê-la. Entretanto, a sorte parecia soprar ao seu favor, pois ficara sabendo que Gilbert já era carta fora do baralho, e ele poderia se aproximar da sua obsessão como gostaria.
Alheia aos pensamentos de Roy Gardner naquele momento, Anne somente conseguia pensar que logo seria o horário do intervalo, e consequentemente encontraria Gilbert, e ela não sabia se teria forças para lidar com aquilo pela segunda vez naquele dia, por isso decidiu que ficaria na sala mesmo, e comeria o sonho que preparara de manhã e trouxera com ela para a aula.
- Anne, você não vem? - Sharon perguntou assim que viu que ela não tinha a intenção de sair da sala.
- Acho que vou ficar por aqui mesmo. – Anne disse tristemente; e Sharon imediatamente entendeu suas razões, não insistiu.
- Quer que eu traga algo para você?
- Não precisa. Estou bem.
- Prometo que volto logo. - Sharon disse deixando-a sozinha.
Assim que a garota saiu, Anne suspirou, pegou seu doce, se concentrou em um livro que trouxera consigo, e só percebeu que o intervalo tinha acabado quando viu os alunos voltarem para a sala. Dali até o término da aula foi rápido, e logo que o sinal tocou anunciando que estava na hora de ir, ela foi direto para a monitoria evitando assim de encarar Gilbert que naquele momento deveria estar saindo da Faculdade. Quando finalmente pôde ir para casa, tudo o que conseguia sentir era um grande alívio por ter sobrevivido sem surtar nenhuma vez até o fim daquele dia.
GILBERT
Às cinco horas em ponto daquele dia, Gilbert encerrou seu expediente no laboratório e voltou a pé para o seu apartamento. O cair da tarde estava frio mas não desagradável a ponto de tornar sua caminhada insuportável. Ele anotou o sobretudo de lã, protegeu o pescoço com um cachecol cor de areia, e escondeu seus cachos escuros embaixo de uma boina preta tricotada por Mary.
Ele tivera que começar a usá-la depois que perdera a vermelha que ganhara de Anne, e embora fosse bem feita e muito bonita, não tinha o mesmo significado sentimental que a vermelha. Era um pedacinho de Anne que lhe fora doado quando ela o presenteara em um dos natais especiais que passaram juntos, e mesmo que fosse bobagem ele pensar assim, Gilbert sentia que ao perdê-la, Anne também lhe fora tirada. Pensar nisso o fazia suspirar, como se uma dor física o atingisse. Ele ainda custava a acreditar que sua vida tinha virado de ponta cabeça, e em um segundo de estupidez ele não tinha mais a mulher que amava.
A raiva brotou de seu coração magoado, e ele começou a caminhar pelas ruas com as mãos dentro do bolso do casaco apertadas em punhos cerrados. Àquela hora, poucas pessoas permaneciam do lado de fora de suas casas, porque o frio começava a ficar mais intenso com o cair da tarde. Porém, quem passava pelo jovem estudante via seu rosto contraído como se tentasse controlar uma fúria insana dentro de si. Era assim que se sentia todo o tempo desde o momento em que acordava até o momento que ia dormir. Aquele sentimento o corroía, e por mais que tentasse abrandar seus pensamentos para que não acabassem envenenando toda a sua alma, Gilbert não conseguia evitar de tê-los mesmo assim.
Ele continuou caminhando para casa, e se perguntando por que estava voltando para o seu apartamento, já que não havia mais ninguém lá esperando por ele? Antes, o fim do dia era seu horário favorito, porque Gilbert tinha certeza de que a poucos quarteirões de onde estava, a garota mais linda do mundo o aguardava, e agora o que restava dela eram apenas as roupas trancadas em seu armário que ele não ousava mais abrir por medo de não aguentar a verdade que desabaria sobre ele como um furacão de recriminações e culpas,
Deus! Por que ele não conseguia esquecer? Por que doía tanto daquela maneira que sentia que sangrava, mesmo que não houvesse uma gota de sangue para provar essa sua teoria? Por que se sentia tão miserável a ponto de querer gritar? Ele mandara Anne embora, sem pensar direito no que estava fazendo, e agora não tinha coragem de ir até ela e dizer que estava arrependido, que a queria de volta, que sem ela ele se sentia sem direção nenhuma. Ela o magoara com sua desconfiança, mas, era pior não tê-la ali do que a decepção que sofrera por Anne apenas acreditar no que vira sem questionar. Contudo, que direito tinha de procura-la e pedir que o perdoasse? Ele fora um grosso, insensível e cruel, ela com certeza estava melhor sem ele. Ao mesmo tempo que aquele pensamento cruzava sua mente, Gilbert não conseguia realmente acreditar naquilo. Anne poderia até estar melhor sem ele, mas Gilbert com certeza estava péssimo sem ela, e não melhoraria enquanto aquele abismo construído entre os dois existisse
Na última semana, ele resolvera voltar para a faculdade, primeiro porque o vazio do apartamento ficara tão grande que ele estava se afogando em seu próprio desespero, e segundo, porque tinha esperanças de encontrar Anne por lá e falar com ela em um ambiente neutro. Não sabia como arranjaria coragem para se desculpar depois de tudo o que dissera para ela, mas, pelo menos poderia tentar mais uma vez. Ele dissera que estava cansado de provar o seu amor, mas, a verdade era que iria até o fim do mundo se pudesse trazê-la de volta. Era um inferno amar alguém daquele jeito, mas, ele sabia que nunca a amaria menos. Anne poderia decepcioná-lo mil vezes, e mil vezes ele iria atrás dela, porque sua ruivinha valia a pena e era a única mulher no mundo para ele.
Deste modo, ele fizera a barba, cortara o cabelo, vestira roupas limpas e na segunda de manhã estava pronto para reiniciar sua vida acadêmica. Ele com certeza estava muito atrasado em relação aos seus amigos, mas, com dedicação e muita concentração estaria de volta nos trilhos em pouco tempo, Entretanto, ele precisava resolver sua vida com Anne antes de tudo, para depois empregar suas energias em outros projetos.
Contudo, a decepção de não vê-la logo no dia de seu retorno o deixou chateado, e ele até passara em frente a sala dela várias vezes em uma tentativa de vê-la, mas como não conseguira encontrá-la, Gilbert fora para sua própria classe sentindo-se totalmente infeliz. Carlos fora o primeiro a vir cumprimenta-lo, e já não parecia ressentido como no dia em que pensara que Gilbert tinha traído Anne com Dora, Havia um sorriso genuíno em seu rosto quando dissera:
- Bem vindo, Blythe. Essa sala não é a mesma sem você. Desculpe-me por tudo.
- Esquece isso. Não há nada a ser perdoado. Eu apenas quero me inteirar de toda a matéria que perdi durante esse meu tempo de reclusão. - naquele mesmo instante, o professor de Patologia o olhou e sorriu ao dizer:
- Sr. Blythe, que bom que resolveu se juntar a nós novamente. Conseguiu se recuperar bem de sua enfermidade? - Gilbert olhou para Jonas que lhe deu uma piscadela e respondeu;
- Sim, estou bem melhor, e prometo que vou me esforçar para recuperar o tempo perdido.
- Não se preocupe. Eu sei que em pouco tempo estará em dia com todo o assunto estudado na última semana. - o professor se virou para a lousa onde estava escrevendo algumas fórmulas, e Jonas balançou a cabeça rindo divertido. Todos sabiam que Gilbert era o aluno preferido daquele professor, por isso, pequenos elogios como aquele eram comuns entre os dois. Enquanto Jonas conversava com Gilbert, ele sentiu que alguém o olhava, e com desagrado encontrou o olhar de Dora sobre ele que o desviou envergonhada assim que o rapaz a flagrou observando-o. Gilbert esperou com a respiração suspensa que Dora tentasse alguma aproximação, mas, felizmente ela teve bom senso suficiente para não fazê-lo. O rapaz não queria ter que lembrá-la de como arruinara a vida dele, e por isso, nem a amizade dela lhe importava mais.
Enquanto estava participando da aula, seus pensamentos se dividiam entre a matéria que estava estudando e sua vontade de ver Anne, a qual teve que controlar até a hora do intervalo, e se frustrou novamente, pois ela não estava em lugar nenhum do refeitório. Apenas alguns minutos depois que tinham voltado para a sala, foi que ele tivera coragem de se aproximar de Jonas e perguntar:
- Jonas, a Sharon disse por que a Anne não veio para o intervalo? - o amigo o olhara com curiosidade antes de responder:
- Esta semana ela não virá para a faculdade porque está doente. - Gilbert ficara tenso com aquela novidade e perguntou apreensivo:
- O que ela tem?
- Tem certeza de que quer saber, Blythe?
- Que pergunta absurda é essa? É claro que quero saber. - ele disse um tanto irritado com o olhar irônico de Jonas.
- Bem, a uma semana você não queria nem falar com ela, então, pensei que ainda continuasse assim.
- A uma semana eu estava meio louco, deprimido e cheio de raiva, e disse e fiz muitas coisas das quais não me orgulho. Porém, nada disso mudou o que sinto por Anne, e eu sempre vou me preocupar com ela. Então, me diga o que ela tem?
- Parece que pegou uma gripe forte e está de cama por uma semana por ordens médicas. Isso foi tudo o que Sheron me disse. - Gilbert assentiu com a cabeça, mas, sua preocupação não diminuiu. Se ela estava de cama, era porque o problema era grave. Ele conhecia Anne muito bem, ela não se deixaria abater assim se não estivesse se sentindo terrivelmente enferma.
Ele passou as mãos pelos cabelos e se perguntou se o que acontecera em seu último encontro com ela não tinha nada a ver com isso. Anne tinha a tendência a somatizar seus problemas, transformando-os em doenças físicas, e ele presenciara isso acontecer mais de uma vez. Céus! O que estavam fazendo um com o outro? De repente, todo o amor que sentiam parecia apenas causar sofrimento aos dois, e ele que sempre pensara que nunca mais sofreriam daquela maneira, mas pelo jeito o destino tinha um senso de humor terrível, e se divertia brincando com o coração das pessoas, condenando-as a serem infelizes sem o merecer. Anne precisava dele, Gilbert podia sentir em seus ossos, mas, por mais tentado que estivesse em visitá-la, ele não o fez, porque sua consciência o forçou a perceber que se Anne quisesse vê-lo ela teria mandado alguém chamá-lo e não a culpava, pois depois do que ele fizera, dificilmente Anne o perdoaria.
Assim, ele se contentava com as notícias que Jonas lhe dava através de Sharon, mas, sofria por dentro ao saber o quanto debilitada, Anne estava, e sua mente fazia mil perguntas que quase o enlouqueciam. Será que Cole sabia que canja de galinha era um ótimo remédio para gripe forte? Que chá de gengibre com limão aumentava a imunidade? Será que Anne estava se agasalhando direito? Ou tomando banhos mornos para baixar a febre? Ele queria correr até o apartamento do amigo de Anne, e dar a ele uma lista de coisas que a ajudariam a se sentir melhor, porém, logo percebia o quanto estava sendo ridículo. Ela já tinha sido examinada por um médico de verdade, e não precisava de receitas milagrosas de um aspirante de medicina.
Então, ele tentou se concentrar nos estudos sem suas noites insones que passava pensando nela, porém, não estava sendo tão fácil quanto imaginara. Sua mente quase sempre o prendia em conjecturas que não o levavam a lugar algum. Ele parecia estar em um labirinto cheio de armadilhas que quase sempre o jogavam em um estado de completo desânimo. Ele e Anne não ficavam afastados assim desde que ela se mudara para Nova Iorque, e era um verdadeiro sacrifício manter-se sem quase notícias nenhuma, assim, ele tentava refrear sua ansiedade, porém, quase sempre falhava, e mesmo seus amigos acabavam repreendendo-o por tentar o impossível.
Certa noite, Carlos estava estudando com ele quando perdeu a paciência ao ver Gilbert se levantar pela milésima vez e ir até a janela, e deixar seu olhar se perder em algum ponto lá fora aquele olhar, sem esconder por onde andava seu pensamento.
- Gilbert, por quer não vai vê-la de uma vez?
- Não acho que ela queira me ver.- ele respondera de cabeça baixa.
- Aquela garota é louca por você. Por que não ia querer vê-lo? - Carlos perguntara colocando o livro de lado para olhar melhor para o amigo.
- Você não sabe como eu a tratei a última vez que ela esteve aqui. Eu fui um verdadeiro canalha. - ele mordeu o canto dos lábios, tentando afastar as lembranças ruins.
- Se eu fosse você, eu iria assim mesmo. Qualquer coisa é melhor do que essa ansiedade que está te consumindo. - Carlos se levantou, foi até a cafeteira e se serviu de uma xícara de café.
- Não acho que seja uma boa ideia.
- Então, decida-se logo. Vai estudar ou ficar se lamentando por seu malfadado romance? - Carlos perguntou impaciente.
- Desculpe-me, Carlos. Vou tentar me concentrar melhor. - E foi o que fez nas horas seguintes, e após se esforçar bastante, ele conseguira colocar em dia tudo o que precisava, mas, quando deitou sua cabeça no travesseiro naquela noite, Gilbert conseguiu dormir apenas algumas horas.
Assim, os dias foram passando, até que outra semana começou, e naquela manhã ainda um tanto fria. Gilbert tivera uma bela surpresa ao ver Anne no corredor da Faculdade. Ela estava a uma certa distância dele, mas, de onde ele estava, Gilbert não deixara de registrar cada detalhe da aparência dela. Os cabelos estavam preso em uma única trança, deixando o rosto delicado apesar de pálido, em evidência. Ela usava calça de lã preta, blusa de mangas compridas verde e um grande casaco branco e grosso que chegava na metade de suas coxas. Ele quis caminhar até ela, mas, sem coragem desistiu, pois sabia que se chegasse perto não se contentaria em apenas olhá-la. Seu amor exigia mais que isso, e ele não sabia se Anne estava disposta a deixar tudo o que acontecera para trás, e seguir em frente com o noivado dos dois. Ela também não fez nenhum movimento em direção a ele, porém, acenou discretamente e foi aí que ele viu opala brilhar em pleno ar fazendo-o sorrir de leve. Pelo menos, ela não tirara o anel do dedo, o que significava que nem tudo estava perdido.
Na hora do intervalo, ele esperara vê-la, mas, ela não apareceu para lanchar. Gilbert quase fora a procura dela, contudo, sua voz interior o impediu. Ele precisava dar tempo ao tempo, e impor sua presença a Anne quando ela claramente não queria encontrá-lo poderia pôr tudo a perder, então, mais uma vez ele tomou sua ansiedade sob rédeas curtas, e continuou ao lado de seus amigos, rindo das piadas engraçadas de Patrick, fugindo do olhares incisivos de Dora, e conversando com Carlos sobre assuntos que não envolviam o coração.
Mais tarde naquele dia, quando suas aulas findaram finalmente, Gilbert não resistiu e passou pela monitoria, e escondido atrás de uma porta que estava entreaberta, ele a observou em segredo dando aulas a um rapaz que a olhava com adoração. De repente, ela sorriu de algo engraçado que ele dissera, e Gilbert sentiu seu sangue fervendo de puro ódio, e tratou logo de sair dali, antes que fizesse um papel ridículo, e acabasse por socar o rapaz que tivera o atrevimento de fazer Anne sorrir quando aquele direito sempre fora somente dele.
Deste modo, naquele instante em que alcançava a última esquina que o levava direto ao seu apartamento, Gilbert ainda sentia o gosto amargo do seu ciúme incomodá-lo, e logo compreendeu que nunca se conformaria em perder Anne daquela maneira, Deveria ter um jeito de trazê-la de volta para ele, e perseguiria aquele pensamento até que seu amor estivesse novamente perto de seu coração.
GILBERT E ANNE
Os dias passaram rápidos para Anne que ensaiava exaustivamente com Roy Gardner com todo o elenco, e por isso, a peça que tivera previsão ser realizadas em dois meses, em poucas semanas estava pronta.
Estava sendo uma experiência gratificante, apesar de toda a-situação que a ruivinha estava vivendo. Ela continuava afastada de Gilbert, e apesar de vê-lo na faculdade todos os dias, sobrava poucas oportunidades para que se falassem, pois sua presença era requisitada a todo momento por conta da peça, e por isso mesmo, seu tempo estava escasso para qualquer coisa que não fosse sua total dedicação à personificação perfeita de Elisabeth Bennet.
De certa forma, todo esse trabalho em cima da peça lhe distraia completamente, e assim a impedia de pensar demais em sua situação atual. Era um alívio poder se envolver em cada fala de seu personagem, sem perder o foco ou se distrair. Isso tornava suportável cada dia que acordava, e lhe dava uma motivação extra para não desistir novamente de seu sonho de ser professora.
Tal fato não queria dizer que se esquecera de Gilbert, ou que sentia menos sua falta. Estava apenas aprendendo a lidar com a situação sem jogar a toalha, ou se afundar em uma depressão sem volta. Porém, suas noites continuavam a ser excruciantes, e em sua-solidão ela ainda deixava que suas lágrimas a consolassem. Anne sentia que não conseguiria passar por aquilo de outra forma, e seu coração tão sofrido pedia por uma misericórdia que ela sabia que não encontraria em lugar algum.
De todas as vezes que se afastara de Gilbert, aquela estava sendo ainda mais dura que as outras, porque dessa vez não havia uma pessoa entre eles ou uma enfermidade causada por uma fatalidade da vida. O que existia era corações feridos, palavras que magoavam, e um amor tão imenso que acabara de tornando sua pior tortura. Ela queria que tivessem uma chance novamente, mas, dera o primeiro passo e fora rejeitada, porém, não queria dar a si mesma a opção de desistir, porque se o fizesse não sobraria mais nada pelo que lutar.
Nos poucos momentos que seus olhos cruzaram com os de Gilbert nos longos corredores da faculdade, Anne tivera a impressão de que ele quisera lhe falar algo, mas por receio ou orgulho ele deixara a oportunidade passar. Ainda assim, ela percebera seus olhares sobre ela, e até conseguira captar naqueles olhos castanhos certa ternura que a lembrava os velhos tempos quando ele não se cansava de dizer que a amava, e agora estavam assim, nesse impasse descabido, provocado por uma garota desequilibrada que tornara o sentimento que sentiam um pelo outro, um peso enorme para ambos os lados.
O amor era algo mais difícil do que Anne pensara, e os romances que lera e que enfeitaram seus dias de adolescente, lançando sobre ela um encanto que a fizera acreditar que tudo era possível quando dois corações suspiravam um pelo outro, mas ela aprendera que nem sempre isso acontecia, e muitas vezes os obstáculos eram difíceis demais para superar, e os muros que as pessoas construíam ao redor de si mesmas para se protegerem de uma eventual decepção se tornavam intransponíveis em certos momentos, e ela não queria que isso acontecesse entre ela e Gilbert, porque por mais que houvesse desentendimentos que o mantinham longe um do outro , Anne queria acreditar que se resolveriam com o tempo deixando tudo aquilo para trás como se fosse uma mera lembrança ruim.
Desta forma. ela ia se equilibrando entre sua vida amorosa completamente desestruturada no momento, e sua vida acadêmica que ia de vento em popa. Um paradoxo que por vezes a confundia, mas que também despertava o seu senso racional para tudo o que vinha lhe acontecendo. Era apenas mais uma tempestade, ela dizia para si mesma, como fora com a amnésia de Gilbert, e com certeza passaria também, trazendo um sol magnífico por trás do arco íris que seu amor sempre criara entre eles. Eram feitos um para o outro, por isso não fazia sentido viverem separados, Anne precisava desesperadamente se agarrar a essa ideia, para não sucumbir à sua triste solidão.
Entre esses seus dias confusos, onde tantas coisas se misturavam em sua cabeça havia Roy Gardner que a vinha cercando de todas as maneiras. Não que ele lhe inspirasse qualquer interesse, pois seus coração já tinha sido conquistado a tanto tempo, que Roy estava perdendo seu tempo se achava que ela poderia olhá-lo com outros olhos, porém, ela apreciava imensamente o esforço que ele vinha fazendo para que Anne mudasse a visão nada agradável que tinha dele e a maneira carinhosa com a qual ele a tratava era um bálsamo para o seu coração machucado, pois ela precisava de toda força que seus amigos pudessem lhe dar naquele momento de turbulência, e embora ela não confiasse tanto assim em Roy para dizer que eram amigos, a relação que tinham agora chegava perto disso.
Assim, naquela manhã depois do intervalo, eles foram pela última vez ensaiar as cenas finais da peça, pois ela seria apresentada no próximo sábado, e era necessário que tudo estivesse perfeito. Cada ator passou suas falas e cenas e foram sendo dispensados assim que o professor se dava satisfeito com a encenação, sobrando apenas Anne e Roy para ensaiarem suas últimas cenas. Por mais incrível que pudesse parecer, e mesmo Anne ficou surpresa ao perceber o quanto ela e Roy estavam em harmonia em seus devidos papéis, bastante à vontade e se divertindo horrores com cada parte ensaiada. Anne se viu rindo muito naquele dia, pois Roy sabia ser charmosos e engraçado quando queria, e naquele dia especialmente ele parecia bastante inspirado em suas falas e trejeitos que compunham a personalidade de seu personagem.
Contudo, toda essa camaradagem entre eles não a deixava livre de suas desconfianças em relação à ele, pois por experiência própria ela sabia que pessoas como ele sabiam bem fingir o que não eram apenas para conseguir o que queriam, e depois do começo tenso que tiveram quando se conheceram, e a maneira explícita dele se insinuar para ela, a ruivinha não conseguia realmente esquecer tudo o que ele lhe dissera, mas, pelo menos aquela mudança, mesmo que não fosse sincera, servira para tornar os ensaios menos tensos. Quando enfim terminaram, ela pegou suas coisas para ir para casa, mas Roy a interrompeu dizendo:
- Anne, posso te levar para casa?
- Roy, desculpe-me, mas, não acho uma boa ideia. - Anne respondeu se sentindo desconfortável dentro daquela situação inesperada.
-É por causa do seu ex-noivo, não é? - ela balançou a cabeça assentindo, sentindo grande dificuldade em assimilar a palavra "ex-noivo", porque em seu coração totalmente apaixonado, Gilbert sempre seria o único homem a tê-la completamente, mesmo que nunca mais a quisesse de volta. Era por isso que vivia e viveria, acreditando até seu último suspiro naquele mundo que estariam de novo juntos um dia. Ela encarou Roy que a olhava com afeição e respondeu com sinceridade.
- Sinto muito, Roy. Eu não o esqueci, e não acho que isso vá acontecer um dia,
- Eu entendo e realmente não me importo, porque vou esperar por você Anne, disso você pode ter certeza. - ele esticou a mão e tocou seu rosto de leve, e Anne sentiu pena dele por estar iludido com aquele pensamento. Ela não podia deixá-lo acreditar que tinha alguma chance quando na verdade não tinha nenhuma.
- Roy....
- Não diga nada, Anne. Eu sei. - ele disse impedindo de continuar. – Nos vemos amanhã na peça, está bem? - ele sorriu e Anne retribuiu dizendo:
- Está bem. Até logo. - ela disse antes de sair.
- Até. - ele respondeu.
E assim, ela se encaminhou para fora do salão de teatro da faculdade, e foi para casa, pensando em tudo o que acabara de acontecer.
Ela sequer podia imaginar que naquele instante, Gilbert segurava um panfleto que falava sobre a peça que seria encenada no dia seguinte. Ele olhava com saudade para a foto de Anne sem deixar de notar o rapaz que estava ao lado dela. Então, aquele seria Mr. Darcy, ele pensou com certo ressentimento que somente piorou ao reconhecer que aquele era o mesmo rapaz com o qual ela passava uma hora de monitoria todos os dias. Gilbert sabia daquilo porque, observá-la antes de sair da faculdade depois das aulas se tornara um hábito solitário e pesaroso, pois ele nunca se atrevia de fato a se aproximar dela. Ele tinha procurado de todas as formas um jeito de chegar perto dela para que tivessem uma boa conversa sobre tudo o que que acontecera, mas, todas as suas tentativas deram em nada, porque Anne parecia ocupada a cada segundo naquela semana, frustrando os seus planos.
Assim, ele matava sua saudade, observando-a de longe, feito um daqueles admiradores secretos sem coragem de se revelar. E por ironia, ela parecia ficar mais bonita a cada dia que passava, fazendo-o fantasiar que ela estava ao seu lado na cama durante a noite, e que bastava esticar o braço para sentir-lhe a pele quente. Que falta ele sentia de beijá-la quando tinha vontade, de escorregar os dedos pelos seus longos cabelos, e sentir o odor de sua fragrância sedutora. E ele sabia de cor onde ficava cada sarda daquele rosto lindo, por tantas noites que passara em claro observando-a dormir sem conseguir acreditar que aquela garota inesquecível era toda sua. Ele se lembrava de todos os seus sorrisos, de todos os seus olhares, do seu biquinho adorável quando ficava aborrecida com algo, o jeito que ela jogava os braços ao redor dos seu pescoço, seus rostos muito próximo que o fazia ter a visão incrível de sua íris impressionante como se ele estivesse mergulhado no céu mais azul de todos. Como ele pudera deixá-la ir quando prometera que ficariam juntos para sempre? Que direito ele tinha agora de sentir ciúmes do rapaz que a fazia sorrir com uma descontração que ele não via nela a semanas? Ele claramente estava encantado por ela, e será Anne que nutria algum sentimento pelo Mr. Darcy da ficção?
Ela sempre dissera que seu amor por Gilbert era eterno, mais, depois de todas aquelas semanas, ele ainda podia acreditar nisso? E se a maneira como ele a tratara da última vez tivesse mudado tudo, e ela resolvera dar a si mesma a chance de conhecer outras pessoas, deixando Gilbert finalmente para trás? Aquele pensamento o atingiu de tal forma, que a dor em eu peito foi intolerável, trazendo lágrimas não derramadas aos seus olhos, mas que por teimosia ele engolira uma a uma, tentando esconder sua única fraqueza. Então, o que lhe restara foi espiá-la de longe, enterrado em seu ciúme por ver outro homem roubar-lhe a atenção que a um mês atrás tinha sido somente dele, e depois voltava para casa sentindo-se corroído até a alma.
Deste modo, enquanto olhava para o panfleto em sua mão, ele se perguntava por que ela não o convidara para ver a peça sobre a qual ela tinha lhe falado por dias inteiros totalmente entusiasmada quando ainda estava juntos? Um sentimento de ter sido deixado de lado tomou conta dele, e Gilbert sentiu como se já tivesse sido substituído. Mas, ela parecia feliz sem ele, e Gilbert disse a si mesmo que deveria estar contente por vê-la seguindo em frente quando ele não conseguia sem ela, mas, ele descobriu que detestava a ideia de Anne continuar a seguir seus planos, e sua vida sem que Gilbert estivesse por perto. Contudo, se a perdera, fora por culpa exclusivamente sua, se dera oportunidade para outro homem se aproximar fora porque ele deixara aquela porta aberta, mesmo que inconscientemente, e se ela não queria mais vê-lo era por seu estúpido orgulho que os levara para aquela direção. Ainda assim, prometeu a si mesmo que a veria atuar, esse era um prazer que não perderia. Se bem se lembrava, Anne era uma atriz magnifica, e brilharia demais naquela noite, e Gilbert queria estar lá, mesmo que fosse apenas como um mero expectador, pois ela teria sempre seu apoio incondicional no que quer que fosse.
Quando a sexta-feira chegou, Anne estava no camarim completamente nervosa. Ela sabia todas as falas de cor, cada gesto que deveria fazer, mas, e se por algum azar, ela esquecesse alguma linha? Entraria em pânico com certeza, e esse pensamento começou a angustiá-la extremamente. Roy veio vê-la nos minutos finais antes de entrarem, e a encontrou pálida e com as mãos geladas.
- O que foi, Anne? - ele perguntou preocupado ao vê-la naquele estado.
- Estou nervosa. Roy, e se alguma coisa der errado? - seu corpo tremia e ela não conseguia parar quieta, andando de um lado para outro no pequeno espaço em que estavam,
- Ei, Anne, pare com isso. Nada vai dar errado. Apenas olhe nos meus olhos, e esqueça a plateia. Tudo ficará bem, eu prometo. - ele disse segurando-lhe as mãos. Ela apenas assentiu, rezando para que ele estivesse certo. E foi assim que entraram, de mãos dadas, quando a deixa de suas cenas foi anunciada.
A primeira coisa que notou no momento em que pisaram no palco foi Cole e Pierre na primeira fila, e ficou surpresa ao ver Gilbert sentado a poucos metros de seus amigos. Ele a olhava intensamente, e mesmo na distância em que estavam, o impacto do olhar dele sobre ela a fez suspirar, e então ela soube para quem atuaria naquela noite. Assim, ela deixou que sua alma apaixonada a guiasse, sentindo a presença de Gilbert ao seu redor. Cada vez que olhava para Roy, era seu amado que via materializado à sua frente, e então, ela sorria como se pudesse fazer Gilbert entender pelo pensamento que ainda era sua e sempre seria. Cada gesto seu foi para Gilbert, cada palavra de amor que Elisabeth Bennet dizia para Mr. Darcy, era Anne se declarando para seu príncipe mais uma vez. Era uma pena que precisasse fingir que estava realmente atuando, quando na verdade estava representando a realidade de seus sentimentos por Gilbert que brilhava em seu rosto naquele instante em que Roy Gardner encarnado em seu personagem fictício pedia a protagonista de Anne em casamento, trazendo à sua mente o dia em que Gilbert se ajoelhara em plena estação de trem na rua empoeirada, diante de um bando de olhares curiosos, pedindo que aceitasse se casar com ele pela segunda vez.
Seu sim entusiasmado, fez a plateia aplaudi-la de pé, e no momento em que Darcy colocou o anel de noivado no dedo de Elisabeth Bennet, o que era para ter sido um beijo carinhoso na testa se tornou um selinho, por responsabilidade de Roy, que modificara o final, fazendo Anne enrubescer e olhar em direção a Gilbert que já não estava mais na plateia. Então, ela encarou Roy incomodada pelo seu ato desavisado que sorrindo lhe pediu desculpas, dizendo que achara que um beijo no final impactaria mais a cena. Anne não acreditou no que ele dissera, mas, já estava feito e não podia mudar o que acontecera, restando a ela apenas agradecer aos expectadores pelos aplausos efusivos que ela e todo o elenco recebiam naquele instante. Minutos depois, a ruivinha estava se despedindo de alguns amigos, quando Cole e Pierre vieram em sua direção para cumprimentá-la pelo excelente trabalho. Sentindo-se inquieta ela perguntou:
- Você viu quando o Gilbert foi embora?
- Sim, foi exatamente no momento que você e seu companheiro de cena trocaram aquele selinho. Ele parecia bastante transtornado. - Cole respondeu olhando-a com atenção. Anne apenas balançou a cabeça inconformada com o ato impulsivo de Roy que a afastara mais um pouco do homem de sua vida. O que será que Gilbert estava pensando naquele momento? Decidida a não se torturar com isso, ela disse:
- Vocês podem me esperar um minuto? Vou somente me trocar e logo irei para casa com vocês.
- Não vai na festa do elenco? - Pierre pergunto com seu inglês bem melhor que meses atrás.
- Não. Estou cansada e prefiro ir para casa.
- Está bem. Vamos te esperar lá fora. - Cole disse beijando-a de leve na testa.
Logo. Anne estava em seu camarim improvisado, tirando a maquiagem de seu rosto, e pensando em tudo o que acontecera naquela noite inesperada. De repente, ela ouviu uma batida na porta, e sem pensar muito disse:
- Entre. - e assim que a porta se abriu, ela viu a figura de Gilbert bem atrás dela. Pelo espelho, Anne conseguia ler suas feições que pareciam sérias demais, tão diferente do Gilbert divertido e amoroso que fazia piada de tudo somente para vê-la sorrir. Encararam-se por alguns minutos pelo reflexo de suas imagens, e não aguentando mais ficar de costas para ele, com o coração disparado, ela se virou, seus olhos se perdendo completamente no castanho dos ele..
- Eu queria te dar isso. - ele começou a falar, entregando-lhe uma rosa vermelha, e ela sorriu com as lembranças que aquela flor singela lhe trazia do passado e disse:
- Obrigada.
- Como você está? - Gilbert perguntou com as mãos no bolso, encarando-a sem tirar os olhos dela um minuto sequer.
- Estou bem. - ela respondeu, incapaz de continuar falando, pois já se sentia ofegante apenas com a presença dele ali.
Gilbert também não se sentia muito diferente, devorando-a com seus olhos, observando cada detalhe do rosto e do corpo que em sua saudade o atormentavam, sentindo cada fibra de seu ser gritar seu amor por ela, ao mesmo tempo que sofria por aquele vácuo entre eles que não permitia que se aproximasse de Anne como desejava. Em segundos, ele tomou uma decisão, e diminuiu a distância entre eles, ficando o mais perto que podia da garota de seus sonhos.
- Você estava linda lá em cima. Eu fiquei orgulhoso. - ele disse fazendo-a corar.
Gilbert admirou-a em silêncio por alguns instante, não sabendo bem o que deveria dizer. Então, não resistindo mais ao apelo de seu coração, o rapaz estendeu a mão e tocou os cabelos dela que lhe pendiam soltos pelo ombro, acariciando o rosto de Anne com o polegar, contornando o formato do seu nariz arrebitado com o dedo indicador, e se aproximando mais um pouco.
Anne fechou os olhos, sentindo os arrepios familiares subirem pelo seu corpo, enquanto a respiração quente de Gilbert batia de encontro a seu pescoço. Deus! Como ela queria aquele beijo, estava quase implorando pela língua quente dele se enroscando na sua, suas mãos em sua cintura, e seus corpos tão grudados como se fossem apenas um. Ele diminuiu mais um passo entre eles, deixando-a ansiosa, e ela se arrepiou ainda mais ao sentir os lábios dele próximos ao seu ouvido, e com a voz quase inaudível ele disse:
- Eu te amo. - então um beijo molhado e demorado tocou sua face macia, e quando Anne abriu os olhos querendo ardentemente dizer que também o amava, Gilbert já tinha partido.
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