05 - Hora do pesadelo
Eu não sonhava desde que tinha voltado do coma. Era como se tirasse um aparelho da tomada e ficasse tudo preto. Pequenos cochilos de pouquíssimas horas. Eu lembrava de ter ouvido a voz do Kurogiri, de tentar fugir e ter sido interceptada pelo Gojo.
Acordei na manhã seguinte no meu quarto com as paredes cobertas por selos. Algo comum nos últimos dias. Levantei com dificuldade sentindo a cabeça rodar e o corpo doer.
— Ah, acordou. — Ele estava sentado numa cadeira perto da porta com as pernas cruzadas.
— Que horas são?
— Umas nove da manhã. Ta atrasando meu dia, para variar. Onde estava indo?
— Fugindo.
— Não diga. Sério? — Ele disse sarcástico.
— Disse que eu era livre para ir.
— No meio da noite, como uma criminosa?
— Eu tenho o direito de ir onde quiser! — Eu disse furiosa. Ele se levantou rapidamente e abriu a porta bruscamente.
— Vai. Não vou impedir.
— Está blefando.
— Não. — Ele tirou o celular do bolso e entregou para mim. — Sabe o número da sua mãe de cor? Vai ligar para ela e dizer que está desistindo.
— Está me chantageando?
— Não, estou sendo realista. Ela pediu que cuidássemos de você. Mas o que fazer quando você não quer ajuda?
— Você é muito cruel.
— É eu sou mesmo. Não ligo para seus sentimentos e nem para suas crises. Eu quero apenas fazer o meu trabalho.
— Seu babaca.
— Ah, tanto faz. Agora se levanta que você tem aula. Essa semana você ainda tem que terminar de revisar o primeiro ano, e você vai fazer provas.
— Provas? Que tipo de prova?
— Sei lá! Minha parte é outra.
Era horrível lidar com tudo isso. Com a minha personalidade e a dele. Era como dois líquidos inflamáveis em contato com fogo. E o pior de tudo, é que nenhum de nós dois estava disposto a ceder.
Na sala de aula, ninguém me perguntou nada. Eles eram bons nisso. Todo mundo fingia que estava tudo bem e pronto. Na parte da tarde eram as aulas de jujutsu. Pensando bem eu nem ao menos perguntei o que raios era jujutsu. Apenas me deixei levar, como se aquilo fosse algo normal.
Eu estava na porta do vestiário fazendo hora para fugir dos exercícios. Não era preguiçosa antes, mas ali era pesado demais. Na verdade acho que eu não tava afim mesmo. Vi o Fushiguro se aproximar.
— Hatori? O sensei Gojo pediu para que você fosse para a sala de treino. E pediu para ir vestida com algo bem confortável.
Eu engoli em seco quando ouvi isso. Dei um sorriso nervoso e entrei no vestiário para trocar de roupa. Alguns minutos depois eu já estava na sala de treino. Tirei a pantufa e pisei no tatame. Sentindo um calafrio pelo corpo inteiro.
Era um enorme cômodo com um tatame escuro. Haviam janelas por toda a lateral dando bastante claridade ao local. O Gojo estava parado com as mãos nos bolsos olhando para mim fixamente.
— É bom que tenha vindo preparada.
— Vai fazer o que comigo?
— Se aproxima.
Eu engoli seco e caminhei devagar mais dois passos. — E aí?
— Tenta me acertar.
— Que? — Dei um riso pelo nariz. — Tá falando sério?
— Sim.
— Para quê?
— Vou testar suas habilidades.
— Disse que não tinham intenção de me transformar em feiticeira? Eu nem sei direito o que vocês fazem!
— Lidamos com problemas como os seus. E respondendo a sua pergunta, se vai ficar aqui vai fazer direito. Não vai ficar vadiando por aí.
— Eu? Vadiando? Vocês me trouxeram pra cá a força!
— Deixa de papo. Vem logo! — Ele acenou e eu respirei fundo e corri na direção dele. Eu só senti a rasteira e caí de cara no chão. — Nossa... é bem pior do que eu imaginava.
— Você me pegou desprevenida! E isso não vale!
— Tenta de novo.
Eu me levantei furiosa e fui na direção dele. A sessão de humilhação estava só começando. Ele nem tirou as mãos dos bolsos, ou os óculos. Quando dei por mim estava no chão de barriga para cima lutando para respirar. Ele se aproximou de mim e se abaixou do meu lado.
— Precisa respirar com calma ou vai vomitar no tatame.
— Vai se... fo...der...
— Olha a boca. Ainda sou seu professor. Cadê os bons modos?
— Eu... — Até tentei falar mas o ar mal entrava em meus pulmões.
— Toma um fôlego. Depois vamos começar de novo. Te dou 20 segundos.
— 20 segundos? Seu monstro!
— O tempo está correndo!
Eu saí do treino e estava custando a andar. Caminhei até o vestiário escorando nas paredes sentido dor em cada músculo possível do meu corpo.
— Fez raiva nele? — Era uma moça alta, usando óculos, cabelos verdes e cara de brava.
— Que? — respondi ainda tentando processar tudo.
— O bobão vendado. Fez raiva nele? Para acabar com você num treino no seu segundo dia, ele deve estar com muita raiva de você.
— Eu... não sei. — sabia sim. Mas era melhor ela não saber.
— Maki! — Um panda falante até me surpreenderia, mas acho que aquela altura do campeonato nada mais me causava espanto, eu tinha um gato falante que só eu via. — O Toge e o Yuta já chegaram. Vamos lá. Ah! É a moça do sonho. Como vai?
— Já tive dias melhores...
— Ela fez raiva no Satoru. Certeza. — Maki disse meneando a cabeça.
— Nossa, sinto muito. Boa sorte nos próximos dias. Eu sou o Panda.
— Akira... — eu disse tentando não gemer a cada letra.
— Maki. Aguente firme, novata.
— Por que está dizendo isso?
— Você vai descobrir.
Eu vi eles se afastarem e caminhei até a porta do vestiário. Até tomar banho era difícil. Tudo que eu queria era chegar no quarto e deitar na cama. Itadori e os outros ainda me chamaram para tomar um sorvete, mas como eu não podia sair dali eu não fui. Não iria nem se pudesse.
Quando cheguei na porta do dormitório, já tinha um dos funcionários me esperando. Se não me engano, acho que o nome era Ijichi.
— O senhor Gojo solicitou sua presença na sala dele.
— Sério?
— Sim, senhorita.
— Eu nem sei onde fica a sala dele. — Eu disse já exausta.
— Eu te levo até lá.
Segui o Ijichi até o edifício principal, evitando xingar o Gojo mentalmente. Palavras tem poder? A vontade era grande. Parei na porta e respirei fundo antes de bater na porta.
— Entra! — Ouvi ele chamar do outro lado da porta.
Puxei a porta de correr e vi o cretino sentado numa poltrona chique olhando uma pilha de papeis sobre a mesa.
— Mandou me chamar?
— Mandei. Já que você não costuma dormir, vou te dar uma tarefa.
— Tarefa?
— Tá vendo essa pilha de papeis aqui?
— Sim...
— São umas fichas de maldições nos últimos 5 anos, vai separar eles por data, ordem alfabética e cidade.
— Isso vai levar dias.
— Então é melhor começar logo.
— Você não pode fazer isso!
— Posso sim. — Ele dizia tudo com um sorrisinho.
— Ora seu...
— Oooooh, ainda sou seu professor. Tem que me respeitar.
— E onde eu vou fazer isso?
— Aqui. Tem até uma cadeirinha e uma mesinha ali pra você. — E tinha mesmo. A mesa dele era uma enorme no canto, havia uma janela redonda no fundo, uns arranjos e de frente para a mesa dele, a tal mesinha que era literalmente uma mesa escolar. A pilha de papeis tinha duas colunas de uns 50 cm cada.
— Só pode estar brincando.
— Não tô não. Tem muita energia, tempo de sobra. Tem tempo até se fugir, não é?
Meu olho até tremeu. Eu segurei para não virar as costas e ir embora de verdade. Mas eu tinha a minha mãe. Aquela que inclusive eu não tinha tido coragem de ligar. Eu respirei fundo, peguei a primeira coluna e coloquei sobre a mesa. Enquanto isso ele estava procrastinando descaradamente. Ele fazia uns trabalhos, parava, mexia no celular, parava de novo, mexia com mais alguns papeis.
A noite seria bem longa...
Quando chegou determinado momento meu olhos começaram a arder. Eu já estava embaralhando a vista e confundindo palavras. Gojo levantou sem dizer muita coisa. Aliás, ele não dizia nada.
Revirei os olhos quando ele passou pela porta e continuei meu entediante trabalho. Os relatórios eram bem específicos, casos de comas como o meu, de tragédias como aconteceram na escola, algumas aparições específicas, desastres naturais e até mesmo casos de familiares.
Era sobre o meu caso?
Eu passei a prestar mais atenção nos relatórios. Alguns minutos depois o cretino voltou trazendo umas sacolas de uma loja de doces e colocou uma sobre minha mesa.
— Isso é da Sadaharu?
— É sim, não sabia qual você queria, então trouxe um de cada.
— Onde exatamente a gente está?
— No subúrbio, afastados nas Montanhas.
Ele explicava e não explicava nada. Até desisti de perguntar como ele foi e voltou tão rápido. Apenas aceitei o presente um pouco desconfiada. Ele trouxe doce para comer durante um mês.
As horas foram passando lentamente. Parecia uma eternidade. Olhei as horas no celular, não era nem dez da noite ainda.
— Você não dorme, não? — Perguntei erguendo uma das sobrancelhas.
— Em algum momento eu vou dormir. E você?
— Não.
Eu continuei separando os relatórios tentando não ficar tão entediada. Eu devia simplesmente sair correndo dali. Voltar pra casa. Se bem, que eu ia voltar para que?
— Amanhã nós vamos treinar de novo, só que também treinaremos sua energia amaldiçoada.
— Energia amaldiçoada?
— Já esqueceu? Falei na aula hoje.
— Ah sim... mas eu não tenho isso.
— Tem sim. Você vê maldições e espíritos, né?
— Sim. Mas antes eu não via.
— Certeza? Às vezes você acha que não via. Eu sinto que você perdeu uma parte de suas memórias. É só uma teoria.
— Eu me lembro bem da minha vida.
— Mesmo? Hum. Pode até ser, mas não é como se você tivesse esquecido de tudo, mas talvez de momentos específicos. Mas é apenas uma teoria.
A teoria dele ficaria martelando na minha mente por muito tempo. De fato, eu sentia como se eu tivesse esquecido alguma coisa. Como quando eu tinha chegado até aquele momento específico do sonho. Mas sempre achei que fosse minha mente lutando contra o trauma.
— E esse tanto de doce, aí? É para o mês todo?
— Não, é só para hoje a noite.
— Vai ficar doente.
— Me ajuda a pensar. — Ele disse tocando o indicador na têmpora.
— Eu fui na Sadaharu uma vez com meu pai. — Eu disse parando e desembalando um doce com damasco e chocolate. — Mas depois ele arrumou um trabalho e não dava para gente ir com tanta frequência, aí depois nos mudamos para Hokkaido.
— Então você é daqui?
— Sim. Eu morei aqui até os seis anos.
— Que bairro você morava?
— Eu morava em Futako-Tamagawa. — Eu dizia, mas não tinha certeza.
— Bairro burguês. — Satoru se recostou de forma mais à vontade na poltrona e cruzou as pernas.
— E a gente nem tinha dinheiro para bancar. Mas minha mãe gostava de contar vantagem para as amigas. Ela era a única que não tinha tido uma profissão e tal. Ela passou a vida se dedicando aos filhos e a casa. Enquanto meu pai viajava.
— Deve ter feito o jardim de infância naquela escola grande que tem lá, como era mesmo o nome?
— Era... — Sabe quando você tem certeza que sabe de uma informação e quando alguém te pergunta você percebe que a informação simplesmente desapareceu da sua mente. — Espera... eu vou me lembrar.
— Tudo bem. Não se preocupe.
— Não. Eu vou me lembrar, eu tinha até um amigo... — Não vinha nada na minha mente. Havia desaparecido. Eu só me lembrava de já estar no ensino médio. O ensino Fundamental era apenas Flashs. Havia sumido tudo.
— Come esse aqui. — Ele havia se levantado e ido até mim enquanto eu viajava em minhas memórias confusas. — É um mochi com recheio de chá verde. É uma delícia.
— Eu não consigo me lembrar.
— Não liga para isso não. — Ele pôs a mão sobre a minha cabeça e aquilo estranhamente me dava muito conforto. — Ah, o amuleto que eu te dei. Você deixou cair.
Ele me entregou o amuleto que recebi envergonhada e coloquei no bolso do blazer. — Desculpa.
— Tá tudo bem. Se quiser ir, pode ir, amanhã você continua.
— Eu vou ficar, não vou dormir mesmo.
— Tem que tentar dormir um pouco. Você está emagrecendo, as olheiras estão cada vez mais fundas. Não faz bem para o seu psicológico.
— Eu não consigo.
— Entendo... — Satoru uma cadeira que tinha de frente a mesa dele colocou diante da minha mesa, sentou-se e cruzou as pernas. — Você tem amigos?
— É um interrogatório?
— Não. Estamos apenas conversando para passar o tempo.
— Não tem trabalho, não?
— Tenho, mas temos tempo. Responde aí, você tem amigos?
— Eu tinha... antes do coma. Hoje em dia é como se eu nem existisse. Também não posso julgá-los. Pessoas morreram por minha causa. Duas colegas em coma, uma delas a minha ex melhor amiga, que por acaso namora meu ex. Uma bela bagunça. E você?
— Amigo mesmo eu tenho só um. Só que diferente de mim ele não quis ser professor. Ele sempre teve mais jeito com as pessoas.
— Com todo respeito, você não tem cara de professor.
— Me dizem isso com certa frequência. Eu tenho cara de que? Um ator bem bonitão?
— Eu prefiro não dizer minha sincera opinião. — Eu me preocupei com o treino do dia seguinte.
— Poxa... pensei que eu seria elogiado agora.
— Seu ego já é bem grande. — Eu disse já me arrependendo. — Sensei?
— Hum?
— Está com raiva de mim?
— Por que a pergunta?
— Porque me disseram que você pega pesado no treino quando está com raiva.
— Eu não peguei pesado, você que é muito mole. Eu ainda peguei muito leve com você. Pergunta o Hakari e o Yuta depois o que é treino pesado.
— Não vou querer saber.
— Não mesmo.
— Acha que eu vou conseguir?
— Vai sim. Mas você precisa de persistência. Só tenta não fugir... pode ser?
Eu abaixei a cabeça. — Sim.
Naquela noite eu fui dormir às quase duas da manhã, quando ele pediu que eu fosse para meu dormitório. Eu sentia uma coisa estranha. Era como se eu quisesse continuar ali, mas ao mesmo tempo eu sentia a necessidade de fugir dali. De sair de perto daquela escola.
Entre um cochilo e outro eu acordei com o celular vibrando. Era três da manhã, firmei o olhar para ver o número, mas parecia desconhecido. Quem me ligaria uma hora daquelas era minha dúvida. Atendi meio sonolenta.
— Alô? — Ouço um chiado estranho do outro lado da linha, como um barulho de furadeira. Não... parecia motorzinho de dentista. — Quem é?
— Você prometeu... — A voz do outro lado era indescritível. Uma mistura estranha de lamento e raiva. — Você prometeu... Você prometeu!
— Para com isso! Já não destruiu a minha vida o suficiente? Para! Para! Está me enlouquecendo!
Desliguei o celular e o coloquei de lado no criadinho. Escuto ele vibrar de novo. Eu tinha certeza absoluta que eu tinha desligado. Na tela começou a aparecer:
Você prometeu
Você prometeu
Você prometeu
Você prometeu
VOCÊ PROMETEU!
Era um sonho? Eu estava sonhando? Levei a mão à perna para me beliscar e lembrei do selo na palma da minha mão. Eu ia ter que dizer, mas não tinha outra alternativa.
— Sensei bonitão...
Não apareceu nada. Eu estava mesmo sonhando... Minha mão ardeu intensamente e de repente, olhei para o lado e vi um ser sem rosto. Eu tremia sem parar ainda sentindo a mão arder. O ser ficou maior, mãos e pernas compridas e um sorriso brotou em seu rosto. Eu tentei levantar da cama, mas eu não me mexia.
—A-ki-iraa — O ser soltou um som gutural. — Você prometeu...
— ME DEIXA EM PAZ!
O ser veio na minha direção e fui tomada pelo desespero. Quando ele se aproximou mais de mim cobri o rosto e senti meu corpo caindo, eu me vi deitada na cama. Minha alma presa por grossa corrente. Fui puxada de uma vez e caí. E tudo escureceu ao meu redor.
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