│9│equuleus
Está em nosso DNA?
Humanos não vão agir como sempre achamos que devemos
Nós podemos ser maus assim como podemos ser bons
...
— Eu não sou louco! — Bato o punho fechado contra a grade, ganhando apenas um novo revirar de olhos por parte de Jéssica.
— Bom, louco ou não, esse não é um bom plano. Quer dizer, você acha realmente boa a ideia de cortar a sua perna pra conseguir escalar?
— Se for pra te tirar daqui é uma boa ideia sim. — Corro os dedos pelos meus cabelos ensebados. Eu não sei quanto tempo passou, mas eu me sinto imundo vivendo neste buraco nojento.
— Me tirar daqui? Quem te elegeu a porra do Batman? Louis, querido, você não tem a obrigação de me salvar. — Ela se volta para mim com o rosto torcido e mais abatido do que algumas horas atrás. Está garota está definhando.
— Claro que tenho, eu fiz um juramento!
— Olha, eu te libero dele. Você não vai fazer nenhum sacrifício por mim, okay? — Jess se aproxima, dando alguns tapinhas em minha mão e arriscando um sorrisinho gentil que só aumenta a minha vontade de conseguir arrebentar aquelas barras e leva-la para bem longe disso.
Baixo os olhos, respirando profundamente.
Por que tudo tem que ser tão difícil?
Tremo de leve ao que sinto a unha pontiaguda de Jess se arrastando pelo meu pescoço.
— Olha, uma aranha te mordeu, quem sabe você vira um super herói nas próximas horas? Vamos esperar. — Comenta com bom humor, o que me leva a rir brevemente. Ergo o rosto encontrando o seu bastante próximo.
Ela é como luz em meio a toda treva.
— Existe uma saída. Daqui eu posso sentir uma corrente de ar, ela vem do sul. Se eu conseguir escalar e passar por aquela fresta posso te tirar daqui e te levar até a saída, podemos escapar, Jess.
— Eu sei que você é pequeninho. — Brinca — Mas não tem jeito de passar por um caminho tão estreito, você vai acabar se ferindo e...
— Eu só quero nos tirar daqui!
— Mas não vai! — Ela retruca com firmeza. Isso por algum motivo, provavelmente todo o estresse, me faz perder a linha completamente. Soco às grades que tremem com força, mas nada que arrisque uma queda, Jéssica salta para trás assustada.
— Qual é a porra do seu problema? Nós não podemos ficar aqui, se existe uma chance...
— Okay, então eu vou. — Jéssica se vira para a abertura no topo de sua cela, como se avaliando se daria certo ou não. A resposta era sim, porém, minha mente gritava NÃO.
— Não. — Rosno arranhando as barras de ferro.
Ela dá de ombros, diferente de mim não havia uma corrente em seu pescoço limitando seus movimentos. Para isso eu já estava a procura de um grampo para conseguir me livrar do problema, mas Jéssica não me deu tempo, ela estava colocando um pé sobre o outro e de repente já escalara mais da metade com facilidade embora a fraqueza de seu corpo.
— Jéssica, pelo amor de Deus! Não faça isso, ele pode te pegar.
Seus cabelos longos se remexem ao que ele escala mais um pouco.
— Você não parecia preocupado que ele te pegasse.
Meu peito queima pela impotência. Corro para a minha própria grade, tentando escalar como ela, mas antes que a minha coleira aperte a perna já está fazendo um ótimo trabalho em me manter quieto e moribundo no mesmo lugar.
— Eu sou um policial, fui treinado. Você é só uma garota, com uma vida incrível pela frente, não vale a pena se arriscar.
A garota para, ouço sua respiração profunda e seus olhos turvos e tristonhos caem sobre mim, uma última vez.
— Você tem filhos, um marido e um bebê a caminho, uma vida toda pela frente, não vale a pena você se arriscar. — Diz com a voz suave, um pequeno sorriso se molda em seus lábios de menina e ela completa: — Deixe-me salvá-lo.
— Eu não faria isso se fosse você. — Aquela frase me deixa confuso sem saber de onde viera e é quando capto a presença de Evangeline ao meu lado, pequena e taciturna, uma morbidez sinistra a cerca e de alguma forma me contagia com o pensamento de que o pior está por vir e então o som das botas desgastadas de Jess atingindo o piso duro do lado de fora ecoa pelo espaço.
Ela mal se aguenta em pé do lado onde não há grades e correntes. Ao contrário do que muitos fariam ela não toma um momento para respirar fundo e apreciar a liberdade, ao invés disso corre para a minha cela, forçando a fechadura.
— Eu vou procurar a chave, deve estar em algum lugar por aqui. — Me diz apressada, a presença de Eve é como uma nuvem negra escurecendo quaisquer expectativas que eu ousaria nutrir.
Jéssica vasculha às pressas algumas gavetas, em sua maioria vazias, ou com facas ensanguentadas que a levam a torcer a expressão em desgosto e repulsa. A sensação de agonia que vai subindo pela minha espinha chega a ser insuportável.
— Por favor, me esqueça, vá embora. Vai, eu te imploro. — Repito durante todo o tempo em que ela segue a procura da maldita chave.
— Nem fudendo, nós somos uma dupla, eu não vou sem você.
— Jéssica...
— Achei! — Grita de súbito dando alguns pulinhos com um molho de chaves em mãos, ela tropeça de volta até mim e encaixa a primeira chave na fechadura que sequer gira, ela vai para a próxima e depois para a próxima — Merda.
— Jess, só foge daqui. — Praticamente imploro prestes a ficar de joelhos pra ver se funciona. Ela nega, indo para a chave seguinte.
— Eu já disse, nós vamos conseguir, juntos, Tommo. Ah, espero que não se importe, eu te arranjei um apelido, detetive. — Sorri um pouco mais largo, o mesmo alcançando seus olhos que ostentam um leve brilho. A empolgação, a esperança queimam em seu interim, assim como a raiva e a angústia explodem no meu no momento em que vislumbro a imagem lúgubre surgindo dentre as sombras, ele é imenso em suas roupas negras, o que forra seus ombros é uma echarpe vermelha, cor de sangue e seus olhos não expressam suas intenções, mas é fácil de deduzir quais são.
Então me vejo num impasse.
Digo que um canibal com o dobro de seu tamanho e força, presumivelmente armado, está as suas costas, lhe dando a oportunidade de tentar escapar e acabar sendo pega no caminho por não saber como andar nos esgotos em meio a escuridão quando ele deve ser expert nisso ou eu só... Espero?
O quão hediondo tudo isso é?
Olho de Lucian que vem como um predador lento e silencioso e para Jéssica, ela é quase como um fantasma diante da ciência de que ela está condenada.
Eu só queria ter pulado antes, não ter dito nada e dado a oportunidade para que ela roubasse minha ideia. Eu falhei e ela pagará o preço.
Jess tenta uma nova chave e está vira, há o som da fechadura abrindo e os lábios se rompendo em uma breve comemoração.
— Nós cons–
Sinto o sangue que rompe de sua jugular espirrando no meu rosto e ela busca por mim, estica os braços tentando segurar minha mão, mas eu... Eu não consigo. Vou me afastando, afastando, afastando.
Ela grunhe, engasgando no próprio sangue com a lâmina brilhante atravessada em sua garganta. Não satisfeito, Lucian junta seu corpo as suas costas e vejo seus dedos se afundando nos glóbulos oculares dela, o sangue desce de lá também, suas mãos se movem desesperadamente um última vez, chamando por mim e finalmente caem.
Minhas costas batem na parede.
Lucian se afasta e ela despenca em frente ao meu calabouço, o sangue forma uma espécie de lago que vai deslizando para dentro. Ele a segura pelo tornozelo e vai puxando, a trilha vermelha é extensa até sua mesa longa de ferro fundido.
A cela está aberta, grita meu subconsciente, mas eu estou imóvel. Petrificado.
Ele a joga sobre sua mesa, o cabelo bonito cascateia e toca o chão embebido em plasma, dois buracos negros me olham de onde costumava ficar seus olhos expressivos e esperançosos.
O canibal não me dirige a palavra quando lança um olhar duro em minha direção e crava aquele mesmo punhal no peito de Jess, cortando centímetros e mais centímetros de pele. Não há o menor arquear de sobrancelhas ou contração dos músculos faciais ao separar suas costelas e recolher órgão após órgão, ele vai os depositando em recipientes de vidro e minhas pernas fraquejam e eu escorrego no chão. Lucian se afasta do corpo estripado da garota, as mãos grandes vem gotejando com seu sangue fresco, a luz amarela acima de seu ombro e toda a maldade que o envolve só me faz vê-lo como uma espécie de demônio. Isso não é humano, não pode ser.
A coisa caminha em passos de trovoada e eu fatidicamente estremeço com sua proximidade.
Sem se importar em sujar seus coturnos com o sangue no chão ele empurra a porta da minha cela e entra.
— Está aberta, não vai ao menos tentar escapar? Esta é a sua grande chance, não vou impedi-lo. — Sua voz me dá náuseas e o gosto de bile vem forte em minha língua.
Fecho os olhos. Eu não quero ver a face do diabo de perto.
Sua risada ecoa e ele puxa minhas pernas antes dobradas para poder se sentar sobre elas, seu peso força meu corpo para trás e suas malditas mãos se esfregam em meu rosto e cabelo, me sujando com o sangue dela.
— Para, por favor... — Soluço fraco.
— Por favor? Não era você o detetive fodão que ia me matar? — Provoca, mordiscando minha orelha e sendo o verme desprezível que é ao também se esfregar no meu colo — Eu estou aqui a sua mercê, pode me matar com suas mãos, vamos, faça. Eu sei que você pode.
Tento mover minhas mãos, obrigá-las a funcionar e fazer exatamente o que ele me pedia, no entanto não adianta. Elas não me escutam, não me obedecem. O meu corpo está paralisado e por mais que eu não queira admitir eu sei o que é.
— Me mata, porra! — Grita e eu choramingo baixinho, Lucian ri satisfeito.
— N-Não consigo.
— Por que não? — Incita e eu quase posso ouvir seu sorriso genuíno.
— Eu não sei. — Fungo apertando meus olhos com ainda mais força, me mantendo cego a minha própria covardia. Ah, se Harry me visse agora, ele sentiria nojo de mim.
— Você sabe sim, repita comigo: Eu sou uma cadelinha assustada.
Invés de responder opto pelo silêncio.
— Vamos, detetive, não seja orgulhoso. — Força, apertando as unhas em minha ferida e nem assim eu cedo. O silêncio o deixa inquieto coisa que eu sei que ele odeia, por um minuto escuto o farfalhar de seu revirar no casaco e de repente há uma tela brilhante forçando minhas pálpebras a se abrirem — Reconhece?
Era uma foto de Harry. Calça jeans, camisa de bolinhas, blazer preto, botas e um coque, a pessoa recortada ao seu lado na foto era Liam e pude reconhecer a frente da agência do FBI. Ele saiu desse esgoto, subiu até a superfície e encontrou o meu esposo.
A raiva ferve em minhas veias.
— Como voc–
Lucian pressiona seu dedo em meus lábios e a náusea vem com a noção do sangue de Jéssica neles.
— Ele é ainda mais bonito pessoalmente. Me pareceu bem maior e mais suculento que você, consigo imaginar com perfeição aquela carne pálida e macia dele se rompendo nos meus dentes, ah, eu o comeria de todas as formas possíveis. — Lucian sorri e encaro seus dentes afiados como os de uma verdadeira besta, ele empurra minha franja para fora da testa e se aproxima — Ele seria o prato-principal e a coisinha dentro dele a sobremesa.
Ele sabe que tocou na ferida no momento em que a minha paralisia some pra dar lugar ao furor, ele age rápido ao fechar os dedos longos na minha garganta, envolvendo meu pescoço em um aperto sufocante e me pressionando contra a parede.
— Eu vou matar você. Então depois vou atrás dele, farei questão de saborear aquele corpinho delicioso bem lentamente, talvez um dedo aqui, uma perna ali, só pra fazer durar, até o dia em que vou poder me banquetear como um rei, e aí virá a vez do bebê e não pense que eu esqueci dos outros dois, eles também estarão no meu cardápio. A escolha é sua, detetive, pode ser sensato e andar na linha comigo, ou pode seguir sua querida amiguinha, mas uma coisa é certa, ou você diz que não passa de uma cadelinha assustada ou eu me certificarei de que Harry diga.
Minhas mãos que lutavam contra as suas para se afastarem de minha garganta deslizam pelas laterais do meu corpo em um claro sinal de desistência. Lucian entende o recado e afrouxa o aperto.
— Eu sou... — Minha voz sai arranhada.
— Você é... — Me encoraja com animação.
Olho para baixo enquanto digo:
— Uma cadelinha assustada.
Lucian toca meu queixo, erguendo meu rosto e pisca seus longos cílios com tranquilidade ao romper o meu espaço pessoal lambendo dos meus lábios o sangue que os manchara quando pressionou o dedo ali.
— Eu ainda vou te matar. — Sussurro.
— É claro que vai.
Xx
— Louis Tomlinson, acorde! Nós temos visita. — Desperto em um átimo, pedindo a Deus para que a tal visita não seja Harry. Pelo jeito ele me ouve e quem avisto na ponta da mesa de jantar em uma parte desconhecida daquela "caverna do dragão" é uma frágil menina. Ela tem um longo e liso cabelo castanho, olhos escuros e parece jovial demais, provavelmente na idade de Jéssica — Hailee, diga olá ao Lou.
Hailee.
A menina com um hematoma na bochecha e o lábio inferior sangrando acena pra mim.
— Oi, Lou.
O rosto está pálido, abatido e fino demais, assim como as roupas sujas e não é difícil concluir que ela não é nova ali, pelo contrário, aparenta estar há bem mais tempo que eu. Então havia uma garota reserva.
Tento falar, mas ao invés de palavras saem grunhidos, de início não entendo o porquê e é quando percebo novamente a focinheira atada ao meu rosto, não só ela como correntes me prendendo a cadeira e outra mantendo meus pés juntos.
Lucian está arrumado como se estivéssemos tendo um verdadeiro jantar em família e coincidentemente é sobre isso que ele fala em seguida.
— Querida, não precisa ser tímida, Louis será seu novo pai e assim como eu ele cuidará muito bem de você. — Os olhos da garota dobraram de tamanho, temendo que eu fosse como ele. Me apresso em balançar a cabeça, negando sua afirmação, mas Lucian se limita a rir e se levanta indo até Hailee, puxando a tampa de uma bandeja prateada diante dela, uma generosa remessa de carne bem grelhada é exposta, o perfume causa um revirar em meu estômago por soar delicioso, porém aquele lado do meu cérebro que não esmorece pela fome e delírio nota a realidade.
Vejo a pobre menina salivar, o carinho do homem em seu ombro a incitando a comer e ela vai como um animal privado de suas refeições por longos dias aceitando o que lhe é dado sem questionamentos. O sangue vermelho escorre por entre os dedos dela e ela não percebe. Lucian exala orgulho.
Então é essa a sua ideia.
Vamos ser uma família.
Ele nos deixa famintos para depois nos encher com carne humana para que nos tornemos monstros como ele.
Uma linda família de canibais este é seu plano maníaco.
De forma alguma compactuaria com algo assim.
Acreditando ter obtido sucesso com Hailee ele se dirige até mim, remove minha focinheira e me estende um prato semelhante. Ele repete o olhar caridoso e o carinho no ombro.
Eu sequer penso, apenas cuspo na sua cara.
— Hailee, você está comendo a carne de uma garota incrível que não merecia nada disso! — Grito para ela do outro lado da mesa que imediatamente solta a carne e abaixa a cabeça vomitando no chão. Isso não agrada nosso raptor.
O observo secar a saliva que escorre por entre suas sobrancelhas, vai até Hailee, eu não posso ver direito, mas pelos sons ele a nocauteou. Filho de uma puta!
Então tudo flui rápido demais, em um momento estou preso na cadeira e no outro estou sendo lançado na mesa, meu corpo caindo inteiramente sobre ela e é como se todos os meus membros estivessem soltos, eu mal posso senti-los.
Eu estava anestesiado esse tempo todo.
Lucian adota a sua postura preferida, de assassino indiferente e se senta no mesmo lugar que ocupava antes. Puxa sua refeição para si e começa a comer normalmente, cortando a carne de Jéssica como se fosse a de um boi qualquer.
A mim basta olhar por canto de olho.
Ele bebe seu vinho e pega novamente seus talheres para cortar um novo pedaço, sua faca parece um tanto estranha, como se fosse uma pequena serra.
— Eu fiz tudo o que eu podia por essa relação. — Começa, colocando minha mão em seu prato, mas que porra? — Relevei sua rebeldia e as palavras rudes. — Prossegue desolado, meus olhos não saem da cena dele empunhando o garfo e a pequena serra perto demais de meus dedos.
— Lucian!
— Eu dei tudo de mim, Louis! Me esforcei de verdade e acreditei que você pudesse me amar. Não precisava ser desse jeito. — Ele faz o primeiro corte, é indolor, mas eu estou em pânico, ele segue cortando.
— Lucian, caralho, para com isso. — Exijo histérico ao que ele vai serrando a porra do meu dedo médio.
— Você pediu por isso, eu quis ser civilizado, mas você só entende a língua da violência. Tudo bem, querido, eu vou dar o que você merece.
— Não, por favor, não faz isso. Eu te imploro, por favor não. — Suplico com a visão embaçada por conta de algumas lágrimas que escapam contra a minha vontade.
— Oh, veja só que interessante, você não chorou quando a Jéssica morreu, mas agora chora por um dedinho inútil. Tão egoísta, Lou. — Diz com uma voz afetada continuando a serrar. Eu não me importo em implorar, assim como ele não se importa em me dar ouvidos e é agonizante vê-lo arrancar meu dedo fora. Meu sangue escorre pela carne como um molho especial e ele lambe os lábios, empurrando minha mão e cortando um pedaço daquilo que costumava ser o meu dedo e devorando de uma só vez.
Ele mastiga soltando sons de satisfação.
— Eu sabia que você era delicioso, querido.
Foi a partir desse momento que eu me tornei menos humano.
Xx
O objetivo matar Lucian sei-lá-do-quê vai se tornando distante a medida em que eu vou basicamente morrendo. Depois do que provavelmente seriam dias aprisionado naquele buraco a minha desidratação devia ter alcançado níveis alarmantes.
Minha morte deveria ter sido instantânea com a hemorragia da decepação do meu dedo, não fosse Hailee, que era estudante de enfermagem. A lembrança de Jéssica era inevitável, na verdade ela estava em minha mente vinte e quatro horas por dia, toda vez que fechava os meus olhos era para encontrar a ausência dos seus depois de arrancados por Lucian, de suas mãos buscando por mim, do sangue que inundou toda a prisão.
Eu falhei com ela e se ela está morta agora a culpa é minha.
Isso vinha me consumindo.
Mal falava com a garota ao meu lado, ela ocupava a cela de Jess e se esforçava para trocar algumas palavras comigo, ela era uma boa garota, mas eu não queria contato com ninguém, em absoluto.
A minha situação era ruim. Eu me sentia sem força alguma, meus principais ferimentos doíam como o inferno e nada mais me incitava a buscar por uma solução para aquele problema, porque eu havia simplesmente desistido.
Harry e as crianças ficariam bem.
Eles podiam viver sem mim.
Talvez a minha partida fosse melhor para todos.
Algo pequeno, macio e frio tocou minha pele e eu automaticamente gelei em receio, acreditando ser Lucian e alguma de suas diversas perversidades.
— Você está com febre. — Evangeline diz num sopro de voz.
Ela veste branco e seus cabelos estão repletos de cachinhos, em suas feições há toda a fragilidade e palidez que eu vejo em mim mesmo.
— Você é o anjo da morte que veio me buscar, então? — Digo rouco, parece que se passaram séculos desde a última vez que falei.
Sua mão em minha testa desce devagar pela bochecha úmida de suor, a ponta de seus dedos acariciam meus cabelos. As sobrancelhas retas e expressão endurecida nunca a fizeram tão parecida com Harry quanto agora.
— Eu não sou um anjo, pai.
Pisco sonolento, tombando um pouco para o lado.
— E também não sou um fantasma.
— Você está morta e eu continuo te vendo, não existe outra explicação. Eu sou como o pirralho do sexto sentido.
— Lembra de quando me deixou assistir com você e eu tive pesadelos por uma semana?
A lembrança se acende em minha memória.
— Como esqueceria? Seu pai ficou quase um mês sem falar comigo.
— Ele era exagerado. — Sorri com suas covinhas, ressaltando as sardas abaixo de seus olhos.
— Então se você não é um anjo ou um fantasma, você é...?
Eve dá um passo a frente, agora tocando meu rosto com ambas as mãos, o mesmo carinho terno que ela adorava dedicar as pessoas ao seu redor é feito sobre minha pele.
— Eu estou aqui por você e pra você.
Encaro seus olhos verdes aguados pelas lágrimas que trilham um caminho tortuoso por suas bochechas, ergo a mão para seca-las e o som estridente de disparos tomam meus ouvidos. Perto demais. Ensurdecedor demais.
Tapo meus ouvidos, querendo privar minha audição de reviver tudo aquilo. E sem que eu me dê conta estou chorando compulsivamente.
— Tudo bem, já passou. Eles não podem me machucar, eu estou segura agora. — Murmura, puxando meu corpo amolecido para junto de seu pequeno corpo, minha cabeça desaba contra seu peito silencioso sem a batida rítmica de um coração pulsante.
É quieto demais.
— Hold me close and hold me fast, this magic spell you cast, this is la vie en rose... — Estendo meu olhar até a prisão ao lado onde Hailee está com as pernas esparramados, cabelos presos no alto e batucando os dedos nas barras enquanto canta baixinho.
A ausência de quaisquer outros sons tornam impossível não ouvir seu canto calmo e doce, os dedos de Eve correm por meus cabelos e outra voz abraça meus ouvidos.
— When you kiss me heaven sighs... — Harry canta, dando uma pausa para fazer o que acabou de dizer selando nossos lábios. Seus olhos brilham mais do que as estrelas, não tenho dúvidas de que todas as constelações o invejam naquele momento.
Era o nosso casamento, depois de todo um exaustivo, mas maravilhoso dia começando pelo tão esperado "sim" seguido por uma festa cheia de familiares distantes, brindes, comidas e fotos, acabamos por escapulir para o terraço. A voz da cantora no salão principal podendo ser ouvida daqui de cima, Harry havia exagerado um pouco quanto a quantidade de vinho que podia ingerir e eu não diria que ele estava bêbado, mas um pouco alegre e maleável. Doce ele sempre era.
Seus cachos outrora moldados em um topete elegante caíram até se tornarem aquela bagunça costumeira por sua testa, o rosto arredondado e juvenil ainda mais fofo e corado e ele estava de tirar o fôlego naquele smoking escuro com o blazer aberto, ele se pressionava contra mim conforme dançávamos sob as estrelas e sua barriga inchada não me deixava esquecer o que tornava tudo aquilo ainda mais especial.
Seus braços ao redor do meu pescoço, nossos narizes se tocando e sua boca roçando na minha quando dizia:
— When you press me to your heart, i'm in a world apart, a world where roses bloom. — Cantarola baixinho, sorrindo entre os selinhos que eu roubo ocasionalmente, meus dedos escorregam para baixo de sua blusa e eu sinto Evangeline dando um chutinho.
— Eu te amo pra sempre, sun. — Confesso corando em timidez, ao que ele me dá mais um beijinho de esquimó.
— Eu te amo pra sempre, moon. — Harry fecha os olhos e me puxa para um beijo de verdade.
— Give your heart and soul to me and life will always be... La vie en rose. — Sem que eu me dê conta estou adormecendo ao som da voz de Hailee, com o carinho de Evangeline e sonhando com Harry.
Tão fácil quanto eu adormeço, desperto. A voz de Hailee desapareceu, contudo não há silêncio e sim o inverso.
Mas que escarcéu todo é esse?
Me forço a abrir os olhos e encontrar a última coisa que eu poderia imaginar, mais precisamente o momento em que o pé de Hailee se choca com força contra o rosto de Lucian. O canibal cambaleia e bate com as costas na parede, rosnando feito um cão raivoso.
A menina está ofegante e cheia de hematomas, encontro o mesmo molho de chaves que anteriormente esteve em posse de Jéssica e sei que assim como ela, Hailee também tentou me salvar. Lucian a encontrou antes.
— Hailee, sai daqui. — Grito pra ela, agarrando às grades com força e me pondo, a pulso, de pé.
— Mas–
— Fuja senão ele vai te matar e te comer como fez com as outras! — Não economizo na esperança de que ela me ouça, ela se remoi por um curto período e então assente e salta para fora, adentrando um dos caminhos tortuosos do bueiro.
Uma parte minha se alivia ao vê-la partir.
— Ótimo, eu estava mesmo precisando de uma caçada. — Lucian diz em tom áspero, trazendo numa mão um longo e enferrujado facão e na outra sua imensa cabeça de alce. Ele a veste, se vira para mim com os olhos demoníacos e parte atrás da inocente, me deixando só.
Eu não tenho forças.
Eu não tenho chances.
Foda-se!
Me lanço naquelas barras com toda a determinação que há em mim. Nem que seja a última coisa que eu faça eu vou salvar aquela garota. Após o dia em que Lucian decepou meu dedo não se deu mais ao trabalho de me encoleirar e por esse motivo não existiam mais amarras me prendendo, é claro que minha perna seguia como um peso morto, mas não mais tão dolorida como antes e o ferimento em minha mão era suportável o bastante. A minha perda grande de peso me fez capaz de passar por aquele espacinho mínimo entre o ferro e o teto acimentado.
Prendi a respiração e murchei a barriga o máximo que pude, rastejando para fora. Eu mal pude crer quando despenquei do outro lado, era quase que surreal.
Por um momento eu não consigo me mover. Atingido em cheio por todos os traumas sofridos nos últimos dias. É tudo demais. Apesar de tudo eu ainda sou humano...
Então o animal em mim desperta.
Seja lá o que for isso me coloca de pé, eu consigo andar sem me importar em mancar ou gemer de dor, eu marcho como um soldado determinado, passando pela mesa de facas sem me apropriar de uma arma sequer. Eu não preciso de nada quando minhas mãos anseiam por fazer todo o trabalho sujo.
O breu não me cega, os sons não me assustam e nem mesmo cem demônios poderiam me parar agora.
Enxergo os chifres compridos, o braço longo e a lâmina estendida no ar, pronta para cortar e ela vai. A uma fração de fazer o movimento tomo seu pulso virando de forma que o osso se parte, ele pode ser grande e levar vantagem em questão de força bruta, mas ele não teve meu treinamento, sem ataques covardes e amarras ele não é nada se comparado a mim.
— Maldito! — Lucian vocifera, a arma caindo de sua mão e estatelando-se na água rasa, ele se vira para mim, segurando o pulso, seu pé se lança contra meu peito. Eu me precipito, imobilizando sua coxa antes para cotovelar seu peito em cheio no coração, ele ofega e tomba para trás, ouço os ruídos do que arrisco ser Hailee rastejando para fora da luta.
Mas Lucian permanece de pé, imponente como um gigante e impiedoso como a fera que é, ele a puxa pelos cabelos. Ela grita. Torno a partir contra ele, desta vez ele é quem se precipita esmurrando meu rosto, o golpe em cheio na cabeça me deixa desnorteado pra caralho, e pra completar joga a garota em cima de mim.
Hailee está chorando e ferida e Lucian não está mais interessado em uma família. Ele quer nos matar.
Recupera seu facão e vem novamente.
Hailee se aperta contra mim em pavor e eu nos jogo no chão quando ele ataca, a lâmina arranca as pontas dos cabelos dela e eu a afasto quando sinto dedos se fechando na parte de trás da minha cabeça.
É agora.
Quando ele me põe de pé, provavelmente para dilacerar minha garganta, passo o braço por detrás dele, a visão por debaixo daquela máscara deve ser precária. Ah, otário!
Agarro com firmeza a gola de sua camisa e confiando que há uma mísera fagulha de força pra fazê-lo, me impulsiono para frente, o puxando e fazendo com que ele passe por cima do meu ombro. É como carregar uma montanha, mas ela enfim desmorona. Um dos chifres perfura meu ombro, mesmo que tivesse atingido o coração aquilo não me deteria.
Como um tubarão eu persigo sangue.
Puxo a máscara revelando seu belo rosto imaculado, jogo o facão para longe. Dou a volta, sentando em seus quadris, me certifico de quebrar o outro pulso.
O sangue escorrendo do corte em minha têmpora faz o declive da minha mandíbula até o pescoço e trato de envolver minhas mãos na garganta de Lucian, seguro de que não haverá escapatória o puxo para cima e então o empurro com tudo, a cabeça martela contra o piso duro. Eu repito a ação uma vez atrás da outra, o sangue começa a vazar da parte de trás, o som de seu crânio se esmagando no cimento é como música para os meus ouvidos.
Mas me parece muito pouco.
— Hailee. — Chamo na quietude.
— S-sim?
Olho para onde ela se encolhe.
— Pode buscar algumas correntes para mim?
Ela assente.
Xx
Dez minutos depois estou distante, admirando o despertar vagaroso do canibal desprezível a minha frente. Há correntes transpassadas por seus braços e pernas, prendendo-o a mesma cadeira que eu estive atado no dia em que comeu meu dedo.
Mantenho meu semblante calmo, indiferente como ele faria, braços cruzados e quadril descansando na sua mesa de chacina.
— O-o quê? — Balbucia desnorteado, ele conseguir falar é no mínimo desanimador depois de tantas pancadas na cabeça. Lucian é capaz de levantar o rosto, o azul translúcido de seus olhos se conectando aos meus — Onde... Onde eu estou? Quem é v-você?
Deixo que um sorriso cresça em meus lábios.
— Você está no inferno. — Digo rouco, brincando com o punho de um de seus punhais — E eu sou o diabo.
Ele gargalha alto.
— Muito engraçado, então, a polícia já está a caminho? Sei que vou me divertir muito no hospício.
Franzo as sobrancelhas, Hailee prossegue roendo a unha ao meu lado.
— Não, eu fiz uma promessa e vou cumprir.
— Hum, fez, é? — Torce os lábios — Oh, sim, aquela historinha de me matar? Eu fiz a lição de casa, detetive, sei que você é tão entediante quanto uma velinha, você tem uma ficha impecável. Nunca matou ninguém e nem vai.
— O que te faz pensar que eu não vou fazer agora? — Endireito minha postura, olhando diretamente para ele.
— Bem, vejamos, você é um policialzinho medíocre, cheio de ideias estúpidas que acredita na porra de um mundo melhor onde a justiça funciona de verdade. Então não, você não vai me matar.
Não lhe dou uma resposta de imediato, normalmente ele estaria certo, era exatamente o que eu faria. Desde criança fui incitado a acreditar que a justiça nunca falha, que policiais são fiéis cumpridores da lei e matar é desumano e desprezível, mas como confiar que ele teria a punição merecida? Lucian não parecia preocupado ou temeroso, muito pelo contrário.
Eu seria capaz de liberar alguém que sequestrou inúmeras jovens inocentes, as torturou, assassinou e devorou, uma destas diante dos meus próprios olhos e que ainda por cima me aprisionou, desmembrou e ameaçou aqueles que me são mais importantes e acreditar que a justiça de fato seria justa?
A resposta era clara.
Eu já não era o mesmo.
Empunhei aquele mesmo facão com o qual perseguiu Hailee como uma presa indefesa.
— Você não vai... — Ele começa a dizer.
— Não vai querer ver isso. — Falo para a menina que engole em seco e balança a cabeça em negativa.
— Não, eu preciso, eu quero ver. — Garante com a voz tremida.
Suspiro aceitando sua decisão.
Me volto para Lucian que tem o rosto contorcido em desagrado, ele realmente não botava fé em mim.
— Me matar não te torna melhor que eu.
— Eu não estou interessado em ser melhor que ninguém. — Dou de ombros, dedilhando a lâmina afiada, num toque superficial ela abre um pequeno corte em minha pele que me causa contentamento. Sugo o filete de sangue que expele do meu dígito e a sensação de poder naquele momento me agrada muito.
Ele range os dentes, se debatendo, o que não causa efeito nenhum.
— Isso vai foder com você, precisam de alguém pra culpar. Eles vão querer respostas!
— Eles não terão, não terão nada. Nenhum de nós falará o seu nome, será como se você nunca tivesse existido.
Ele nega.
— Eles são bons, vão encontrar meu corpo e saberão que foi você. — Ameaça.
Rio despreocupado, me sentindo atraído pelas orbes escuras do Alce, toco a pelugem densa e isso pode ser interessante.
— Eu vou garantir para que não haja corpo algum. — Vejo de canto de olho que ele estremece, bom. Visto sua máscara, o chifre esquerdo ainda manchado pelo meu sangue e a ponta afiada do facão arranha a parede do esgoto quando começo a andar em sua direção.
Posso ver Evangeline ao lado dele, negando com a cabeça com o rosto choroso, mas tudo o que existe pra mim é a ideia quase doentia de fatiá-lo.
— Talvez você não seja um caso perdido, detetive. Há mais de mim em você do que podíamos imaginar.
Não lhe dou ouvidos.
— Talvez. Agora me diga, quem é a cadelinha assustada aqui? — Seu sorriso cai e o meu cresce por debaixo da máscara.
Então eu mergulhei de cabeça na escuridão.
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