Capítulo Três
Victor Decker:
Quando finalmente despertei, os primeiros raios de luz da manhã penetravam pelo quarto, transformando os grãos frios na janela em partículas dançantes. Meu rosto estava pegajoso e quente, e meu travesseiro se encontrava em um estado lastimável, destroçado pela minha revolta diante de todas as tribulações que pareciam se abater sobre mim. Meus olhos recaíram sobre o cão que dormia serenamente no chão, alheio ao caos que quase consumira este lugar. Kierran, por sua vez, havia feito inúmeras tentativas em vão para me arrancar palavras durante a noite, mas, após sua persistência ser em vão, ele finalmente se retirou em busca de seu próprio quarto.
Naquele instante, perdido em um mundo de solidão e confusão, uma saudade profunda pelo meu antigo amigo Puck me invadiu. Puck, com sua atitude despreocupada e um sorriso que podia derreter até mesmo os corações mais frios, sempre possuía a palavra certa para arrancar risos dos meus lábios. Quando era apenas um humano chamado Robbie Goodfellow, ele havia sido meu melhor amigo, e, ainda mais importante, o único amor verdadeiro que já conheci. Robbie se sacrificara para me salvar quando as fadas das sombras tinham como alvo minha captura.
Claro, o que eu não sabia na época era que Robbie Goodfellow era, na verdade, o famoso Puck de — Sonho de Uma Noite de Verão— . Ele tinha vivido uma vida plena no mundo humano até o momento em que cruzou o meu caminho e se viu imerso nesse tumulto, tudo para proteger-me do sombrio mundo das criaturas feéricas. Sua lealdade o levara a um preço alto, pois ele acabara se tornando uma espécie de marionete controlada pelo cruel rei das sombras, e eu não podia deixar de imaginar como sua mente devia estar devastada ao ser forçado a cometer atos contra sua própria vontade.
Fui arrancado de meus pensamentos por uma batida urgente à porta, um som que me pegou de surpresa.
— Victor — disse a voz de Kierran do outro lado. — Acordei. Sei que você está aí. Por favor, abra a porta.
O cão ao meu lado despertou e percebi que era hora de dar um nome ao fiel companheiro que sempre me acompanhava pelos corredores. Com um salto da cama, atravessei o quarto e puxei a porta, permitindo que ela se abrisse com um rangido suave.
— O que está acontecendo? — perguntei, observando Caleb de pé atrás de Kierran. — Não posso receber visitas neste momento.
Ambos me olharam com surpresa, seus olhos se fixando na minha aparência desgrenhada e meu mau humor evidente. Um sorriso familiar brincou em meus lábios, mas a raiva ainda borbulhava sob a superfície. Era como se, naquele momento, eu fosse considerado o louco neste lugar, e eu não estava com disposição para discutir ou ouvir desculpas de Caleb, a quem odiava por me entregar à Rainha Winter simplesmente porque ele estava magoado comigo por termos partido corações.
Eu estava prestes a fechar a porta na cara deles quando Kierran deu um passo à frente e se lançou para dentro do quarto com graça, bloqueando o batente da porta com o corpo e me impedindo de fechá-la.
O cão ao meu lado rosnou em desaprovação, e percebi que estava prestes a se lançar contra os dois rapazes.
— Meu pai conseguiu convencer minha avó— , explicou Kierran, fazendo-me congelar no lugar.
Arqueei uma sobrancelha, olhando desconfiado para o filho de meu inimigo. — E o que ele teve que fazer para ela concordar?—
— O que ela pediu...— começou Caleb, mas suas palavras morreram antes de terminar a frase.
Caleb era para mim um bastardo arrogante e sem coração, e eu o culpava por me ter entregado à Rainha Winter, simplesmente porque ele não suportava a dor de ter tido seu coração partido.
— Ela pediu que você ficasse pelo menos para o evento da Troca das Estações, que acontecerá em breve - a troca do Cetro das Estações — disse Kierran, enquanto me olhava com olhos atentos.
Fiquei ainda mais desconfiado. — Ela só quer que eu fique para um evento? Não posso acreditar nisso. Mab nunca faria nada sem um motivo oculto.—
— Então, você concorda em ficar apenas para a festa e depois partir? — indaguei, mas ambos permaneceram em silêncio, olhando fixamente para mim. — Há algo mais, não há? Ela está planejando algo para mim, algo que me fará temer o que está por vir. Além disso, ela tem que devolver meus poderes, que ela bloqueou.
Os dois mantiveram o silêncio, o que só aumentou minha frustração.
— Não provoque a ira de Mab, é tudo o que posso lhe dizer — declarou Caleb, após uma pausa constrangedora.
Dei uma risada sarcástica. Estava ficando farto de toda essa situação.
— Saíam — ordenei, e ambos me olharam com confusão. — Eu disse para saírem! Saiam deste quarto e não voltem. Estou completamente exausto de tudo isso.
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Ouvi o som de gelo se partindo, e do chão, surgiram espinhos negros como uma enxurrada de agulhas afiadas. O cão, um verdadeiro furacão, arremessou-se contra a porta, que estourou em pedaços, e os três de nós fomos catapultados para fora do quarto, envolvidos pelos espinhos que despedaçavam tudo à sua passagem.
Minhas mãos tremiam com a magia das sombras, e, quando finalmente percebi, essa energia incontrolável jorrava de mim em todas as direções, como uma tempestade sombria. Caleb, o traidor, se encolheu contra a parede, desesperadamente evitando ser perfurado por aqueles espinhos sombrios.
Eu estava perdendo o controle de tudo o que havia mantido cuidadosamente escondido por tanto tempo.
Kierran, o feérico, se ergueu, estalou os dedos, e a neve ao redor dos meus pés se transformou em uma camada de gelo, congelando minhas botas e me prendendo ao chão. No entanto, a magia sombria não cedia; pelo contrário, ela continuava a se manifestar, avançando inexoravelmente em direção a Caleb.
Eu tremia violentamente, sentindo agulhas de dor perfurando meu corpo através das roupas. Minha visão ficou turva, meu estômago se contraiu e minha cabeça começou a rodar.
A temperatura ao redor tornou-se insuportável. Meus músculos se contorciam sob o terrível frio que parecia entorpecer meus ossos. Meus braços tremiam incontrolavelmente, mas o poder das sombras continuava a crescer.
Então, no momento seguinte, o gelo que me mantinha preso se quebrou. Com um som cristalino, ele se desfez em estilhaços brilhantes sob a luz fraca do ambiente. Eu gemi e dei um passo para trás, finalmente livre do gelo, e foi nesse momento que uma sombra surgiu, revelando o Rei Ash, com uma expressão de profunda preocupação.
Tanto o rei quanto o príncipe diziam algo, mas minhas percepções estavam turvas. O chão parecia girar sob meus pés, e uma nova onda de tontura me atingiu, fazendo minha mente rodopiar. Eu poderia ter resistido, mas me sentia indiferente a tudo, incapaz de me importar naquele instante.
Permiti que a escuridão me envolvesse, me levasse embora, e em segundos, desmoronei.
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Fiquei à deriva por algum tempo, preso entre a vigília e o sono profundo. Sonhos confusos e semiclaros vagavam por minha mente, mesclando-se com a realidade, a ponto de não conseguir mais distingui-los. Sonhei com minha família, com meu avô e suas histórias sobre os feéricos, como os do País das Maravilhas eram seus favoritos.
Formas e vozes flutuavam na periferia da minha consciência. Ouvia uma melodia cantarolada por uma voz suave e, em seguida, uma risada sinistra.
Meus sonhos eram estranhos, revelando um enorme palácio que surgia a poucos passos de mim. Ao estender a mão, uma figura emergia das sombras, e meu coração gelou quando o Rei das Sombras se ergueu atrás de mim.
— Eles o temem e ainda agem como se fossem superiores a você. — Sua voz profunda ecoou em meus ouvidos. Virei-me e o encontrei ali, observando-me com um sorriso sutil nos lábios. — Desista e mostre-lhes por que deveriam temê-lo.
Franzi a testa.
— Você não está aqui. – Murmurei. – Eu te matei. Você não é real.
— Não, meu claro aliado. – Ele balançou a cabeça, fazendo seus cabelos ondularem suavemente. – Você me matou, mas eu ainda estou com você. Sempre estarei com você, agora. Não há como negar isso. Nós somos um.
Afastei-me.
— Vá embora. – Disse, recuando para a escuridão, sentindo o medo se apossar de mim novamente. Ele me observou intensamente, mas não avançou. — Você não está aqui. Isto é apenas um sonho, e você está morto! Sai daqui. – Virei-me e mergulhei na escuridão, até que ele se dissipasse suavemente no vazio.
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Minhas habilidades de leitura mental me permitiam adentrar a mente das pessoas, dos feéricos, sondando seus mais profundos medos e segredos. Naquela penumbra angustiante, encontrei uma mente que me fez saltar de alegria. Era como se um feixe de luz atravessasse a escuridão. Aquela mente pertencia a Puck, meu amigo leal, e meu coração se encheu de alívio ao perceber que ele estava vivo e saudável. Mas então, como uma sombra se espalhando sobre um campo ensolarado, a imagem mudou abruptamente.
Caleb. Seu nome ecoou em minha mente, trazendo consigo uma enxurrada de emoções conflitantes. Remorso e raiva de si mesmo dominavam seus pensamentos quando ele invadiu meu quarto naquele momento fatídico. Sua voz, um murmúrio cheio de desespero, ecoou em minha cabeça, implorando para que eu não partisse, para que não desaparecesse de sua vida.
Num instante, afastei aquelas lembranças dolorosas, percebendo que não estava mais cativo do ódio que havia nutrido contra ele por tanto tempo. No entanto, o perdão não era uma opção que eu pudesse conceder tão facilmente, não depois de tudo o que havia acontecido entre nós.
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Gostaram?
Até a próxima 😘
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