I know that you're wrong for me
Eles não foram muito longe quando uma chuva fina e cinzenta caiu sobre suas cabeças. Taehyung ergueu o rosto para o céu plúmbeo, sentindo centenas de pedacinhos de neve pousando em seu rosto, derretendo sobre seus cílios e bochechas úmidas. Piscou, lágrimas ressecadas e grudentas sobre a pele, a boca tão seca que mal havia saliva na língua para molhá-la. Ele a passou pelos lábios ressecados, buscando a umidade da neve na ponta rachada, mas o que sentiu foi um sabor amargo e arenoso que o fez cuspir.
"Não é neve", Jeongguk falou. Ele sentou ao lado de Taehyung na traseira do comboio e esteve calado até então, sacolejando contra seu ombro e o do soldado do outro lado conforme seguiam devagar pela estrada irregular que cortava o campo. "São cinzas."
Taehyung olhou para o céu novamente, piscando para o redemoinho de cinzas no vento. Imaginou qual devia ser o tamanho ou a quantidade de piras para queimar algo a ponto de fazer chover cinzas num campo tão extenso. Imaginou o que poderia...?
"Jeongguk", murmurou, a pergunta implícita na modulação de sua voz partida.
"O que mais tem numa guerra, Tae? O que você acha que haveria tanto para queimar?"
Taehyung estremeceu, sem forças. Ele perdera amigos. Perdeu sua família. E, no entanto, a guerra era uma sucessão de perdas sem fim, almas, vidas, corações, amores e lares. Cada perda abria um buraco em seu peito, e esse buraco crescia a cada dia. Ele se perguntou se ficaria tão grande quanto um buraco negro capaz de engoli-lo inteiro e transformá-lo em nada.
***
Jeongguk não falou mais com Taehyung até o anoitecer. Eles pararam no meio da estrada e ficou mais ou menos claro que passariam a noite ali, na beira de uma clareira que mais parecia um brejo. Não houve muita organização e na verdade ninguém esperava que houvesse, era apenas uma parada estratégica para se alimentarem, descansarem e seguirem. Alguns sentaram em volta dos tanques, expressões cansadas e nervosas, outros nem ao menos saíram de dentro deles.
Taehyung arrastou-se para longe do aglomerado de homens camuflados, deitou na relva ressecada e fechou os olhos, tão, tão cansado. Ele podia fugir, não era como se algum deles se importasse com um garoto morimbundo, mas ele também sabia que assim que ficasse de pé e corresse para o horizonte, levaria um tiro na cabeça. Além disso, Taeyeon precisava dele e somente Jeongguk sabia onde ela estava. Taehyung tinha que ficar com Jeongguk, segui-lo e obedecê-lo, pelo menos até ter a irmã consigo novamente.
Esgotado, Taehyung estava quase pegando no sono quando Jeongguk se aproximou e o cutucou nas costelas com a ponta do fuzil. Taehyung se remexeu e olhou em volta. Alguns homens os encararam com olhos turvos vazios, provavelmente acreditando que Jeongguk ia apenas fazer uso de seu novo brinquedo quando o garoto foi levando Taehyung para trás da pequena depressão ao lado da estrada, que na verdade era uma trincheira deixada para trás.
"Escute", ele sussurrou para Taehyung assim que se abaixaram atrás da trincheira, "não vamos ter outra chance, assim que amanhecer, o comboio vai partir e chegar na próxima vila, e soubemos que já há exércitos sul-coreanos fazendo resistência lá. Meu pai disse que aviões norte-americanos desceram mais ao sul na noite passada. Talvez todo mundo morra, eu e você principalmente", Taehyung escutou Jeongguk falar depressa e sem cerimônia e pela primeira vez viu diante de si um homem no corpo de um garoto, o verdadeiro filho de um general. Deus, ele não podia estar na guerra há muito tempo, mas sua mente já era a de um soldado, atenta e destemida, "Então, quando eu der o sinal, você vem comigo, entendeu?"
"Onde está Taeyeon?"
"Na floresta, perto do acampamento. Nós vamos voltar e pegá-la, e então vamos para o norte."
"Ela está bem?"
"Espero que sim", Jeongguk fez menção de ficar de pé para ir embora, mas a mão de Taehyung o agarrou pelo pulso e as solas dos coturnos de Jeongguk deslizaram de volta pela areia do barranco.
"Por que está fazendo isso?"
"Já falei, Tae", Jeongguk o encarou, testa franzida e a sombra da culpa nublando seus olhos redondos, "Não quero mais fazer parte disso."
"Então você deveria simplesmente nos matar e ir embora. Não foi isso que eles fizeram com aquelas mulheres?", Taehyung acusou. Não conseguia entender. O que fazia de Jeongguk alguém tão diferente daqueles homens que apenas matavam sem pensar duas vezes? O que existia em Jeongguk que ainda o tornava humano? Ele era um soldado, filho de um general do exército inimigo, cedo ou tarde isso simplesmente seria mais forte que a vontade de ajudar reféns.
Não era que Taehyung não acreditasse na bondade em Jeongguk, mas talvez aquele buraco negro que se alimentava da dor da perda estivesse enfim devorando a sua própria.
Jeongguk balançou a cabeça, o rosto esmaecendo em desânimo e frustração.
"Eu sinto muito", ele disse, desfazendo o aperto de Tae em seu pulso e ficando de pé, olhos brilhando com lágrimas que ninguém viu escorrerem.
Taehyung olhou por cima dos ombros, apenas para ter certeza de que não havia nada para levar consigo. O céu era da cor da barriga de um peixe morto. Não chovia cinzas, mas o ar cheirava a pólvora e sangue seco e a pradaria era tão silenciosa que o tempo poderia ter parado.
Eles andaram por horas, sem vontade de falar ou fazer qualquer coisa que não fosse seguir o mais longe possível do comboio. Taehyung às vezes sentia lágrimas quentes descendo pelas bochechas geladas, mas não conseguia realmente encontrar a causa delas. A tristeza era uma massa de pão fermentando e crescendo em seu peito. Tae fungou e as enxugou, e Jeongguk virou para checá-lo. Ele não fez nenhum movimento para consolá-lo, mas seus olhos ficaram tão carregados e sombrios quanto o céu.
Chegaram no acampamento abandonado ao anoitecer e ficaram na borda da floresta olhando para a clareira lá embaixo, o brilho da lua mal contornando as sombras. O coração de Taehyung disparou ao ver os rastros da grama batida, a lama mexida pelo peso de dezenas de botas. Estavam longe demais para enxergar os detalhes, mas o amontoado de corpos jogados num padrão alinhado como uma fileira caída de dominós era bem visível.
"Onde ela está?", Taehyung perguntou para Jeongguk, a primeira palavra que trocavam desde que deixaram o comboio. Sua voz cavernosa combinava com a morbidez de seu coração. Ele se voltou para a floresta atrás deles, "Taeyeon! TAEY-humpf!"
A mão de Jeongguk atingiu pesadamente a boca de Taehyung, em seguida o peso do garoto o empurrou contra uma árvore.
"Cale a porra dessa boca! Tem comboios por toda parte agora, estamos bem na rota da morte! Que inferno, Taehyung, que porra!"
Taehyung o mordeu, em parte porque seus nervos estavam em frangalhos, em parte porque precisava extravasar a frustração. Jeongguk chiou e praguejou, mas não o afastou. Para o total choque de Taehyung, Jeongguk passou o outro braço por suas costas e o apertou num abraço desajeitado. A respiração brumosa bateu no rosto de Taehyung e era apenas o quão próximos eles estavam, o ar frio gelando seus narizes e orelhas.
Taehyung esperou levar um soco, ele realmente esperou agressão e ódio, mas por algum motivo isso não era algo que Jeongguk possuísse. Ele era a coisa mais estranha que Taehyung já conhecera nesta guerra.
Sobretudo porque a voz de Jeongguk era quase suave quando falou em seus cabelos:
"Shh, está tudo bem, Tae, calma. Não me morda, vamos lá, solte."
Foi demais. O tom gentil na voz de Jeongguk, tudo que ele fizera para ajudar a ele e Taeyeon até agora, o único gesto de bondade humana que lhe foi oferecido desde o momento em que a morte entrou em sua casa. Taehyung soltou o dedo de Jeongguk, engasgando no próprio choro. Jeongguk apertou a mão machucada contra o peito e, respirando fundo, caiu de bunda no chão, o braço livre jamais soltando Taehyung.
Eles ofegaram, membros embolados em ângulos estranhos.
"Está escuro agora, não vamos achá-la..."
"Eu não vou deixar minha irmã sozinha por mais um dia, ela está com fome, com medo, pode estar ferida!", Taehyung chorou no pescoço de Jeongguk.
"Eu a deixei com provisões", a língua de Jeongguk estalou e a expressão dele torceu numa careta de impaciência, "Vai confiar em mim ou não, Tae? Taeyeon está bem. O mais provável é que tenha se embrenhado mais na floresta para se esconder dos comboios. Pela manhã vai ser mais fácil encontrar rastros, além disso, você..."
Taehyung esperou, os olhos de Jeongguk deslizaram por seu corpo e rosto quando enfim se soltaram.
"Eu o que?"
"Você está uma merda", Jeongguk disse com afeto evidente, o carinho em sua voz doce aquecendo as entranhas e a alma entorpecida de Taehyung.
***
Taehyung acordou com a boca pastosa com gosto de fome e os olhos doloridos e inchados. Tinha certeza que chorara tanto na noite passada que seu corpo não seria mais capaz de produzir lágrimas pelo resto da vida.
Fazia frio, principalmente agora que não havia o calor do corpo de Jeongguk para aquecê-lo. Sentou no chão de folhas secas e olhou ao redor, sem ver Jeongguk em parte alguma. Mas o casaco grosso dele ainda estava enrolado nas pernas de Taehyung.
Numa outra vida, antes de tudo isso, Taehyung, o camponês de bochechas rosadas e sorriso largo, teria corado lembrando como Jeongguk o abraçou e tentou o apertar com força suficiente para estabilizar os tremores de seu corpo, e como ele cantou alguma canção triste sobre despedidas numa voz tão suave que partiu os últimos pedaços do coração de Taehyung.
Numa outra vida, Taehyung teria deixado esse sentimento doce e carente guiá-lo, porque Jeongguk combinava muito mais com o calor dourado de sua antiga vida, o cheiro de pão recém assado e os jardins de liláses em torno de sua casa que com o cenário cinzento e frio desse pesadelo.
Nessa vida, Taehyung apenas aceitou, de forma interesseira e egoísta, tudo que Jeongguk lhe dava, porque precisava disso para sobreviver. A voz dele, as mãos gentis, o calor de um corpo. Jeongguk era um vaga-lume voando em torno da chama prestes a apagar. Taehyung era o parasita e Jeongguk o hospedeiro e era apenas sobrevivência.
Por isso, Taehyung levantou e andou mecanicamente pela floresta, chamando Jeongguk em sussurros partidos pelo frio e pela fome. Ele enfim o achou depois de dar voltas e voltas a esmo, as pernas o guiando sem direção. Jeongguk surgiu entre as árvores, cabelos torcidos sobre os olhos arregalados, rosto sujo e peito arfante. Ele não perguntou nada ao ver Taehyung simplesmente andar em sua direção e encaixar o rosto em seu pescoço.
Quando chegaria o momento em que o hospedeiro se cansaria do parasita e faria de tudo para se livrar dele?
"Encontrei pegadas indo para o Norte", provavelmente ainda não agora, porque Jeongguk enterrou os dedos nos cabelos embaraçados de Taehyung, puxando contra o peito o garoto envolto em trapos, "São pequenas e leves, com certeza são dela. É um bom sinal, ela não está indo para o sul. Isso é bom, Tae, ela está bem e está se afastando da rota de guerra. Entende isso? Ela está bem, ela vai ficar bem, nós todos vamos ficar bem."
Nós todos vamos ficar bem.
Taehyung fechou os olhos e permitiu que um pouco de alívio o acalmasse.
"Eu sei para onde ela está indo, Gukie."
"Para onde?"
"Para casa."
***
Eles definiram, meio à revelia, que a prioridade era se alimentar. Seus estômagos doíam.
Taehyung já nem lembrava mais como era a sensação de um pedaço de carne quente na boca, ou uma fruta fresca e doce. Seu estômago com frequência estava vazio, mesmo no acampamento, quando lhe davam refeições que mal cobriam o fundo do prato.
Eles atravessaram campos desertos, guiados pela posição do sol opaco no céu encoberto. Não era um dia bonito, mas ainda assim era menos cinza que o anterior, e quando Taehyung abriu a boca e respirou, o ar em sua língua tinha gosto de pólen e algo rançoso e salgado como salmoura.
"Você acha que encontraremos alguma vila no caminho?", perguntou a um Jeongguk distraído que caminhava mais adiante. O garoto parou, olhou para trás e esperou Taehyung alcançá-lo.
"É provável que apareça alguma até o anoitecer. Está sentindo isso?", ele apontou para cima e Taehyung franziu a testa em interrogação. "O cheiro do mar."
Ah. Então era isso. Taehyung abaixou a cabeça e mordeu o lábio, constrangido.
"Não vi o mar muitas vezes. Cresci perto dos campos e dos rios. Eles tem um cheiro doce e lodoso, nada parecido com esse odor salgado."
Jeongguk o observou intensamente, e mesmo que Taehyung não estivesse vendo, sentiu o interesse do garoto queimando em seu rosto como uma mão quente o acariciando.
"Como é onde você cresceu, Tae?"
"Bom", Taehyung ergueu o rosto e piscou para o céu, não querendo lembrar de sua mãe e da vida que tinha antes de tudo desabar. Ela estava bem? Estava esperando por ele e Taeyeon?, "E você? Como era onde você cresceu?"
"Ruim", Jeongguk deu de ombros para a expressão surpresa de Taehyung. "Sabe, ser filho de um general é apenas... rigoroso. Horários rigorosos. Rotina rigorosa. Não é exatamente divertido. Meu quarto não tinha brinquedos. Quer dizer, eu tive brinquedos, até que um dia meu pai decidiu que eu não precisava mais deles, que eu não tinha mais que ser criança e era hora de crescer."
"Quantos anos você tinha?"
"Cinco", e então Jeongguk suspirou, "Bom, pelo menos ele me deixou brincar de batalha naval até os dez."
Ele sorriu, mas como todos os sorrisos que Taehyung vira no rosto de Jeongguk até agora, este também era vazio.
"E a sua mãe?"
Outro dar de ombros. Taehyung começava a perceber que Jeongguk fazia muito isso quando queria forçar indiferença.
"Ela morreu de hepatite quando eu tinha onze anos. Mas tenho certeza que, onde quer que esteja, está bem melhor que a gente."
"Ela deve ter sido uma boa mãe", Taehyung disse, "Porque... Você é uma boa pessoa."
"E sabemos que isso não pode ter a ver com meu pai, não é?", Jeongguk devolveu com acidez.
"E ela também deve ter sido uma pessoa carinhosa", não quis acrescentar que era porque Jeongguk era tão desconcertantemente afetuoso que era improvável que tivesse herdado esse traço de personalidade do general Jeon, mas ambos já estavam alinhados o suficiente para entenderem nas entrelinhas das palavras um do outro.
"Tae", Jeongguk disse depois de um momento de silêncio, "não acho que será dessa vez que você verá o mar."
"Não?"
Ele apontou para a direita, na direção onde o céu era mais escuro.
"Aquilo ali, no ar? Fumaça. As cidades do litoral foram invadidas. Vamos evitar as praias."
Jeongguk mal terminou de dizer isso e eles ouviram o eco distante de rajadas de tiros. Taehyung congelou no lugar, o coração perdendo uma batida. Jeongguk também ficou imóvel, ambos paralisados na pradaria aberta feito cervos assustados.
"No chão", Jeongguk ditou num sussurro e no segundo seguinte eles estavam de barriga na terra, rostos voltados um para o outro. Taehyung escutou o tambor de seu peito batendo contra o solo e oprimindo seus pulmões.
Os olhos de Jeongguk estavam tão abertos que Taehyung jurou enxergar o próprio reflexo neles. As bocas abertas, pálidas como a dos mortos, secaram, e cada estalo de tiro distante parecia mais próximo, ou era apenas o horror deles tornando a coisa em si pior do que era.
Durou horas. Estações inteiras. Taehyung chorou em silêncio e rezou. Os tiros ficaram mais próximos, gritos tão distorcidos que não podiam sair da boca de um ser humano. O silêncio que seguiu depois foi ensurdecedor. Taehyung se perguntou se estava enlouquecendo, porque podia sentir a pressão de algo ruim, algo macabro, dançando no ar ao seu redor. Mais tiros. Às vezes Taehyung abria os olhos e fitava o rosto de Jeongguk, e ele não podia acreditar que isso estava mesmo acontecendo. Que eles iam morrer. Que o mundo inteiro ia acabar.
Então, os tiros ficaram cada vez mais espaçados. O vento levou as rajadas embora, até que não havia nada além de um imenso silêncio árido.
Jeongguk virou de barriga para cima e passou minutos inteiros olhando para as nuvens se arrastando pelo céu. Ele piscou devagar, olhar vidrado, e Taehyung se perguntou se o soldado também vira a própria morte pairando acima de seu corpo como um abutre. Um rastro se formava do canto do olho de Jeongguk até a têmpora, onde uma lágrima riscava lentamente sobre a sujeira em sua pele. Taehyung não falou com ele, não o tocou, eles permaneceram em silêncio, corações palpitando depressa. Nesse silêncio, compartilhando o medo, o horror e o alívio, sem dizer uma só palavra, eles falaram a mesma língua.
Jeongguk enfim esfregou os olhos com as costas das mãos e ajudou Taehyung a levantar. Ambos levaram ainda algum tempo sentados antes que suas pernas voltassem a firmar e pudessem ficar de pé.
"De agora em diante, só vamos andar de noite", Taehyung disse, a voz partida, e Jeongguk não teve a menor intenção de contestá-lo.
***
Eles se afastaram da rota da morte, como Jeongguk chamou, o que foi muito difícil, porque havia tropas e comboios em todos os lugares. No litoral. No interior. Para cima e para baixo. Eles se moviam como um formigueiro, fileiras extensas de exércitos que Taehyung e Jeongguk avistavam ao longe, escondidos atrás das moitas.
Mas Jeongguk e Taehyung aprenderam depressa a seguir os sons dos animais; o silêncio não era bom. Significava que houvera tiros e a presença humana passara por ali, assustando os pássaros. E assim, iam aonde havia pássaros e, de noite, guiavam-se pelo uh-uh das corujas.
Encontraram casas abandonadas no caminho, fazendas inteiras deixadas para trás, seus habitantes assustados demais para insistirem em ficar.
Numa delas, eles passaram uma noite e um dia, exaustos demais para andar um metro sequer. Comeram o que encontram, latas de conserva, restos de pão mofados e comida estocada. Jeongguk até mesmo olhou desejoso para o galinheiro nos fundos da casa, e Taehyung o imitou, a boca enchendo de água.
"Você mata", ele sentenciou. Jeongguk engoliu em seco e, após um instante de hesitação, começou a erguer o fuzil na direção de uma das galinhas. Ela parou de ciscar, ciente do perigo, e virou a cabeça para encará-los de lado. Taehyung deu um tapa na mão dele. "O que você está fazendo?"
"Você disse para eu matá-la!", Jeongguk defendeu-se, olhos enormes que o faziam parecer inocente, apesar da arma letal engatilhada nas mãos.
"Sim, mas...", Taehyung olhou para a galinha, que parecia interessada na discussão, uma das patas erguida no ar em expectativa, "Eu não sei, pensar em matá-la e comê-la está me dando ânsia de vômito."
Ele comia carne. Sua família criava porcos e galinhas e ele jamais tivera problema em comê-los, especialmente quando iam parar nos caldos e sopas de sua mãe. Mas era diferente agora, o sangue, o cheiro da morte, a carne crua... Ele mal conseguia suportar.
Jeongguk fitou Taehyung com compaixão, compreendendo tudo. Desceu o fuzil e girou a alça para acomodá-lo de volta nas costas. Apertou gentilmente o ombro de Taehyung.
"Está tudo bem, podemos comer as conservas. Não tem problema, Tae."
Taehyung fungou, voltando o corpo para Jeongguk a fim de aninhar-se em seu pescoço. Como uma engrenagem única, o braço de Jeongguk esticou, a mão cavando na nuca do garoto e puxando-o para si.
"Sinto muito", o garoto soluçou. Jeongguk sequer ligou para a umidade das lágrimas dele em sua pele.
"Está tudo bem, vamos encontrar outra forma, não se preocupe."
***
Fazia frio, cada dia mais frio, mas eles tiraram as roupas imundas e tomaram banho ao ar livre na tina que encontraram do lado de fora. Tiritando e xingando, revezaram os baldes e o único sabonete ressecado que acharam.
Taehyung se contorcia de frio ao estapear as coxas cheias de sabão. Jeongguk esperava sua vez, mãos enfiadas debaixo das axilas e lábios arroxeados, olhos arregalados atentos aos movimentos de Taehyung.
Jeongguk já vira muitos homens despidos. Era comum nos acampamentos, nos treinamentos, quando precisavam conviver e dividir banheiros. Então, não era como se estivesse desconfortável com a situação.
Acontece que Taehyung era diferente. Havia uma inocência dócil nele, em seus olhos, no modo como se alegrava com coisas insignificantes, como quando acordaram numa manhã sem névoa, e Jeongguk levou algum tempo recuperando-se do susto de não encontrar o garoto dormindo ao seu lado, surpreendendo-o minutos depois deitado na relva do lado de fora da casa, peito despido, olhos fechados e braços, respirando o sol, embora fizesse um frio de dez graus. Jeongguk não conseguia esquecer como o peito de Taehyung subia e descia depressa, como se estivesse em êxtase. Fez Jeongguk imaginar como tinha sido a vida de Taehyung antes.
Ele vira a morte. Corpos empilhados, rostos que um dia conhecera que jamais voltariam a sorrir. Ele fora agredido e humilhado de formas horríveis. E, ainda assim, respirava o sol.
E era fascinante para Jeongguk ver que esse garoto estranho também era desejável. Que por baixo dos trapos e da magreza frágil, havia músculos fortes saltando conforme ele se movia, pelos finos sobre a pele lisa e macia das canelas.
"Você é forte", ele disse, ou ao menos foi o que Taehyung conseguiu entender entre dentes batendo. Eles trocaram um olhar desconcertado, e Jeongguk acrescentou antes que fosse tarde demais: "Forte o bastante para segurar uma arma."
Taehyung não respondeu, mas entregou o sabonete a Jeongguk e foi sua vez de observar o garoto. Nunca se achara um garoto acima da média no quesito beleza, mas não era como se tivesse tido outros parâmetros de comparação. Os homens e garotos da vila onde ia comprar alimentos eram em sua maioria, comuns. Às vezes alguém lhe dizia que ele tinha um rosto bonito (sua mãe e Taeyeon), e uma vez uma senhora na loja de aviamentos lhe disse que ele tinha belas mãos, o que para Taehyung significava dizer que eram limpas.
Jeongguk talvez fosse o primeiro contato físico que Taehyung tinha com outro homem, e olhando-o completamente nu agora, ele se via avidamente prestando atenção aos detalhes. Não havia muita novidade na parte superior; ele já vira Jeongguk se exercitando sem camisa, embora a luz do dia revelasse um peitoral e uma cintura que Taehyung gostaria de um dia tentar traçar no papel. A parte inferior era apenas quadris estreitos e pernas muito longas e densas, joelhos afiados e uma profusão de pelos pubianos cobertos de espuma.
Jeongguk era uma visão agradável. Taehyung observou as bochechas dele ficarem coradas. Fazia sentido, estava muito frio.
"Posso lavar seu cabelo?", ofereceu-se.
Jeongguk deixou o sabonete cair, olhos voando depressa para os de Taehyung.
"Por quê?"
"Parecem macios", Taehyung disse gentilmente, abaixando-se para pegar o sabonete que escorregara até seus pés. "Eu costumava lavar os cabelos de Taeyeon quando éramos crianças."
Isso pareceu servir como explicação, porque Jeongguk assentiu, o frio agora mordendo suas orelhas. Taehyung apontou o pequeno deck ao lado a bica, então sentou-se ali e afastou as pernas, sorrindo ingenuamente esperando que Jeongguk acomoda-se entre elas.
Jeongguk achou que ia queimar em combustão com a força que fazia para não olhar demais para nenhum lugar inapropriado em Taehyung, embora a posição do garoto fosse desconcertantemente explícita. Não queria ofendê-lo nem parecer pervertido, uma vez que para Taehyung esse era obviamente um gesto sem malícia. Desajeitadamente, virou de costas para Taehyung e abaixou-se entre as pernas dele, usando os joelhos do garoto como apoio quando quase escorregou nas pedras molhadas cheias de sabão.
Taehyung pegou o sabonete e o esfregou entre as palmas até criar espuma, então deixou-o de lado e enterrou suavemente os dedos no couro cabeludo de Jeongguk, as pontas começando a massagear sem a menor pressa.
Jeongguk fechou os olhos e suspirou. Mal podia lembrar quando fora a última vez que o tocaram assim, provavelmente quando sua mãe ainda era viva e ele era uma criança.
"Hmm", Taehyung arrulhou, "Sim, é muito macio."
Jeongguk sorriu ao escutar o timbre rouco borbulhante atrás de si.
"Relaxe o pescoço, Gukie", Tae pediu e Jeongguk sorriu largo com o apelido. Já estava familiarizado o suficiente com Taehyung para saber, mesmo sem ver, que ele fazia um bico manhoso pela forma como arrastou a última sílaba.
Jeongguk relaxou nas mãos de Taehyung, o garoto tinha um dom, uma mão leve apesar de firme. Era tão bom que, sem querer, Jeongguk gemeu, mas antes mesmo que tivesse tempo de se horrorizar com o som obsceno, Taehyung riu e estendeu a massagem para o pescoço e ombros.
"É muito bom", Jeongguk murmurou, olhos fechados. Tinha recostado em Taehyung, as costas largas acomodadas entre as coxas quentes do garoto e era maravilhoso. Taehyung sentou mais para a beirada do deck, permitindo que Jeongguk tivesse mais apoio para se inclinar sobre seu peito, se quisesse, o que Jeongguk fez de bom grado, braços envolvendo os joelhos de Taehyung confortavelmente. "Deus, estou vendo o paraíso."
Taehyung riu outra vez, satisfeito com o elogio.
"Minha família tem uma padaria", confessou a Jeongguk. "Hm, tínhamos. Eu sovava o pão."
Jeongguk assentiu, sem muita vontade de conversar. O silêncio em torno deles era bom, tão diferente do silêncio modorrento após uma rajada de tiros, e o calor do corpo de Taehyung atrás de si, junto com a massagem, o deixava sonolento. Ele nem se importou quando Taehyung passou a brincar com as mechas de seu cabelo, espetando-as para cima e para os lados em penteados bizarros.
Quando o frio os obrigou a entrar, Jeongguk tirou o sabão do corpo e dos cabelos e correram nus para dentro da casa. Não sabiam quem habitara o lugar antes, mas pelas porcelanas antigas e as roupas cerimoniais na gaveta, talvez fossem pessoas mais velhas.
Encontraram um par de hanbok. Ainda que não fosse a escolha mais confortável, era melhor que usar as roupas sujas. Taehyung e Jeongguk olharam-se sem jeito ao terminarem de se vestir.
"Provavelmente levaram o resto das roupas quando abandonaram a fazenda", Jeongguk puxou o assunto. Na penumbra do início da noite, os olhos dele deslizaram pelo hanbok de Taehyung, o jeogori azul profundo sobre baji cor de chumbo. O tecido acetinado capturava a luz das lamparinas como o oceano sob a lua. "Ficou bem em você."
Taehyung sentiu as orelhas esquentando. Os olhos de Jeongguk eram bonitos e intensos nos seus. O súbito calafrio na barriga de Taehyung o impediu de devolver o elogio.
O hanbok de Jeongguk era lilás, com mangas brancas e baji cinza claro. O soldado parecia uma pessoa inteiramente diferente sem as vestes camufladas do exército.
Não podiam acender uma fogueira no lado de fora, ou corriam o risco de chamar atenção, tampouco podiam acender a lareira no lado de dentro por igual razão, a fumaça certamente acusaria moradores ali. Então, depois de jantarem as latas de conserva que acharam na dispensa, Taehyung fechou as janelas e acendeu mais velas. Eles deitaram no chão do pequeno quarto, envoltos em cobertas. Com as barrigas finalmente cheias, as peles limpas e o corpo aquecido, eles imediatamente dormiram.
***
Taehyung acordou algumas horas depois com o ruído de gemidos e lamentos. Espiando para fora da coberta, viu o rosto de Jeongguk contorcido em aflição, olhos fechados, uma fina camada de lágrimas molhando embaixo dos cílios.
"Não quero. Por favor, não me obrigue, não... Eu não quero!", ele soluçava, dedos agarrando as cobertas com força.
Taehyung empurrou os quadris para junto dos dele, abraçando as costas de Jeongguk. Puxou a própria coberta até que fizesse uma proteção dupla com as cobertas do outro. Com cuidado para não acordá-lo, colocou um braço por baixo da cabeça do garoto e o envolveu no próprio calor.
Jeongguk suspirou, os soluços acalmando. Taehyung custou a pegar no sono de novo.
Quando acordou outra vez, a luz azulada do início da manhã entrava pelas frestas. Ele não sentia o braço que ficara por baixo de Jeongguk, a sensação engraçada de que não tinha ossos o fez chiar conforme puxava o membro. Mordeu o lábio para sufocar a dor do sangue correndo pelas veias novamente.
Jeongguk dormia relaxado, cabelos escuros desgrenhados, a expressão tão serena que era até infantil. Taehyung engoliu em seco, ciente da respiração quente e pacífica de Jeongguk, passando entre os lábios entreabertos e roçando perto de sua bochecha.
Ele não soube porquê as palavras meu anjo vieram tão fáceis na ponta de sua língua. Tudo que Taehyung sabia era que, contra todas as probabilidades, estar no abraço de Jeongguk cada vez mais parecia como estar em casa.
***
"O que você vai fazer depois?", Taehyung perguntou. Eles estavam andando perto do fim do dia, tendo deixado a fazenda abandonada pouco antes do pôr-do-sol. Jeongguk estava muito calado. Ele não era exatamente um falador, e Taehyung achava que nem precisava; ele lia Jeongguk inteiro só de olhá-lo. E ele podia dizer agora que o soldado estava preocupado.
Além disso, antes de pegarem a estrada novamente, tiveram uma pequena discussão em que Jeongguk insistiu que usaria o uniforme de soldado da Coreia do Norte, pois seria mais seguro se encontrassem comboios descendo para o sul, no que Taehyung reclamou que não gostava da ideia, pois podiam topar com soldados da Coreia do Sul, e seriam abatidos sem nem terem chance de explicar.
Jeongguk venceu. Então, Taehyung não fazia ideia do que o incomodava agora.
"Hm?"
"Depois que chegarmos em casa, o que você vai fazer?"
"Vou levar você em segurança", Jeongguk respondeu, disperso.
"Eu sei. Mas e depois, o que você vai fazer?"
"Tentar não ficar na rota da morte. Tentar sobreviver. E então, quando tudo isso acabar, vou abrir um restaurante."
"Ah", Taehyung exclamou, excitado, "Onde?"
"Não sei. Acho que não aqui. Eu... não acho que sobrará muitos lugares para ir depois que... Escute, Tae..."
"Você pode ficar com a gente, sabe? Taeyeon é uma boa cozinheira, ela pode ensinar muitas coisas. E omma é muito boa com doces", Taehyung mal conseguiu conter a ansiedade, as palavras se atropelando com a pressa que sentia em contar tudo a Jeongguk, como sua família o adoraria e ele adoraria elas, "Ah, eu vou pedir para ela preparar bolinhos para você! Acha que falta muito para chegarmos? Você acha que Taeyeon foi mais rápida que nós? Eu não percebi que tínhamos andado tanto no comboio."
"Estávamos sobre rodas", a voz de Jeongguk era lacônica, quase entediada, mas Taehyung imaginou que podia ser apenas cansaço.
"As pernas de Taeyeon não são tão longas quanto as nossas, isso conta, certo? E ela pode ter parado mais vezes. Quem sabe encontrou uma vila segura. Mas eu sei que ela irá para casa, ela sabe que eu vou encontrá-la lá."
Jeongguk não respondeu, mas olhou com olhos turvos e testa vincada para o horizonte escurecendo.
***
O que Jeongguk não falou, o que ele jamais falaria para Taehyung, era que todo homem que vai para guerra encontra, cedo ou tarde, duas coisas no caminho; uma delas é a morte. A outra é o desencontro.
Eles chegaram na fazenda de Taehyung quando a lua cheia estava alta no céu. Jeongguk observou Taehyung correr e entrar na casa completamente escura. Jeongguk ficou para trás, parado na relva ressecada, olhando a pequena casa aninhada entre as flores. Jeongguk não soube quando percebeu, quando entendeu que devia se preparar para lidar com a dor de Taehyung, porque o que quer que ele encontrasse em casa, não seria igual ao que deixara.
Por um momento, foi apenas o silêncio novamente. Nenhuma luz acendeu dentro da casa, nenhuma exclamação de alegria. Apenas sereno e vazio.
Então, Jeongguk entrou na casa. Achou Taehyung ajoelhado no chão ao lado de um corpo. Não precisava perguntar quem era, e não importava. Jeongguk abaixou-se atrás dele e o abraçou pelos ombros, sem se importar com o cheiro insuportável do cadáver em seus braços. Ele apertou Taehyung, que apertava aquele corpo que não era mais nada, ele o apertava como se fosse tudo. E Jeongguk o abraçou e suportou todo o peso de Taehyung, e afinal Taehyung descobriu que ainda tinha muitas, muitas lágrimas para chorar.
***
Jeongguk deu a Taehyung dois dias. Eles enterraram o corpo da mãe dele no campo, a um quilômetro da casa, onde lilases cresciam livres ao sol.
Não sabiam ao certo o que afinal acontecera com a senhora Kim, seu corpo estava intacto, sem marcas de tiros ou de agressão, e na primeira noite que passaram em casa, Taehyung murmurou para Jeongguk, ambos embolados no colchonete em seu no antigo quarto:
"Acho que o coração dela parou. Não existia mais nenhum motivo para ele bater."
"Ela não tinha como ter certeza de que vocês estavam mortos", Jeongguk tentou consolá-lo.
"É só o que existe agora. Morte e perda. Por que ela esperaria algo diferente?"
Jeongguk não respondeu, porque Taehyung enfim sabia o que era viver uma guerra. Mas ele apertou Taehyung contra seu peito uma vez mais e o beijou delicadamente na testa e nos cabelos até sentir Taehyung adormecer no casulo do calor de seus corpos.
Olhou para o rosto cansado de Taehyung. Esfregou a pequena ruga de estresse na testa do garoto até desfazê-la. Com o coração trêmulo e inchado, beijou a bochecha úmida de Taehyung.
Sim, havia algo terrível acontecendo lá fora. Algo maior que eles. Mas Jeongguk se viu desejando apenas ser capaz de levar Taehyung para um lugar onde ele pudesse deitar na grama e respirar o sol.
Mas Jeongguk sentiu-se egoísta por desejar o prazer de ser feliz com Taehyung enquanto tantas pessoas morriam em torno deles. Olhou para a boca de Taehyung, o volume macio dos lábios, e enojou-se por querer desfrutar da felicidade fútil de amar outro garoto quando tantas famílias se separavam.
Porque isso era novo para Jeongguk. E isso não pertencia à guerra.
***
O dia seguinte foi estranho. Taehyung não chorou, tampouco gritou ou fez qualquer outra coisa. Nem mesmo olhou Jeongguk nos olhos e, quando Jeongguk o levou para fora para que praticassem tiro, Taehyung não mostrou nenhuma resistência.
"Sei que é estranho, Tae, mas precisa aprender a se defender", Jeongguk disse, ajudando Taehyung a ajustar o fuzil.
Ambos sabiam que era inútil se Taehyung não tivesse uma arma, mas, mesmo assim, Taehyung não contestou. Ele parecia não ter energia ou vontade para fazer coisa alguma.
"Certo", Jeongguk apontou para o alvo que improvisar, uma lata vazia de conserva sobre um toco. "Aqui você mira. Tente encaixar a mira no alvo. Mantenha o ombro firme, você vai sentir o solavanco quando disparar. Está pronto?"
Taehyung não respondeu.
"Vou contar. No três, ok? Um..."
PÁ.
Taehyung disparou. A lata voou longe, um buraco imenso perto da base. Jeongguk o encarou, boquiaberto.
"Isso foi bom", disse. Taehyung abaixou a arma, olhos fixos no nada. "Tae, alguma vez pegou numa arma?"
Por um instante, Taehyung pareceu que ia chorar. As extremidades de seus olhos enrugaram e eles brilharam cheios de umidade. Mas nenhuma lágrima rolou e ele devolveu o fuzil para Jeongguk.
"Não. E quero continuar assim", disse e, com isso, voltou para a escuridão da casa.
***
"Tae, temos que ir. Estamos na rota", Jeongguk surgiu na porta do quarto e olhou para um Taehyung embolado nas cobertas, rosto inchado e olhos mortiços voltados para a janela. Ele não comera nada desde que chegaram.
"Não."
"Tae, eles não vão parar de descer. Estamos bem no meio da rota. Por que você acha que..."
"Taeyeon está vindo. Ela vai chegar e se não encontrar ninguém aqui, ela não vai saber para onde ir."
Jeongguk passou as mãos pelo rosto, esfregando com força. Ele não sabia mais o que fazer com Taehyung. Não sabia como fazê-lo entender que corriam perigo e que ficar não ia salvar Taeyeon, ia apenas colocá-los mais perto da morte.
"Não podemos ficar aqui, Tae."
"E para onde nós vamos?", a pergunta de Taehyung soou como uma acusação e Jeongguk recuou, atento. "Nós nem temos para onde ir, Jeongguk!"
"Talvez algum parente distante?", Jeongguk sugeriu, pego de surpresa pela reação de Taehyung, que tossiu uma risada feia.
"E encontrar mais morte? Eu não suporto mais ver morte, Jeongguk!"
"Podemos deixar uma carta para Taeyeon", Jeongguk insistiu, porque ele precisa convencer Taehyung a saírem dali. "Diremos a direção, e ela nos encontrará."
Taehyung jogou as cobertas para o lado e sentou, o rosto ganhando vida e surpreendendo Jeongguk, porque ele não fazia ideia que Taehyung pudesse olhá-lo com tanta mágoa.
"Foi exatamente a mesma coisa que você disse quando saímos do acampamento, e depois da floresta!", ele apontou um dedo acusador para Jeongguk, "Que ela estava bem, que a encontraríamos, mas eu continuo sem saber o que aconteceu com a minha irmã, Jeongguk! Eu nunca devia ter confiado a vida dela a alguém que eu nem conheço!", ele puxou os cabelos, olhos ejetados voltando-se para Jeongguk com uma luz afiada, "Você disse que viu pegadas, mas será que viu mesmo? Eu só tenho a sua palavra, a palavra do filho do general que destruiu a minha vida!"
"Eu tentei salvar Taeyeon!", Jeongguk jogou as mãos para o alto, o sangue esquentando no rosto e no peito, "Não acredito que está insinuando que eu...?"
"Eu acreditei em você!", Taehyung gritou, olhos brilhando com lágrimas de raiva, a voz assumindo um grave intimidador, como uma bomba caindo entre eles. O queixo de Jeongguk despencou.
"Tudo que tenho feito até agora é acreditar em você, e isso me trouxe para uma casa vazia! Se eu tivesse feito como queria, se tivesse simplesmente fugido com Taeyeon daquele acampamento, ou ficado para procurá-la na floresta, eu teria minha irmã agora, eu teria uma família!"
"Você é tão hipócrita!", Jeongguk sentia as pernas fracas, como se tivesse tomado uma rasteira por trás.
"Eu teria pensado num plano! Qualquer coisa é melhor que isso!", as lágrimas feriam o rosto de Taehyung e ele apertou a camisa no peito como se tentasse arrancar fora o próprio coração, "Qualquer coisa é melhor que confiar no inimigo."
"Inimigo?", Jeongguk quase riu.
"E talvez aquelas pessoas, todas aquelas mulheres inocentes que morreram por um capricho do seu pai por serem nada além de um brinquedo para você, talvez elas estivessem vivas agora! Você ao menos se importa?"
"Você sabe que sim! Taehyung, eu o odeio, mas eu não posso desfazer os erros do meu pai ou carregar a culpa por eles pelo resto da vida!"
"TALVEZ VOCÊ DEVA!"
"VOCÊ TERIA MORRIDO, PORRA!"
"VOCÊ NÃO TEM COMO SABER!"
"Eu não tenho?", Jeongguk fechou os punhos, fora de si, palavras sendo empurradas em sibilos por entre os dentes cerrados, "Meu pai matou quinhentas e noventa e cinco pessoas antes de arrancar você e sua irmã dessa casa e ele nem ao menos tinha chegado na metade do caminho. Você realmente acha que teria sobrevivido por causa do seu rostinho bonito? Eles teriam esmagado você, Taehyung, estuprado você e Taeyeon enquanto fumavam e jogavam poker!"
"Não. Eu teria encontrado um jeito, eu sei que teria."
"Eles iam fazer exatamente isso se eu não tivesse protegido você e sua irmã! Eles passariam você de um em um até que você implorasse para morrer. Quanto tempo você acha que aguentaria? Quanto tempo acha que Taeyeon aguentaria?"
"VÁ EMBORA!" Taehyung ficou de pé num salto, e no segundo seguinte as mãos grandes de Taehyung empurravam seu peito com força. O ar fugiu dos pulmões de Jeongguk e ele agarrou os pulsos de Taehyung para não cair. "Me deixe sozinho, eu não quero mais as merdas das suas promessas, da sua proteção, E EU NÃO PRECISO DE VOCÊ!"
Ele não conseguia acreditar que estava ouvindo isso de Taehyung, seu único amigo naquele inferno, a única pessoa com quem ele se importou o bastante para ficar.
E ele o estava mandando embora.
Não valia nada se importar com alguém. Ele teria ficado se Taehyung pedisse desculpas. Teria ficado se Taehyung dissesse que era mentira, que ele era um bom amigo, uma pessoa boa, alguém que ele precisava.
Mas eles se olharam, Taehyung ofegando, dedos pressionando o peito de Jeongguk, rosto contorcido de raiva e dor e Jeongguk esperou. Esperou.
"Você quer que eu vá embora?"
"Achei que podia ser seu amigo. Que o fato de você ser quem é não significava tanto assim, mas eu não consigo", um sussurro. As longas mechas de cabelo avelã cobrindo os olhos cheios de lágrimas de Taehyung. "Eu perdi tudo que amo por causa dos seus. Você é o que é. Vá embora, Jeongguk."
Jeongguk afastou as mãos de Taehyung, pegou seu casaco e saiu pela porta.
O antigo relógio de parede da família Kim bateu duas vezes. Tic tac. Tic tac. Silêncio. A ausência completa de Jeongguk, seu cheiro, sua voz, seu rosto bonito e o calor de seu abraço.
Então, Jeongguk surgiu novamente pela porta e o coração de Taehyung disparou; porém, o soldado apenas parou no vão, passou a alça do fuzil pela cabeça e o encostou na parede. Com um último olhar para Taehyung, Jeongguk saiu novamente e, dessa vez, não voltou.
Taehyung olhou ao redor. Ele crescera ali. Conhecia cada canto daquela casa, e ele a amava. Então, por que agora ela parecia tão estranha e sem conforto? Por que ele não conseguia mais estar ali e sentir-se em casa?
Triste, encarou a porta aberta por onde Jeongguk acabara de passar.
E soube a resposta.
***
Taehyung observou a geada fina encobrindo a pequena plantação de alface ao lado do terreno. Ele deveria cobri-la, mas não fazia sentido, se não haveria mais ninguém para colhê-la.
Antes que o sol subisse muito no céu, arrumou sua antiga mochila escolar com provisões e saiu para procurar Taeyeon.
Dois dias depois, tendo quase dado de cara com um comboio cheio de refugiados que subia pela rota, Taehyung voltou. Sem Taeyeon.
Não queria admitir que a irmã se perdera. Ainda acreditava que Taeyeon encontraria o caminho de casa, mas até então ele não tinha se perguntado: e se ela encontrasse? E se ela chegasse ali, o que restaria então? Cuidar de uma horta? Esperar que mais soldados viessem para dar a ela a humilhação e o sofrimento do qual Taehyung tanto tentou protegê-la?
Fazia quatro dias que Jeongguk se fora. Quatro dias que expulsara de casa e da sua vida umas das poucas pessoas gentis que conhecera, além de sua omma e Taeyeon. Bem, havia Hyejin e Jieun, mas elas não estavam mais aqui.
Ele sentia falta de Jeongguk. Dormia e acordava com a sensação horrível de que estava fazendo a pior escolha possível e cada hora que passava a dor em seu peito piorava.
Não era justo puni-lo pelos erros de seu pai e Taehyung sabia disso. Ele estava tão machucado quando disse todas aquelas coisas horríveis para Jeongguk, mas no fundo sempre soube que o garoto não as merecia.
E ele confiava em Jeongguk. Era uma fé estranha, como a de saber que Taeyeon estava viva, mesmo sem nenhuma prova.
Onde ele estava agora? Taehyung descobriu que não suportava a ideia de um mundo sem Jeongguk, ou de um futuro em que os olhos dele ainda fossem embaçados de culpa. E se ele estivesse em apuros? E se nunca conseguisse realizar seu sonho de ter um restaurante e ser feliz?
Droga, ele até mesmo deixara o fuzil com Taehyung, sua única forma de defesa.
Olhou ao redor para a casa vazia cheia de lembranças de sua família. Ele tinha que continuar, mesmo sem Taeyeon. Taehyung enxugou as lágrimas. E Jeongguk não merecia viver com o peso daquelas palavras horríveis.
Foi no amanhecer do quinto dia que Jeongguk partira que Taehyung levantou da soleira da porta, onde passara a noite esperando Taeyeon, em vão. Escreveu uma carta para a irmã, como Jeongguk sugerira, mas como não sabia que direção iria, ele apenas pediu para que ela não ficasse ali, que seguisse o som dos pássaros e tentasse sobreviver.
Um dia.
Guardou suprimentos em sua antiga bolsa de escola, passou a alça do fuzil pelo pescoço e saiu em busca de Jeongguk.
_____
ansiosos para o próximo capítulo? vcs deveriam estar ;)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro