│30│virgo
Eu nunca pensei que sairia dessa vivo. A mais remota possibilidade de sobreviver não passou pela minha cabeça, por mais que houvessem momentos em que dei a minha vitória como certa, no meu âmago fantasiava que ele conseguiria me levar junto. Que estaríamos condenados e pagaríamos por nossos pecados lado a lado.
Mas eu estava errado e apenas ele partiu.
E eu continuei aqui, existindo.
Existir é uma tarefa árdua quando você não tem mais energia para isso. Mesmo nos momentos mais caóticos da minha vida tentava focar no futuro, naquilo que me reservava, nas possibilidades e a única que me resta no momento é uma cela fria de segurança máxima no hospital psiquiátrico de onde eu escapei. De volta ao manicômio.
De início, me convenci de que era tudo um sonho. Uma realidade maluca e traiçoeira que minha mente criou enquanto estava cochilando na banheira me atrasando para o trabalho, qualquer coisa que não fosse acreditar que isso era real, porém, dias se passaram, mais precisamente duas semanas. Duas semanas mais tarde e não acordei desse pesadelo.
O médico veio até aqui e teceu elogios a minha recuperação, ele começou a tirar os pontos e segundo ele, mês que vem vou estar novo em folha, dentro do possível. Com isso, recebi alta e estarei retornando o quanto antes a minha sentença perpétua.
Sem visitas, sem notícia alguma do mundo externo. Tudo o que sabia além destas paredes é que os carros de reportagens continuavam acampados diante do hospital, eles abordavam quem quer que desse as caras a procura de uma exclusiva, mas não havia mais nada para saber sobre mim a essa altura.
E o que de fato não sabiam, eles inventavam.
— Você tem cinco minutos. — Craig, o federal responsável por ser meu cão de guarda dentro do quarto disse, tirando minhas algemas atreladas a cama.
Ele foi bastante generoso em concordar que eu tivesse alguns instantes de privacidade no banho de hoje.
Logo estarei preso a uma camisa de força e coisas como esfregar minhas próprias costas deixarão de ser uma preocupação.
— Eu vou estar bem aqui, faça alguma gracinha e eu te dou um motivo pra ficar mais uns dias por aqui. — Ele reforça sua fala balançando a Glock e eu reviro os olhos.
— Nossa, você me pegou! Eu tenho tanto medo de levar um tiro. — Resmungo entediado, entrando no banheiro.
— Muito engraçadinho, Tomlinson. Sem gracinhas!
Dito isso, ele bate a porta e sei que ele está grudado no outro lado da madeira e tudo bem, não tenho interesse em fazer nenhuma gracinha além de tomar o último banho em um lugar livre de malucos. Com cuidado puxo a camisa, seguida das calças, dedilho superficialmente meu peito, a cicatrização estava muito boa, um corte limpo e bem fechado, o médico comentou que era quase como se não quisessem me matar realmente. Em parte sabia que era verdade. Apesar disso, respirar continuava sendo trabalhoso.
Abri o chuveiro e entrei debaixo da água morna, me servindo apenas de uma mão, uma vez que a outra ainda estava com as bandagens, era intimamente frustrante saber que eu nunca mais poderia dar o dedo do meio para ninguém. Os dois se foram. Não, eu não seria sentimental quanto a isso, quando o que me fazia falta mesmo era minha aliança, ela teve de ser levada, assim como os anéis de Harry, tudo era uma arma em potencial em minhas mãos.
Todos me tratavam como se eu fosse o homem mais perigoso na face da terra quando não passava de um policial que levou a sério o treinamento, nada além disso. O perigo real estava na minha falta de limites, quanto a isso todos nós concordávamos.
Me aproveitei ao máximo da sensação de poder fingir ser normal, apenas um homem qualquer tomando um bom banho antes de começar o dia, eu era bom nisso. Em imaginar.
Criar o cenário perfeito na minha cabeça, de me convencer da realidade que mais me agradasse, então, eu fingi ser qualquer um enquanto mantinha minha cabeça debaixo do chuveiro e quando estava me sentindo satisfatoriamente iludido, desliguei e sai, puxando os cabelos para trás com a toalha nos quadris.
Encontrei a mim mesmo no espelho.
Uma sombra distorcida do homem que conheci.
Neste ponto, os programas sensacionalistas estariam exibindo fotos minhas, da criança aparentemente normal que fui, do adolescente com um rosto angelical, o homem da lei e por fim, isso. O monstro. Eu atingi meu estado final, a metamorfose está concluída e o que enxergo no espelho daria pesadelos aos meus filhos, arranho as cicatrizes espalhadas pelo meu rosto, estão enraizadas em mim. Elas fazem parte do todo agora. Esse cabelo me faz parecer diferente, mais tenebroso, os piercings se foram, mas as marcas permanecem, puxo o lábio inferior observando minha língua despontar. Ou línguas, melhor dizendo.
Rio comigo mesmo.
— Ah, seu maldito insano! — Murmuro, jogando a água fria sobre meu rosto, aperto as extremidades da pia, assistindo a água gotejando na porcelana.
Eu sou o homem mais odiado da terra.
Isso não me importava tanto assim, exceto que eu sentia falta do ódio de alguém. Eu tinha um buraco no peito mais profundo do que qualquer tiro ou facada que já tive. Era como uma bactéria se espalhando por meus tecidos, veias, sangue, ossos, isso era... Saudade?
— Um minuto, Tomlinson! — Craig bate na porta.
Suspiro, balançando a cabeça. Hora de ir.
Espalmo a mão sobre o espelho e ergo o rosto, mas quando miro minha mão, não a encontro sozinha, uma palma maior e calorosa está sobre ela, os dedos longos, os anéis.
Eu a reconheceria em qualquer lugar.
Imediatamente me viro, meus quadris batendo na pia, sequer registro a dor, olhando desesperadamente por cada centímetro do banheiro e não encontrando nada. Estou sozinho. Não, não é possível, eu sei o que vi, eu pude sentir.
— Harry! — Chamo, andando desnorteado — Harry, eu sei que você está aqui. Apareça. Apareça, por favor. — Aos poucos minha voz vai se destroçando em súplicas.
Craig torna a bater na porta como um aviso.
Penso em tudo o que vi desde sempre, nas formas retorcidas, sombrias e misteriosas que rastejavam ao meu redor. Nos meus delírios constantes, com Eve e Lucian. Eles sumiram. Nenhum deles nunca foi bem vindo ou desejado, se existe uma ilusão pela qual eu anseio, se deve haver um demônio ao meu ombro por toda a eternidade, sei exatamente quem eu quero.
Fique comigo.
Me assombre.
Me persiga.
Me enlouqueça ainda mais.
Apenas... Não me deixe.
Desiludido, volto a apertar a pia e encostar a testa no espelho. E é quando sinto o roçar familiar de cachos na minha nuca, a respiração quente atrás da minha orelha e os lábios tocando meu ouvido ao sussurrar num timbre grave e rouco:
— Nem a morte é capaz de quebrar essa corrente.
Quase me desfaleço de alívio. A corrente que nos mantém atados um ao outro jamais será rompida. Para o bem ou para o mau, para sempre estaremos juntos.
Estou tão extasiado que não faço caso algum quando Craig entra e me arrasta para fora.
Em algum ponto do dia estou nas janelas, tentando me concentrar ao máximo para conseguir vê-lo como fiz com os outros, sei que em breve será possível. Sequer percebo que estou solto e meu guarda não está servindo de sentinela no momento em que a porta é aberta e alguém adentra meu quarto.
O silêncio repentino após o arrastar da porra me faz olhar sobre o ombro. Niall está parado, as mãos abrindo e fechando ao lado do corpo, ele não parece nada bem.
— O que houve, Irlanda?
Ele praticamente rosnou, se aproximando.
— Não, não me chame assim. Você não tem o direito. E-eu confiei em você, pensei que tivessemos um acordo e você foi lá e fez a porra de uma carnificina. — O ódio e ira em sua voz era palpável. Ele não parecia com Niall Horan, parecia comigo e isso me deixou enjoado.
— Fiz o que foi preciso. — Digo deixando a janela e me voltando para ele.
— Preciso? — Cospe — O rapaz na clínica, ele era só um garoto, você realmente precisava quebrar o pescoço dele?
Matthew.
— Eu não precisava, eu quis. É isso que você quer ouvir? Pois aí está, essa é a verdade! Eu gosto de matar, eu sinto prazer em fazer isso e não sinto muito. Estou pouco me fodendo para a vida dos outros, sei que ele tinha família, sei que tinha pessoas que o amavam e mesmo assim eu não me importo, Niall.
— Você se importa com os seus filhos?
— Francamente? — Ele assente — Não. Eu não me importo e não me lembro de ter ao menos gostado deles, Spencer é um covarde fraco, e sei que a vida dele vai se resumir em se esconder e lamber as feridas e Blake, ele vai ser um idiota que vai ter uma morte tão medíocre quanto ele mesmo.
Niall engole em seco.
— Quanto a isso você nunca saberá. Ambas as famílias perderam a guarda, eles foram adotados e não estão mais no país, e assim como toda a vida deles até agora, os nomes Spencer e Blake Tomlinson também foram deixados para trás.
— Claro que sim, Anne deve ter pirado com isso. — Comento com indiferença, avaliando os objetos do quarto.
Não há nada que chame a minha atenção, nada além de Niall pensando ser homem o suficiente para me encarar, depois de Nick eu vinha me sentindo tão inspirado, era sem dúvidas magnífico abraçar o seu eu verdadeiro.
— Ela "pirou" bem antes. No dia em que você matou o Harry, a polícia foi até a sua residência informá-la, mas a notícia já tinha chegado em todos os meios de comunicação e quando chegaram a encontraram morta, ela cometeu suicídio com uma overdose de medicamentos.
— Uh, será que veneno estava em falta no mercado?
— Não zombe da dor de uma mãe.
— Estou zombando da covardia de uma mãe que sabia que estaria muito fodida se soubessem de seus feitos.
— Você não parece triste por isso, segundo o que dizia ela era uma das únicas que poderia atestar que Harry era Andrômeda. Assim como Grimshaw e Aaron. Todos que poderiam te inocentar estão mortos e você não dá a mínima?
— Me inocentar? — Sorrio para sua fala sem sentido — Eu não sou inocente. E a essa altura faz diferença? Eu ou ele? Quem era o lobo mau e quem era a chapeuzinho? Ninguém liga. Diga que fui, ele, você, Gemma, dá na mesma. A sentença foi dada e não será revogada.
Niall se aproxima até que uma pequena distância reste entre nós, seus olhos úmidos e cristalinos se recusam a derramar qualquer lágrima ao que ardem em fúria. Eu gosto dessa versão dele.
— Eu quase perdi tudo pra te ajudar.
Sorrio ainda mais amplo.
— Você é sobrinho do diretor e um filho da puta rico, caras como você não perdem nada. O que levou? Uma notificação? Dois meses sem o seu Maserati?
Ele me olha de cima a baixo como se não me reconhecesse.
— Seu maldito mentiroso, manipulador, assassino. — Reviro os olhos — Como o Harry poderia amar alguém assim?
— Eis o ponto, Irlanda. Harry está morto e o que ele sentia ou não, não é mais relevante, porque eu estou vivo e agora a história me pertence e eu posso contá-la como quiser. E sabemos que muitas pessoas vão querer a minha versão e eu contarei como bem quiser, afinal, a verdade é só uma questão de ponto de vista.
Ele me olha impassível, a expressão misteriosa e sorri sem vontade.
— Eu falei com a Dra. Turner e ela disse que após interromper o tratamento você jogou fora todas as chances de voltar a normalidade, de agora em diante a sua mente vai se deteriorar ao ponto em que não será mais capaz de distinguir a realidade, em dez anos você terá alcançado a demência completa.
Dou de ombros. Sem novidades para mim, uno meus pulsos e os estico em sua direção.
— Estou ansioso por isso.
Niall suspira e coloca as algemas, mas antes de sairmos, me inclino e sussurro em seu ouvido. Quando me afasto ele tem os olhos frios, no entanto, sei que ele entendeu perfeitamente o que lhe disse e isso vai assombrá-lo.
E vivemos torturados para sempre.
2026, Sede do FBI, Washington;
— E fim. — Louis conclui com um tom demasiado alegre para a história mórbida que havia contado.
Seus olhos felinos pesaram sobre cada um dos telespectadores durante todo o tempo, estava satisfeito ao ver que muitos não aguentaram até o fim. Principalmente na parte de seu cativeiro com Lucian um terço deles correu para fora com a mão sobre a boca e rostos pálidos, a garota na fileira da frente desmaiou. Os mais sensíveis choraram, Louis os considerou os mais patéticos, mas ele adorava contar essa história.
Niall também estava atento aos seus alunos e se levantou da cadeira, as mãos atrás das costas e se dirigindo à Louis:
— Você adora se colocar como um ingênuo e devoto marido.
— Culpado. — Louis riu, rapidamente fechando a cara porque gostava da ideia de parecer horripilante no imenso telão que era projetado para eles — E se me permite, esse novos recrutas são uma vergonha.
Horan lutou para não torcer a boca em escárnio. Ele odiava Tomlinson e o simples fato de ouvir sua voz o embrulhava o estômago, mas era um mal necessário e por isso tomou a atitude de chamá-lo desta vez.
— É uma opinião muito apreciada vinda de um homem em sua posição. — Ele tentou não soar ríspido, porém Louis sentiu a alfinetada direta sem se ofender.
De repente, sua expressão se iluminou ao lembrar de algo.
— Oh, isso me lembra, meus sentimentos, deve estar de luto...
O semblante de Niall rapidamente endureceu.
— Obrigado, detetive Tomlinson, por sua enorme contribuição hoje. E por ter nos dado um pouco de sinceridade, ao menos no final, sei como é difícil para você. Adeus.
Louis se remexeu aborrecido, ele queria mais tempo, mas estava satisfeito por enquanto.
— Adeus. — Deu um aceno para a plateia e a conexão foi rompida, e como se acordasse depois de um longo sono, estava de volta ao pátio do sanatório. Olhou ao redor e todos continuavam em posição, um grande círculo ao seu redor com os seguranças apontando armas carregadas para ele – não podia culpá-los, eles estavam absolutamente certos em se cuidar – era sempre assim nas raras vezes em que deixava sua cela — Pronto, pessoal! Descansar.
— Nem em sonhos, Louis. — O chefe da segurança retrucou, abaixando a tela do notebook, seu revólver apontado na direção do rosto de Tomlinson — Agora fique bem calmo, okay?
Ele assentiu, ao que um deles vinha por trás e prendia sua coleira no pescoço, ele odiava aquela merda de ferro, não só por ser desconfortável como o inferno, mas também por ser o tipo de porcaria que se usava com cachorros. Um passo seu em falso e uma onda de choque era liberada por seu corpo. Afivelada a coleira foi a vez da máscara de couro, ele tinha de usar isso depois de inúmeras acusações sobre ele conseguir desestabilizar os outros pacientes, fosse com palavras ou olhares. Isso era verdade. Enganchado a guia de ferro na parte de trás da coleira, foi instruído a se levantar.
Ele foi guiado cuidadosamente, apenas seus olhos azuis moviam-se sob a máscara grossa. Registrando as paredes claras e as janelas amplas, eles adentraram ao corredor e diferente de como era em sua ala de anos atrás, aqui não haviam janelinhas nas portas, não haviam conversas em grupos, horário de lazer ou televisão. Ele estava na Enfermaria 1, onde os casos mais perigosos e irreversíveis ficavam. O único objetivo dos enfermeiros desta ala era mantê-los longe do mundo e isso o faziam com primazia.
Seu quarto era no final do corredor, atrás da imponente porta de ferro. Oitos câmeras miradas para ele, noite e dia, ele não tinha autorização de fazer nada por si mesmo, tampouco estar desacompanhado. Não que ele saísse muito, uma vez que não restava mais ninguém para visitá-lo, sua mãe foi por um tempo, até que deixou de ir. Era melhor assim, ela nunca soube o que falar e não acreditava nele, além de se ressentir por ter perdido todo o contato com os netos.
Pela primeira vez em muito tempo, enquanto tiravam a máscara e as algemas, se perguntou por onde estariam os gêmeos. Que estupidez! Ele sabia exatamente onde os meninos estavam.
Fecharam a porta atrás de si e Louis fechou os olhos por um momento e quando os abriu, estava em casa.
"Os ombros pesando por conta do casaco ensopado, ele estava tremendo depois de receber toda aquela chuva, lá fora, o céu brilhava com os raios e relâmpagos, era um milagre que ele tivesse conseguido voltar inteiro para casa. Apesar da opinião não parecer ser compartilhada.
Sonny foi o único a recepcioná-lo. Latindo e pulando, correu e voltou com uma bolinha de borracha na boca e a soltou aos pés de Louis.
— Outra hora, garotão! — Disse, coçando atrás da orelha peluda do cão e adentrando cuidadosamente, Shae e Mona estavam confortáveis no sofá, miando ocasionalmente. O cágado imóvel perto da mesinha.
Tudo estava silencioso. Olhou para as flores murchas na mão, não seria o bastante, mesmo assim, se arriscou a ir até o andar de cima.
A porta do quarto dos meninos estava entreaberta, empurrou mais um pouco encontrando-os. Blake deveria estar no quinto sono, desfalecido no berço, mas Spencer estava choramingando no colo de Harry, que fazia o melhor para acalmá-lo, aninhando-o contra o peito e balançando-os na poltrona.
— Oi. — Sussurrou.
Ele o olhou incrédulo.
— Oi? Louis, você faz ideia de que horas são? Você disse que ia buscá-los na creche e depois me buscar no salão! Você deu um bolo em nós três. — Sussurrou de volta com a voz irritada.
— Eu sinto muito, foi o trabalho, eu disse que precisava pegá-los, acabei me distraindo.
Invés de dizer umas poucas e boas, ele apertou os lábios e continuou com Spencer. Louis resolveu que o melhor a fazer era tomar um banho e conversar mais tarde, o que não aconteceu exatamente, eles brigaram pelos motivos de sempre, seu trabalho, sua ausência em casa e tudo mais.
Ao final, eles estavam tão exaustos que cairam na cama em lados opostos, Harry sequer deu um boa noite, mas quando a madrugada chegou, ele estava rolando de volta para os braços de Louis, que com um sorriso preguiçoso soube que tudo ficaria bem."
Na sala de comandos, um funcionário se apresentava para o serviço quando apontou para a câmera de umas celas, as sobrancelhas franzidas.
— E esse cara? — O paciente no monitor estava deitado no chão, movendo o braço como se estivesse abraçando alguém.
O homem mais velho ajeitou os óculos, dando uma boa olhada.
— Ah, esse é o antigo detetive, ele é aquele assassino, Andrômeda.
— E ele tá bem?
O velho riu.
— Claro, ele só é bem doidinho, quando entra na cela esquece tudo e fica revivendo coisas do passado dele. Esse aí não tem jeito. Ele perdeu completamente o juízo, é uma pena, diziam que era um bom policial. Agora é só mais um maluco.
Xx
Horan respirou fundo quando o rosto de Louis saiu de foco e era ele e sua turma de calouros novamente, durante a história ele quase se sentiu de voltio aquele cenário, um jovem detetive ansioso e inseguro, seguindo seu grande ídolo como um deus absoluto, ele reconhecia a falta de veracidade de mais de um ponto, mas gostou de recordar aquela vez em que Louis e as crianças ficaram no seu apartamento, como ele se sentiu animado e útil. Como ele pensou que tinha um amigo e como seu coração se partiu ao concluir que era tudo mentira. Louis não era do tipo capaz de ter amigos.
— Bom... — Assim que abriu a boca, dezenas de mãos se levantaram e balançaram no ar, na esperança de que fossem escolhidas — eu irei abrir para perguntas, mas antes, quero deixar claro que Louis Tomlinson é oficialmente considerado Andrômeda, agindo em parceria com Gemma Styles e por isso, ambos foram sentenciados e devidamente punidos por seus crimes. Após ouvirem essa longa narração podem estar incrédulos quanto a isso, podem achar que é óbvio o envolvimento de Harry e suas supostas identidades em todo este caso, no entanto, o TDI nunca foi diagnosticado, não existem provas que possam comprovar a existência de uma ou mais personalidades, a única pessoa a levantar está hipótese foi o senhor Tomlinson, que diferentemente do marido possui diagnósticos, sendo eles, esquizofrenia paranoide, que o acompanha desde a infância e foi terrivelmente agravada pelo uso excessivo de drogas, que só aceleraram o processo, psicopatia e mitomania. Quando digo que ele é um mentiroso não significa uma ofensa, mas parte de sua condição. Sendo assim, Louis Tomlinson é uma testemunha não confiável e tudo o que ele diz é descartável e sem relevância.
Ele observa os rostos embasbacados dos jovens, os braços caindo lentamente de volta aos seus colos. Não era o que esperavam.
— Então, passamos todo esse tempo ouvindo mentiras? — Connie indagou.
— Mentiras, eu não diria isso. Diria que vocês ouviram um ponto de vista, não o mais correto, afinal, vocês podem notar o quão tendencioso Louis era em diversos momentos. Sua necessidade de reafirmar o quanto amava a família e queria fazer a coisa certa, mas estando ao seu lado, ele não era assim tão abnegado, ele era manipulador e egoísta a maior parte do tempo. Muitas partes serão eternas incógnitas para nós, Harry não está mais aqui para dizer se sofria de TDI, se Allicent, Sugar, Cody, Aimee, Andrômeda, Kyle, Hunter ou Alex eram reais ou pura ficção. Pesquisadores e curiosos olham com fascínio há quase uma década para o caso Andrômeda e já o retrataram de inúmeras formas. — Seu assistente volta a trabalhar, exibindo imagens de filmes, livros e documentários realizados sobre o caso ao longo dos anos — Alguns abraçam totalmente a história e colocam Harry como a mente maligna por detrás de tudo isso, um homem atormentado por alters controladores e sanguinários, outros vão na direção oposta com Louis e Gemma sendo a dupla maquiavélica que matava por despeito e foram capturados e uma grande parte tem se tornado adepta da narrativa em que... — Uma nova foto surge no telão, Niall olha de relance — ambos eram parte do mesmo. Um esquizofrênico e um TDI jamais descoberto que inconscientemente eram parceiros, aliados não só na vida, como em sua jornada criminosa. Uma combinação nociva que destruiu ambos e todos em seu entorno.
— E em qual devemos acreditar, senhor? — Um rapaz que se mantinha calado até então perguntou.
— Como Louis me disse certa vez, a verdade é só uma questão de ponto de vista. Naturalmente, damos relevância ao que foi reconhecido por lei, mas vocês estão livres para acreditar naquilo que quiserem, cada um terá um olhar diferente sobre esse caso e nada é dado como certo ou errado. Meu propósito ao trazer esse caso não era uma nova resolução ou acusar alguém, eu só queria que vocês soubessem que isso não é um simples trabalho, não é possível separar uma coisa da outra, nem sempre você vai ter a certeza de que é o mocinho e na maioria das vezes, não vai poder confiar em ninguém, nem em que você ama e na pior das hipóteses, nem em si mesmo. Eu libertei um condenado perigoso e por isso três pessoas morreram. O meu descuido arruinou vidas. O descuido de Louis foi dez vezes mais grave do que isso. O meu propósito é deixar claro, para todos vocês, que se optarem por isso, estejam cientes, de que estão colocando tudo o que vocês tem e são, em jogo. Então, pensem bem.
Ouviu-se o silêncio e grandes olhos paralisados sobre ele. Niall correu os dedos pelos cabelos até relaxar um pouco a postura.
— Perguntas?
E lá estavam os bracinhos ansiosos chacoalhando no ar.
Ele escolheu um.
— E Luke Hemmings? Ele não testemunhou?
— Tudo o que Hemmings disse foi que dormiu com Harry como um ato de vingança, mas não sabia nada sobre o caso em si, além do que foi registrado pelo FBI, culpabilizando Louis Tomlinson.
Outro perguntou.
— E a pesquisa do Ashton e do Louis?
— Se um dia elas existiram, foram completamente destruídas.
— E os gêmeos?
— Ambos estão bem, seguros, saudáveis e se tornaram ótimos rapazinhos, por motivos óbvios o paradeiro e identidades deles permanecem sigilosas.
— Harry realmente sequestrou a Mia?
— Sim e a manteve dopada, foi alegado que ele fez isso movido pelo luto após a perda da bebê que estava esperando. Ele tinha uma tendência a surtos, mas nenhum diagnóstico foi apresentado.
— Os animaizinhos ficaram bem?
Niall sorriu com a pergunta.
— Sim, infelizmente o Sonny perdeu a patinha, mas viveu bem sem ela, ele faleceu ano passado e Mona e Shae seguem bem sob os cuidados da antiga vizinha deles, a Srta. Rexha. Mais alguma pergunta?
Gwen pareceu hesitante ao erguer a mão.
— Sim?
— Tomlinson disse que o senhor estava de luto. É por causa da...? — Ela não terminou, porém Niall havia entendido perfeitamente.
Gwen seria uma boa detetive, era bastante sensível e observadora.
— Sim, é por causa dela. — Assentiu tristemente — Ontem, a essa hora, foi realizada a execução da pena de morte de Gemma Styles, ela morreu por injeção letal após anos no corredor da morte e eu posso ser demitido por isso, mas a única certeza que tenho em tudo isso era a de que ela era inocente e não merecia um final tão injusto. Porém, justiça, é um luxo do qual poucos podem desfrutar. — Ele sabia que estava falando demais e em breve teria uma conversa daquelas com o diretor Basset, não que ele pudesse afundar Niall ainda mais no burocrático.
A palestra se encerrou pouco depois, estavam todos exaustos. Ele não imaginou que fosse ser tão longa, deveria ter lembrado do quão detalhista Louis costumava ser. Mesmo assim, recebeu muitos elogios e cumprimentos e se sentia um pouco orgulhoso de não ter feito uma propaganda pastelona e mentirosa.
Seu pobre assistente estave mal se aguentando em pé, então dispensou o coitado mais cedo e se pôs a organizar tudo sozinho.
Ouviu um pigarreio às suas costas.
— Direto do departamento de "loucas pelo detetive Horan", trouxe cartinhas das suas admiradoras. — A garota se aproximou, exibindo um punhado de papéis coloridos.
Com o cenho franzido, ele se voltou para ela, ela estava bem em seu uniforme similar ao dele, os cabelos pretos e longos presos em um firme rabo de cavalo e os olhos azuis espertos atrás dos óculos de lentes redondas. Ela não mudou nada.
— Não enche, Miranda.
— Nossa, quanta agressividade, chefe. Eu só estou prestando um serviço a comunidade.
— Minha noiva vai adorar saber disso. — Disse, ocupado em enrolar cabos e mais cabos. Mia deixou as cartas de lado, colocando as mãos nos quadris e mudando o peso de um pé para o outro, ansiosa — Sei que você quer falar alguma coisa.
— Eu não sabia que planejava trazer ele para a palestra de hoje.
— Não era nada certo, estava esperando o aval do diretor.
— Ainda assim, nunca imaginei que fosse trazer ele.
— O que há? Pensei que ficaria feliz em ver o seu papai depois de tanto tempo. — Horan provocou, deixando tudo em seu devido lugar.
— Sabe bem que eu não o vejo com bons olhos, assim como o Zayn. Eu não quero que os atos deles me definam, se soubesse que faria isso nem teria vindo.
— Ninguém sabe sobre eles. E nada muda o fato de que você é uma ótima agente, Mia.
Relutante, ela assentiu.
— Mais sortudos que eu quando o quesito são pais desequilibrados são o Blake e o Spencer.
Niall balançou a cabeça, fingindo desinteresse, ele sabia bem a onde ela queria chegar.
— Eles estão bem?
— Estão ótimos! — Disse, batendo as mãos umas nas outras e vestindo sua jaqueta — Spencer evoluiu muito no violoncelo e Blake é o capitão do time de futebol.
— Eu adoraria vê-los.
— Sabe que isso não é possível. É perigoso.
— Mas eu sou a irmã deles! E sou maior, a guarda deles deveria ser dada a mim e não aqueles agentes que fingem ser pais deles. Vocês dizem que eles estão a salvo, quando os mantém como ratos de laboratório, esperando pelo momento que eles surtem e possam dizer que eles são como os pais deles.
— Não é bem assim. Miranda, você é só uma criança e acredite, esse é o melhor para os garotos.
— É o melhor pra ela também?
Niall congelou ao caminho de pegar sua bolsa, letárgico passou a alça sobre o ombro.
— Do que está falando?
— Eu estava revirando algumas coisas do meu pai esses dias e vi que... Vi que ele fez uma transferência para você, uma transferência no valor de cem mil dólares e eu não entendi o porquê de um agente do FBI tão bem financeiramente como você estaria precisando de tanto dinheiro e justamente de um gângster. Foi quando comecei a juntar as peças, você salvou a minha vida e ele tinha uma dívida com você e a pagou, e se você precisava de tanto dinheiro não podia ser por um motivo nobre, então eu rastreei suas contas e encontrei uma coisa...
— Você não tinha o direi-
— Por que você paga uma pequena fortuna na mensalidade de um internato?
O queixo de Horan caiu.
— E por que tem uma garota com o sobrenome Horan estudando lá se até onde eu sei você não tem filhos e se tivesse, por que escolheria logo Leslie como primeiro nome. Leslie Horan é a mesma Leslie Tomlinson que está enterrada ao lado do pai, da irmã e dos avós?
Por um momento, Miranda acreditou que pudesse ter cometido um engano e ele a faria se retratar, mas quando viu seu superior simplesmente dando de ombros, ela soube que havia descoberto um segredo.
— Estamos no FBI, se quiser me denunciar por sequestro, vá em frente.
— Eu não quero te denunciar. — Murmurou, sentindo-se culpada por ele considerar que ela fosse capaz disso — Só quero entender como isso aconteceu.
Niall parecia exausto, soltando o corpo em uma das cadeiras de veludo do auditório.
— Foi simples, eu não confiava nos pais dela, não confiava no Harry e não confiava no Louis, sabe bem o que eu acho sobre Andrômeda. — A garota assentiu, ciente de que Horan tinha a crença de que o casal dividia o alter ego de assassino. Ela era uma das iludidas que gostava de pensar em Louis como uma vítima — Seu pai tinha uma dívida comigo e enquanto estava diante daquele berçário, olhando aquele minúsculo bebê prematuro, a ideia surgiu e eu arrisquei tudo e felizmente deu certo, então é isso, eu sequestrei um bebê de seus pais e ocultei esse fato todos esses anos. E um dos motivos para querer ele aqui hoje foi justamente para ouvir todo esse absurdo pela milésima vez e concluir que tanto ele, quanto o Harry eram dois malucos que não tinham a menor condição de ficarem com aquela criança e eu fiz a escolha certa ao roubá-la. Agora me diga, o que pretende fazer sobre isso?
— Eu posso conhecê-la?
O pedido pegou Horan de surpresa, estava preparado para quaisquer ataques e ameaças, mas nunca um pedido como aquele.
Ele não teve outra escolha a não ser concordar, no dia seguinte, quando o sol ainda estava escondido pegou Miranda no estacionamento de seu apartamento, ela roía as unhas no banco do carona, Niall ergueu os óculos na cabeça e pensou em algum assunto.
— E o Zayn? Como ele está? — Revirou os olhos por detrás da lente. Onde falar sobre Zayn tornaria as coisas mais leves?
— Bem, a polícia não pegou ele ainda, da última vez que nos falamos ele estava em Istambul. — Respondeu aérea, passando para as unhas da outra mão.
— Parece divertido. — Suspirou, sabendo que não teria como tranquilizava, de certa forma a entendia.
Mia tinha dois pais bastante únicos e não podia manter sua vida e estar perto deles, assim como não tinha ideia de onde seus irmãos estavam, Leslie era a única coisa que lhe restava semelhante a uma família e Niall sabia que Mia também era a última pessoa de seu sangue acessível desde Gemma. De certa forma, uma era o que restava da família da outra.
Parando no sinal seu coração apertou ao se lembrar de Gemma e do repentino laço que construíram mesmo com ela atrás das grades. Se fechasse os olhos poderia reviver o dia em que adentrou ao presídio com seus passos incertos, se deixando conduzir até a sala de visitas onde Gemma mal sabia quem ele era, eles se conheciam tão pouco, mas ele precisava compartilhar aquilo com alguém. Ele só tinha vinte e poucos e sabia que tinha cometido uma loucura.
Ele havia se tornado um ladrão e precisava que alguém o absolvesse da culpa.
Apenas quando empurrou a fotografia sobre a mesa e disse quem era o bebê nela, os olhos de Gemma brilharam em entendimento.
— Eu sinto muito... — Se lamentou envergonhado.
— Não sinta, você fez bem. Fez muito bem.
E ali estava a sua absolvição. Depois disso suas visitas se tornaram frequentes, até que Leslie estivesse acompanhando-o também. Ele teria de fazer aquela visita de qualquer forma e dizer a garotinha o porquê não haveriam mais visitas a tia Gemma.
A vida depois de Louis Tomlinson fez dele um homem duro, áspero e desconfiado e se abrir com alguém havia se tornado uma tarefa mais complicada do que ele podia imaginar, mesmo assim, fez o seu melhor para contar de sua trajetória com Gemma e um pouco sobre Leslie.
— Ela tem sete anos e é uma criança fantástica. Quando era menor ela morava com a minha avó no campo, mas depois de maior achei que o melhor seria um internato, estar com outras crianças e tudo mais. Ela é muito imaginativa e adora trabalhos manuais, ela adora bonecas e principalmente construí-las do zero.
— Nossa, ela parece ser bem mais legal do que eu. — Mia disse, soltando um risinho depois de ter passado o caminho todo em uma bolha de tensão.
Eles chegaram até a escola, os olhos de Mia crescendo, ela já estudou em internatos, mas aquele parecia particularmente intimidador quando sabia que estava prestes a encontrar alguém que acreditava estar morta pelos últimos sete anos.
Sua irmã.
Ela tinha uma irmã, era tão surreal que ela precisou se beliscar quando Niall não estava olhando.
E por falar nele, todos o conheciam e pareciam se alegrar com sua chegada. A vice-diretora em pessoa os recebeu e lhes serviu xícaras de chá enquanto ia buscar por Leslie.
— Você é bem querido por aqui.
— Os privilégios de ser um pai solteiro. — Sorriu sob a borda da xícara, deixando-a de lado quando a porta se abriu e uma criatura pequena de longos cabelos castanhos pulou sobre ele.
Mia observava a cena com estranhamento. Ela nunca teve permissão para se jogar sobre seu pai.
— Ei, Lili! — Horan levantou a girando no ar e a garota gargalhou, se agarrando com mais afinco em seu pescoço, o rostinho achatado no ombro do homem enxergou a jovem sentada no sofá e franziu as sobrancelhas.
— Quem é ela, papai?
Niall voltou a atenção para Mia, trazendo Leslie para se sentar entre eles. Ela vestia o uniforme da instituição, a saia escura tocando o começo de suas meias brancas, o suéter azul parecia aconchegante e estava folgado na gola do pescoço onde colares de contas despontavam, os cabelos eram mais claros que os seus, Miranda notou. Eram no mesmo tom dos gêmeos, talvez um pouco mais escuros como os de Harry, mas seu rosto era inegavelmente idêntico aos dos outros dois, os mesmos olhos incrivelmente azuis e sardas castanhas descendo por seu nariz e bochechas, ela era uma linda menina e estava sorrindo quando ela encarou seu rosto.
— Meu nome é Leslie e o seu? — Perguntou, estendendo a mão para a mais velha.
Mia demorou um pouco para reagir.
— Miranda, Mia, na maior parte do tempo. — Respondeu, apertando a pequena mão.
— Mia? Sério? Que legal! Minhas amigas dizem que eu tenho nome de velha. — Ela franzia o nariz ao falar e Mia sorriu para isso, ela estava animada para conhecer cada detalhezinho de sua irmã caçula — Você é amiga do meu pai, Mia?
Um novo delay para se lembrar de que o pai ao qual ela se referia era Niall, que a olhava com um sorriso encorajador.
— Sim, nós somos colegas de trabalho.
— Você é detetive também?
— Sim.
— Que demais! Eu já quis ser detetive também, mas essa é a minha verdadeira vocação. — Animada, exibiu uma boneca de pano descabelada — Ela ainda está em processo de produção, mas sei que ela vai ser a melhor.
— E ela tem nome?
— Eu chamo ela de Ally.
— Querida, eu preciso te dizer uma coisa. — Niall tocou seu ombro, Leslie se virou para ele — A Mia não é só minha amiga de trabalho, lembra que eu te disse que você tem outros papais?
— Uhum, aqueles que já são anjinhos. — Ela assentiu, os grandes olhos atentos.
— Exatamente, a Mia é filha de um deles também, o que faz dela a sua meia-irmã.
— Ela é minha irmã?
Niall afaga seu cabelo com delicadeza.
— Ela é.
A menina olhou sobre o ombro, receosa.
— Eu não sei como é ter uma irmã.
Mia, que arranhava a gravura da xícara em um ato de ansiedade, se sentiu relaxar ao ouvir aquilo.
— Eu também não. Podemos descobrir juntas, o que acha?
O receio foi se afastando para dar lugar a um sorriso doce e comprimido em seus lábios rosados acompanhados das covinhas marcando suas bochechas sardentas.
Niall também se sentia esperançoso. Tudo ficaria bem, afinal.
Depois da visita inicial, Mia fez do internato sua parada constante, mesmo que por vinte minutos ela se comprometia em visitar a irmã, fosse para assisti-la em alguma atividade ou lancharem juntas e elas sempre ocupavam todo esse tempo conversando ininterruptamente.
Era uma tarde ensolarada e Leslie não teria mais aulas no dia, Niall deu a permissão para que ela pudesse sair com Mia e elas tiveram a ideia de um piquenique no parque, Leslie não sabia andar de bicicleta e ela achou que essa poderia ser a sua primeira missão como irmã mais velha. Ela idealizou muito disso naquela única noite que esteve com Spencer e Blake, ela não podia estar com eles, então faria o máximo para compensar todas as experiências perdidas com Leslie que parecia sempre tão animada para aprender.
Ela nunca experimentou tamanha felicidade quando viu a garota pedalando em sua direção, devagar e pendendo para a direita, mas nada sobrepujava seu orgulho.
— Da próxima vamos sem rodinhas. — Declarou se sentando na toalha e puxando Ally para o colo.
— Não precisa ser tão apressada, temos muito tempo. — Mia disse, sentando em posição de lótus, jogando a cabeça para trás, sentindo o sol beijar sua pele.
— Você conheceu meus outros pais né? O Louis e o Harry.
As folhas das árvores ao redor refletiam na iris de Leslie, o azul havia dado lugar a um tom esverdeado e a forma como ela olhava, as sobrancelhas retas e a vermelhidão abaixo dos olhos lhe causando arrepios ao trazer memórias esquecidas do passado. Ela não se lembrava de nada a respeito de seu sequestro, estava tão dopada que levou mais de um dia para acordar e quando o fez se recusou a forçar por lembranças, mas os olhos dele sempre estiveram em sua memória. Olhos malvados, foi o que registrou na época.
Não parecia certo que Leslie tivesse o mesmo olhar, ela não tinha nada a ver com Harry ou Louis. Ela era diferente, era melhor.
— Sim. Mas muito pouco. — Disse rapidamente — Então, o verão está chegando, onde vai passar as férias?
Um vinco se formou entre as sobrancelhas de Leslie.
— Com a vovó, eu acho.
— Que tal irmos à praia?
— Praia?
— Isso! Você quer?
— Claro que quero. — Leslie saltou, dando pulinhos animados.
Após bastante insistência, uma vez que Niall era do tipo super protetor e não estava preparado para abrir mão do controle absoluto dos cuidados com a filha, Mia conseguiu dois dias para viajar até a praia com Leslie.
— Tem tudo o que precisa? — Horan indagou, tentando abrir a mochila de Leslie e checar.
— Pai. — A menina gemeu sem paciência, apertando a mochila contra o peito.
— Okay, okay, desculpe. — Pediu, ajoelhando para ficar na mesma altura que ela e segurar seus ombros — Obedeça a Mia, se comporte e claro, se divirta bastante, meu amor.
— Pode deixar. — Ela sorriu o abraçando apertado — Até logo, papai, te amo.
— Também te amo, Lili.
Ele a deixou livre para andar até o carro e entrar no banco da frente.
— Sabe que está infringindo uma lei, não sabe? — Disse para Mia.
— Qual é? Eu vou ficar parecendo a motorista da baixinha aqui. — Leslie colocou a cabeça para fora da janela rindo do apelido.
— Certo, cinto de segurança, dirija com cuidado.
— Pode deixar, chefe. — Mia bateu continência, entrando no carro. As duas acenaram e o carro começou a andar.
Niall as assistiu se afastarem ansioso, porém contente que elas tivessem se aproximado e se dado tão bem. Isso era bom, era ótimo. Com um suspiro resolveu dar uma última olhada no quarto da filha, no caminho dos dormitórios encontrou cartazes espalhados pelas paredes. Uma garotinha tinha desaparecido. Ele não se lembrava de ter sido notificado sobre isso, preocupação queimou em seu peito com a possibilidade desse lugar não ser suficientemente seguro para Leslie.
O quarto estava silencioso e revirado, algumas roupas caídas no chão na pressa de Leslie em fazer as malas. Ele reorganizou tudo e se sentou na cama, os olhos caindo sobre a cômoda ao lado da cama da colega de Leslie, havia um porta retrato e a mesma imagem que estampava os cartazes, estava emoldurada.
Foi a coleguinha dela quem desapareceu.
Por que ela não disse nada... Por quê? Sua respiração ficou suspensa quando sentiu na ponta dos dedos algo pegajoso, o cheiro que ele não tinha se atentado até respirar fundo, ele puxou para o colo e a pilha de bonecas começou a despencar, ele sempre notou algo estranho nelas, mas essas em especial que ficavam mais ao fundo eram morbidamente únicas. Afinal, ele nunca viu uma boneca com pele, tocou novamente as costas da boneca, sentindo a maciez que só uma pele humana teria.
Ela foi costurada no pano e era morena como a da garotinha nas fotos.
Sentiu seu estômago revirar na hora, mas se forçou a seguir adiante, pegando outras bonecas e examinando-as. Ele não via nada tão grotesco desde que adentrou ao quarto de Nick Grimshaw e o encontrou sem o rosto. Isso era pior porque parecia não ter fim, haviam remendos de pele sobre panos, costurados com agulha, dentes infantis grudados em rostos sorridentes, uma das bonecas tinha olhos e a maioria era pesada porque dentro de seus corpos, entre o tecido e algodão estavam órgãos.
Niall teve que correr até o banheiro e vomitar. Ele deu descarga e enquanto estava de joelhos conseguiu ver por debaixo da cama da filha, aquilo era... Aquilo era a garotinha desaparecida. Ou o que restava dela.
Ele gritou, socou a porta e chorou, tão fortemente quando fez quando prendeu aquele que tinha como seu melhor amigo.
A sua filha. A sua princesinha, a sua doce Lili era um monstro.
Ela era como eles.
Apertou os olhos e foi como se o fantasma de Louis Tomlinson repetisse em seu ouvido aquilo que disse no hospital:
" — Tem certeza que pegou todos os monstros desta vez? Sabe o que dizem, os filhos tendem a ser piores do que os pais. "
Ele nunca pôde esquecer disso, por isso mantinha uma vigia rigorosa sobre os meninos. Ele sempre pensou que se houvesse alguém para se mostrar um herdeiro de Andrômeda seria um dos dois, particularmente suas desconfianças sempre estiveram sobre Spencer. Niall nunca conseguiu olhar nos olhos do garoto por isso, ao tempo que dedicava sua vida em adorar Leslie.
Ele salvou um demônio.
Apesar do golpe violento precisava reagir, não havia tempo para lamúrias. Se levantou e pegou o telefone, tentando contactar Mia, só chamava. Ele foi direto para o número do FBI.
— Preciso que fechem a estrada principal e localizem Miranda Malik, imediatamente. Ela está em perigo, tem uma assassina com ela. Mandem helicópteros, toda a frota, só cheguem até ela, agora.
Desligou e voltou a tentar ligar, rezando a todos os deuses para que Leslie tivesse sido acometida por um surto, que ela não fosse uma assassina compulsiva, que ela não estivesse planejando ferir a irmã. Niall não queria imaginar colocar o FBI para caçar uma criança, ainda mais uma criança sob a mira violenta de Zayn Malik.
Ele ligou de novo.
Leslie olhava a tela do celular brilhando, ele tremia no banco de trás. Ela puxou o casaco e jogou a blusa sobre o celular, fingindo casualidade.
Era um dia claro e ensolarado e Mia falava sem parar. Exigia muito dela não revirar os olhos e mandar aquela idiota calar a boca, ela queria arrancar a língua daquela vaca. Ela odiou Mia no momento em que a viu.
Ela não podia evitar, sempre foi ciumenta e não gostava da ideia de não ser única. Ter irmãos era ofensivo, ela sabia sobre os outros dois, infelizmente não sabia a onde estavam, mas torcia para que algo bem ruim acontecesse aos gêmeos.
Na maior parte do tempo torcia para que coisas ruins acontecessem com qualquer um.
Desde que conseguia se lembrar, ela era assim e não entendia, até que perambulando tarde da noite pelo internato encontrou sua professora dormindo na sala de descanso com um livro no colo, por curiosidade ela o pegou e quando virou a capa viu dois homens, os rostos dividos, ela não sabia quem eles eram, mas leu a história mesmo assim e quando terminou algo estranho começou a acontecer, ela começou a vê-los, por toda a parte, quando ela dormia e quando acordava, eles estavam lá. Quando seu pai disse o nome dos seus pais biológicos foi simples fazer a relação.
Eles estavam lá para garantir que ela continuasse o legado da família. Mas antes precisava eliminar os fracos.
— Podemos aprender a surfar, o que acha? Eu tentei uma vez, mas isso tem muito tempo.
— Pode ser. — Disse sem entusiasmo, tirando sua boneca da bolsa.
Mia olhou de canto de olho.
— Oh, ela está terminada?
— Sim. Ela está linda. — Exibiu a boneca, porém ainda sem cabelos.
— Você esqueceu de colocar o cabelo?
— Não, eu quero o seu. — Disse simplesmente, enfiando a mão na abertura das costas da boneca de pano.
Mia franziu as sobrancelhas, tendo dificuldade para se concentrar na direção e no que a menina dizia, ainda tinha o rádio ligado atrapalhando tudo.
— O que você quer meu? — Perguntou mais alto.
— A sua vida. — Leslie respondeu, e num movimento rápido se inclinou sobre o painel, a pequena mão empunhando uma faca e perfurando repetidamente a garganta da mais velha que mal pode ver os golpes vindo, suas mãos se atrapalharam sobre o volante, Leslie puxou a lâmina para cima, cortando parte do cabelo junto e aproveitando para virar o volante completamente, jogando o carro no canto da estrada onde sinalizadores indicavam uma obra sendo feita. Excelente.
Ela destravou a porta e saltou para fora, rolando pela estrada e caindo de costas, os cotovelos apoiados no asfalto quente quando o carro atravessou os cones e rampas, se chocando com a retroescavadeira. Foi um espetáculo explosivo, faíscas subiram e os gemidos das chamas não foram capazes de soar mais altos do que as gargalhadas da menina que assistia a tudo com um sorriso largo. Ela poderia rir para sempre, estava nas nuvens por se livrar daquela insuportável, nada poderia estragar seu humor. Enfiou os cabelos dentro da bolsa, reclamando dos joelhos ralados – fazia parte do ofício – , olhou atentamente pela estrada, encontrando sua fiel amiga jogada no meio fio, pegou a boneca suja e a ergueu em direção ao sol.
— Desculpe, Allicent, espero que não tenha se machucado. — A beijou e a apertou contra o corpo, contornando as chamas e correndo pela estrada, ritmadamente com seu passo, o sorriso e a expressão de satisfação foi se modificando, como um boneco de cera na chama de uma vela, os lábios foram caindo, as pálpebras se fechando e o brilho dos olhos se tornando opacos e fundos. Quando avistou o caminhão surgindo de uma encruzilhada, ela estava chorando e soluçando, como uma criança perdida qualquer. O homem estacionou, ele tinha um aspecto grosseiro e a olhou com pouco caso.
— O que faz no meio do nada, pirralha?
— E-eu me perdi, pode me ajudar, senhor?
Ele abriu a porta, mas não a ajudou a subir. Não é como se ela precisasse de adultos.
— Para onde?
— Sanatório W. Lincoln, Atlanta, Geórgia. — Respondeu com naturalidade.
— O quê? Sanatório? Que porra...? — Ele congelou ao perceber que os olhos dela estavam sobre sua tatuagem no pulso, as correntes trançadas.
— Você sabe do que estou falando. — Ela afastou as pulseiras do braço, exibindo não uma tatuagem, mas o desenho das mesmas correntes, só que feitos diretamente na pele sob a lâmina afiada. O homem engoliu em seco — Agora dirija.
— Sim, sim. — Atendeu prontamente a ordem — Indo ver alguém em especial? — Ele sabia bem quem estava no tal sanatório.
— Meu pai. Ele tem lindos olhos azuis, eu os quero para a minha boneca. — Leslie pega o estremecimento nas mãos do homem sobre o volante — Sabe, nem sempre o protagonista dá nome a história. Os melhores ficam nas sombras.
— O que é isso? Você é protagonista de alguma história?
— Não, mas estou trabalhando nisso. — Ela se estica para ajeitar o retrovisor — Tenho um legado para superar. — E sorri, se acomodando no assento, voltando a olhar para o retrovisor no momento em que capta olhos azuis e verdes a encarando de volta.
Seu sorriso cresce e ela tem certeza de que sente Allicent vibrando de empolgação em seu colo.
"Se você olhar para a face do mal... O mal estará olhando de volta." - AHS
Fim.
Ou seria só o começo?
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