│28│triangulum
George está correndo atrás de uma borboleta. Suas pantufas afundam na grama molhada, em algumas partes há um lamaçal depois da madrugada chuvosa, os outros estão na quadra, rindo de um palhaço, mas George não, ele está empenhado em pegar aquela borboleta que voa baixo com o único propósito de provocar, mostrar a aquele velho homem que ele não é capaz de pegá-la por mais que ela facilite. Eles não estão no mesmo nível.
Ele sempre estará muito abaixo, tão ridiculamente inferior que sequer vale o esforço da borboleta voar mais alto. Mesmo que ela pousasse no chão, George não conseguiria apanhá-la.
Existem coisas que sempre escaparão de nossas mãos.
George é um dos internos da Enfermaria 2, onde a maioria dos idosos fica, aqueles que são os mais dóceis, por assim dizer. Eu só sei seu nome pela costura no bolso de sua camisa, fora isso, nunca tivemos qualquer tipo de contato. Ao menos não que eu seja capaz de lembrar.
Já faz algum tempo que minha memória não anda bem. Não sofri um apagão completo, mas muita coisa está em confusão, um tanto embaraçado, não sei ao certo.
Enquanto as sessões durarem será assim, pelo menos estamos no fim. E segundo o que dizem, serei um novo homem ao fim do processo.
Espero que isso signifique algo bom, uma vez que não tenho certeza de que tipo de homem vinha sendo.
Então, me sento na janela, quieto e distante, apenas observando o mundo afora ou o que é possível de se ver dos jardins. Essa instituição é todo o meu mundo agora.
A borboleta de George acaba se cansando daquela estúpida perseguição e resolve descansar, suas pequenas asas batem, levando-a até um lugar para ter seu merecido descanso, coincidentemente ela pousa na minha janela. George desiste e volta para a quadra e eu estico o pescoço, admirando de perto o inseto do outro lado do vidro.
Tenho a sensação de déjà vu, como se já tivesse feito isso milhares e milhares de vezes. Estreitando os olhos e tentando desvendar todas as nuances do que for, de observar com tanta atenção ao ponto de saber o ritmo de sua respiração ou a forma que seus cílios tremelicam ao piscar. Eu lembro de ver o mesmo verde deste pequeno par de asas em olhos manchados de delineador quando acordei depois da primeira sessão de ECT.
Não o reconheci, mas sabia que o conhecia. Ainda estava meio grogue por conta da sedação, pisquei devagar, lutando com minhas pálpebras pesadas, meus braços e pernas estavam amarrados por faixas de couro na cama, uma fivela bem no centro do meu peito e tudo o que podia fazer era mover o pescoço e foi o que fiz quando o ouvi falar comigo.
— Olhe só para você. — Um timbre rouco soou bem próximo ao meu ouvido, foi quando notei como ele estava próximo, uma unha esmaltada de preto estava roçando por um dos cortes em minha bochecha, pressionando os pontos e provocando uma ardência incomoda. Apertei os olhos, incapaz de pedir que ele parasse — Oh, isso dói? Desculpe.
Mas ele continuava a arranhar minha cicatriz.
— Já ouvi que o casamento muda um homem, às vezes o arruína, mas você alcançou um nível completamente inédito, Louis Tomlinson.
Louis Tomlinson, naquele momento eu não lembrava que aquele era o meu nome.
De perto, assimilei que sua aparência não me era estranha, os cabelos escuros, castanho com pequenas ondulações, uma mecha caia por sua testa, acima das sobrancelhas retas, havia algo sobre suas pálpebras, um brilho levemente dourado, como nas maçãs de seu rosto, a boca era bem delineada e rosada, toda vez que ele falava vinha consigo um ligeiro repuxar – como um hábito inconsciente – a linha d'água de seus olhos pintadas de preto, dando a seus olhos um aspecto sombrio, perverso, não que ele parecesse precisar, eu podia sentir a maldade irradiar dele.
— Me informaram que você não consegue falar por enquanto, mas sei que está me vendo e ouvindo muito bem, então, permita-me agradecer pelo imenso favor. Eu não queria a coisinha molenga, aquela tal de Leslie, aquilo era um só mais um dos surtos daquela boneca maluca. Graças à você, elas não podem me incomodar mais, porém, todo o meu trabalho, a minha obra-prima, tudo foi atribuído a você e aquela vadia. Pode me chamar de ciumenta, mas nunca gostei de dividir os holofotes, todos me veem como uma vítima e pra mim, isso é pior do que a morte. — Diz de maneira casual, enquanto sua unha para de apenas raspar e impõe força, criando uma nova ferida logo abaixo da cicatriz. Ergo os olhos em direção a câmera, mas ela está escondida atrás do corpo grande sobreposto ao meu — Mas não importa o quanto tenham tentado fazer isso tudo ser sobre você, porque mesmo que eu morra ou milhares de anos se passem, quando contarem essa história, quando estiverem em seus lares acreditando estarem seguros e sentirem um arrepio na espinha ao ouvir um galho batendo contra a porta dos fundos, quando ouvirem o som de correntes ou pensarem em um serial killer no século vinte e um, só existirá um nome e não será Louis Tomlinson e sim Andrômeda. Você pode ficar com a glória, mas sou eu quem viverá por toda a eternidade.
Depois disso, nunca mais o vi. Atualmente tinha mais clareza quanto a quem ele era, Harry, meu marido, mas não tão exatamente assim.
Talvez se não precisasse tomar tantos remédios e pudesse ouvir meus pensamentos as coisas se encaixariam.
Quando disse isso a Dra. Turner ela discordou.
— Você está melhor do que nunca, livre de alucinações ou tormentos, o tratamento tem funcionado e interrompê-lo agora te colocaria em um quadro irreversível. Essa é a sua última chance de voltar a ser você mesmo.
Eu mesmo... Quem eu era de verdade? Continuei pensando a respeito, olhando para a borboleta. Algumas perguntas não possuem respostas, foi o que concluí naquela tarde.
Os dias seguiam se misturando e eu vinha desenvolvendo uma boa convivência com meus colegas. Phil e eu nos tornamos bons amigos e a noite usávamos sua lanterna para fazer formas na parede. Segundo a Dra. Turner aquilo era algo que o velho Louis jamais faria.
Em alguns dias, Niall vinha me visitar, falava brevemente sobre o mundo exterior – ele havia sido instruído a não fazê-lo, mas ele não era mais tão obediente.
— Ainda tem estado confuso? — Ele perguntou. Eu não conseguia desviar a atenção de seus dedos indo o tempo todo para seus cabelos, ele estava se acostumando com os fios escuros e mais longos do que antes.
Ele me disse que Hailee gostou bastante e até a postura de seus colegas de trabalho havia mudado, claro, Niall não parecia mais um menininho oxigenado perdido no FBI, ele parecia um agente.
— Um pouco, sim. Acho que estou pensando como um ser humano comum pela primeira vez na vida.
— Não fale assim...
— É a verdade, eu estava num limbo de desordem, agora as coisas estão se ajeitando e começo a me sentir racional e focado.
— Isso é ótimo, chefe! Ah, isso me lembra... — Horan olha sobre o ombro e diminui um pouco da distância entre nós — Talvez tenha uma acusação retirada.
— Como?
— O Clifford. Eu não estou no caso, mas ouvi boatos de que um copycat fez aquilo com ele.
— O quê? — Tento me manter centrado e não deixar que minha mente vagueie.
— Pois é, o Luke estava organizando algumas coisas dele e encontrou vários bilhetes, e-mails e "presentes", pareciam ser coisas antigas do Michael, seguindo o rastro encontraram um Stalker. Um cara esquisito que o persegue desde o tempo da faculdade. No interrogatório ele disse que mandou uma mensagem para o Michael se encontrar com ele, por isso ele estava naquele velho asilo, e quando o homem viu que não teria seu amor correspondido partiu para o plano B.
— E por que ele confessaria isso agora?
Niall me olha daquele jeito, a resposta óbvia.
— Andrômeda tem tido tanta repercussão assim? — Indago com um suspiro cansado.
— Só se fala nisso. Gemma é a pessoa no corredor da morte mais procurada da história, o que não fazem para conseguir uma exclusiva com ela. Tem repórteres plantados na porta da sua casa. É um milagre que eles ainda não tenham conseguido invadir esse lugar, até atrás de mim eles tem vindo.
— É claro que esse cara só quer ter os cinco minutos de fama dele. Ele não matou o Michael, foi Andrômeda, ela me confessou isso.
É evidente como Horan muda sua postura, ele abaixa a cabeça e engole em seco.
— Seja como for, é uma acusação a menos para vocês.
Mordo os lábios, tendo um instante de impaciência.
— Se não acredita na minha inocência, por que continua vindo aqui?
— É claro que acredito na sua inocência. — Retruca ofendido.
Eu é quem deveria estar ofendido.
— Mas não acredita em nada do que eu digo. Quanto tempo mais vai conseguir se manter em cima do muro? — Não queria ser tão ríspido, mas internamente eu vivia irado, com o mundo, com todos.
Espero por uma resposta que não vem. Invés disso, Niall se levanta e toca meu ombro, como sempre fazia ao se despedir.
— Eu estou do seu lado. — Diz antes de sair, mas só consigo discernir sua total falta de certeza.
Xx
Apesar do meu descontentamento com Niall, tudo segue normal. Ao menos dentro do esperado em uma instituição psiquiátrica para criminosos. Continuo tomando meus remédios, terei minhas duas últimas sessões em pouco tempo e depois disso poderei voltar a normalidade, evitar o poço de descontrole e loucura no qual vinha me enfurnando. O que me preocupava era a possibilidade de sair daqui, já havia me adaptado e até feito alguns amigos.
Consegui ensinar alguns dos meus colegas a jogarem basquete e eram quase razoáveis.
Decorei a maior parte das falas dos filmes e as recitava junto com o ator, eles morriam de rir.
Aprendi a jogar xadrez e li mais livros aqui do que fiz a minha vida inteira.
Minha mãe trouxe uma foto dos meninos que eu colei ao lado da minha cama, eu lhes dava boa noite e fingia estar em lugar nenhum quando sonhava, isso vinha funcionando muito bem, até aquele dia.
Tínhamos um livro de aves sobre a mesa e Roger, que estava tentando aprender a ler, passava o dedo sobre as letrinhas abaixo da foto de uma ave vermelha.
— Ca-card... Cardinal, não, não, Cardinales-les.
— Lis. — Corrijo.
— Cardinalis Cardinalis.
— Isso! Muito bem, Roger! — Batemos palmas o felicitando.
E é quando nossas palmas são sobrepujadas pelo impacto da porta de entrada da Enfermaria se chocando com a parede quando a última pessoa que eu esperava rever adentra o local. Zayn Malik está diferente do usual.
Ele não exala confiança e tranquilidade, seu ar de superioridade não o acompanha desta vez. Seu sobretudo está amassado e os cabelos caem por seu rosto transtornado, olhos injetados e raivosos se fixam em mim, ignorando os enfermeiros que tentam impedi-lo de se aproximar.
— O senhor não pode ficar aqui.
Zayn não lhe dá ouvidos, se desvencilhando e chegando até mim. Ele ignora os demais que o olham praticamente hipnotizados e me agarra pelos ombros, me pondo de pé e me chacoalhando.
— A onde ela está? Cadê a Miranda? Onde está a minha filha? — Indaga, sem conter as lágrimas que escorrem por seu rosto. Zayn engoliu um soluço, apertando os dedos ao redor dos meus braços — Cadê a Mia, Louis?
Mia...
Cadê ela?
— Eu não sei. — Digo confuso.
Ainda tenho lembranças emaranhadas e Mia não surge como uma imagem vívida. Eu não consigo assimilar exatamente a quem Zayn está se referindo e me sinto terrivelmente culpado por isso.
— Você- Isso é culpa sua! — Grita, me soltando e agarrando os cabelos — Você não protegeu a outra criança e agora ele quer a minha! Eu sabia, eu deveria ter percebido que tinha algo de estranho nele, ele disse que a tomaria de mim. Imbecil, eu sou a porra de um imbecil.
— Ele quem?
Zayn congela por um instante, voltando a olhar para mim.
— Harry. Seu marido, ele sequestrou a Mia. — Percebendo o meu fracasso em recordar, Malik se inclina, deixando o rosto na altura do meu, o inchaço e vermelhidão provocados pelas lágrimas não escondem a severidade de seu olhar ao dizer: — Sua filha, lembra dela? É melhor que lembre e que dê um jeito de trazê-la de volta para mim, porque já estou atrás dele e eu vou achá-lo e o farei pagar, mas se antes disso algo acontecer a ela. Se ela sangrar, eu farei com que o Blake e o Spencer sangrem muito mais.
Sinto meu corpo inteiro estremecer.
— Zayn, por favor, não precisa envolvê-los nisso. Eles são só bebês, eles não tem nada a ver com isso.
A forma raivosa com a qual reage é como se ele entendesse que estava dizendo que a vida deles valia mais do que a dela.
— Não, a Mia não tinha nada a ver com isso. Ela é a inocente em toda essa merda e a arrastaram pra isso, então que se foda. Encontre uma forma de me devolver a minha filha, senão eu acabarei com a raça de todos que cruzarem o meu caminho e isso inclui os seus filhos, eu fui claro?
— Foi. — Engulo em seco.
Malik me dá as costas e sai por conta própria, os passos rígidos ecoando pelos corredores amplos. Leva um tempo até que alguém pergunte:
— Ele fez uma ameaça, ninguém vai notificar a polícia?
Um riso fraco, outro enfermeiro responde:
— Você não sabe quem é aquele cara? Nem a polícia mexe com ele.
Mas "Harry" ousou mexer e acertou Zayn bem em seu calcanhar de Aquiles.
Automaticamente tudo se transformou. Não parecia haver a possibilidade de uma convivência pacífica, de uma nova vida. Eu tinha um assunto inacabado lá fora, um monstro que eu ajudei a criar e que agora atacava de modo irracional e mais do que nunca, colocava inocentes em risco.
Nem Mia, Spencer ou Blake poderiam pagar pelos nossos erros.
Minha cabeça estava retomando o ritmo frenético, mas não deixei transparecer, continuei calmo e às vezes aéreo, enquanto escondia os comprimidos debaixo da língua e os jogava na privada mais tarde. Sem a medicação tudo foi voltando, com mais força do que nunca.
Eu me sentia pior do que nunca.
As noites eram passadas em claro, eu reconstruía cada pedacinho, cada detalhe de toda a nossa história, pensando e repensando sobre cada personagem, cada palavra, cada ação e consegui encontrar a solução para uma antiga incógnita. Zayn não era o único com um calcanhar de Aquiles.
Niall demorou um pouco até poder me visitar novamente.
— Desculpe, tem sido uma loucura.
— Vocês estão atrás do Harry?
— Ele está sendo procurado, mas é complicado, fazem vista grossa, dizem que é um surto. Ele perdeu um bebê e agora está se agarrando a sua filha ilegítima.
— Harry poderia matar alguém em praça pública e encontrariam uma forma de colocá-lo como coitadinho. — Resmungo, apertando meus dedos sobre a mesa, torcendo para que Niall não percebesse que voltei a ser inquieto.
— Bem... — Ele suspira — segundo testemunhas, ele buscou a Mia no colégio, ela disse aos colegas que iria ver o pai policial dela...
— Ele mentiu para ela dizendo que a traria pra me ver?
— Sim, a última vez que ela foi vista foi entrando no carro dele. Duas horas depois o carro foi encontrado, estava em chamas, sem corpos, mas não haviam rastros. Zayn foi menos elegante, ele mandou homens armados até a creche dos seus filhos e o guarda foi baleado.
— Meu Deus.
— Mas estamos confiantes, vamos encontrá-la, tem alguma ideia de onde ele poderia estar se escondendo?
E por que eu diria? Luke e Nick eram aliados de Harry, Nick principalmente, e ele não hesitaria em matar Mia e se ele matar Mia, Zayn vai matar os gêmeos.
Sem falar da possibilidade dele ser encontrado pelo FBI antes, tratado como uma vítima, receber uma identidade falsa e sumir das minhas vistas onde ele poderia recomeçar sua matança novamente e ninguém o impediria.
A única forma de encerrar essa história é comigo matando ele.
— O FBI vai protegê-lo e Zayn não vai descansar enquanto não matá-lo. Não importa que caminho seguir, pessoas inocentes vão se machucar.
— E o que sugere?
— Me ajude a sair daqui.
— O quê? — Horan automaticamente recua, olhando para os lados, temeroso que alguém mais tenha ouvido — Você enlouqueceu ou o quê? Eu não posso-
— Você sabe que eu estou certo, Irlanda! A única coisa que falta decidir é, ou você acredita que eu sou Andrômeda ou o Harry. Escolha em quem você acredita, é o que resta. Ou tem um monstro à solta ou você está prestes a soltar um.
Não é uma decisão simples, eu nunca exigiria algo assim se não houvesse outra saída, mas diante das circunstâncias nos faltam opções.
Ele abaixa a cabeça, sendo atordoado por seus pensamentos conflitantes e por fim, chega a uma decisão.
— O que você quer que eu faça?
Quase suspiro de alívio.
— Preciso que haja um problema nas câmeras, trinta segundos são mais do que o suficiente. A segurança é fraca durante a noite, não contam com a capacidade de loucos escapando, então só preciso dessa brecha e um carro.
— Certo. Posso conseguir isso, mas sabe que quando for pego novamente...
— Eu sei.
— O capture, vamos tentar conseguir uma confissão. — Fala objetivo, de repente parando e arqueando a sobrancelha, como se precisasse tirar uma última dúvida — Está mesmo disposto a fazer isso?
— Farei o que for necessário. - Garanto.
— Bom, então, essa noite você voltará a ser um homem livre, detetive Tomlinson.
Xx
Passo o restante da tarde e início da noite remoendo a ideia do que está prestes a acontecer, quando aceitei minha pena nunca tive a intenção de escapar ou fazer qualquer coisa que pudesse colocar Niall em risco e agora eu o tinha arrastado para o fogo cruzado. Pouco a pouco se pintava com mais nitidez o velho Louis e sabia que ele estava diferente, bem mais medonho do que antes.
A sirene tocou, indicando que era hora de nos recolhermos. Recebemos nossos remédios e um boa noite. Escondi o meu embaixo do travesseiro e fingi estar dormindo.
Durante a madrugada alguém sempre passava pelos quartos, aplicando uma injeção de calmamente para o caso de alguém estar lidando com insônia. Quando ouvi o ruído da porta e Matthew colocando o rosto na janelinha, acenei, fingindo estar com dificuldades para dormir, ele entrou, empurrando seu carrinho, ele se aproximou de mim, tagarelando como sempre e empunhando a injeção na outra mão. Olhei para cima e vi a luz vermelha piscar e então se apagar. Era a minha deixa.
Tudo já havia sido esquematizado na minha cabeça, era uma equação simples. Eu só não contava que Matthew fosse habilidoso o bastante para saber reagir quando torci seu braço e o prendi em um mata-leão, ele conseguiu resistir e vinha afastando meu braço de seu pescoço.
— Louis, não faça isso!
— Eu queria não precisar. — Rosnei, lutando para conseguir apagá-lo. Não vai funcionar — Você não vai me deixar sair daqui, não é?
— É claro que não. — Matthew ofega.
— É uma pena.
Desisto do golpe e quando ele pensa que me dei por vencido, quebro seu pescoço. O homem desaba aos meus pés.
Ele era um bom rapaz que teve o desprazer de cruzar com um homem ruim.
Suspiro, esperando sentir remorso ou culpa e não sinto nada, sequer temor de não conseguir agir a tempo. Como planejado, tiro suas roupas e as visto, colocando nele as minhas, o puxo para a cama e o cubro, quando as câmeras retornam, estou de costas para elas, empurrando o carrinho para fora e trancando a porta. Como esperado, não há guardas extras, apenas um enfermeiro do outro lado da grade, na entrada da Enfermaria 6.
Continuo empurrando o carrinho, cabisbaixo. Matthew teria de ir para outra cela, mas meus planos são mais diretos e entro no posto, o responsável por fazer o plantão da madrugada está dormindo, a cabeça jogada para trás e a as pernas esticadas sobre o balcão, puxo algumas seringas para dentro do bolso e as chaves.
Deveria agir o mais rápido possível, porém não tenho forças para ignorar quando enxergo a pasta com meu nome alinhada na estante, pesco o arquivo passando os olhos rapidamente. Apenas mais do mesmo. A última anotação da Dra. Turner não me surpreende, mas aborrece.
"Provocar uma reação com a história de um suposto amigo de infância com TDI."
Suposto amigo? Era assim que ela se referia a uma mentira? Claro que ela era uma mentirosa que só estava brincando comigo, bagunçando com a cabeça de um pobre louco. E eu quase acreditei...
Malditos. Todos eles. Largo o arquivo e saio.
Eu consigo sair pela porta da frente, sem mais problemas, no entanto é mais complicado do que presumi passar pelo pátio.
Dois guardas armados estão atentos, armas em punho, patrulhando. Um mais próximo ao jardim onde George estivera perseguindo a borboleta. Me esgueiro entre a relva até conseguir dar o bote, pegando-o de surpresa, a agulha perfura seu pescoço e ele tomba no meu colo, o arrasto para trás das moitas onde não seja visto com facilidade.
Com o outro guarda não é tão simples, ele está andando próximo ao portão e sem ter como chegar de surpresa, finjo ser um simples funcionário, me aproximo pedindo por um cigarro.
— Espere um pouco. — Pede checando os bolsos e arrisco erguer o rosto, apenas para saber o quão marcado já estou. Ele me reconhece na hora e ergue a arma, felizmente o pego com o taser antes de levar um tiro na testa, ele convulsiona por alguns segundos no chão até apagar por completo.
Depois disso, basta roubar seu revólver e uma faca, feito isso, o arrasto até empurrar seu dedo contra o identificador que libera o portão. O guarita teria feito perguntas se eu não estivesse escondido sob o quepe e a jaqueta de policial. Caminhei em passos comedidos até não poder mais ser visto e então disparei até o beco onde instrui que Niall deixasse o carro, a chave estava presa atrás do pneu, um carro simples que não chamava a atenção. Excelente. Entrei afoito e enquanto dava ré pensei no que fiz e no que iria fazer.
Não importa de qualquer forma, eu cheguei ao ponto em que não existe mais como retornar, a vida que eu tinha, o homem que eu era, tudo isso se foi.
Engulo com amargor e dirijo. O pré-pago no porta-luvas começa a tocar, mas não tenho nada a dizer para Niall. Eu já o meti em confusão o suficiente.
Xx
Não sei ao certo para onde estou indo até que adentro uma rua movimentada, pessoas indo e vindo por toda parte, música alta e luzes brilhantes. O perfume de maconha embalando o ar da vida noturna e deixo a roupa de policial para trás, acreditando que chamarei menos atenção vestido como um enfermeiro. Mexem comigo, mas não dou bola, caminhando obstinado até uma loja envidraçada, caveiras e imagens com chifres estampadas nas vitrines.
Olho ao redor, roupas pretas, coturnos, máscaras, é do que eu preciso para sumir.
Mas antes disso um rapaz se aproxima de mim.
— Precisa de alguma coisa?
— Não, eu só-
— Aí meu deus. — Ele berra de repente, como se visse uma assombração — Andrômeda!
— O quê? — Aperto o taser no meu bolso.
— Você é Andrômeda! Cassandra, Amber, venham já aqui.
Duas garotas surgem detrás das cortinas de veludo, mesmo sob todo o rímel e cílios postiços posso ver seus olhos se arregalando em reconhecimento. Que porra?!
— Eu não sei do que está falando, você deve estar me confundindo. — Enquanto falo ele já está negando com a cabeça e revirando algo em seu balcão e então me lança uma Rolling Stones e é a minha maldita cara estampada nela — Caralho!
— Viu só? É você! Eu te reconheceria em qualquer lugar.
Respiro fundo, meus dedos trêmulos ao soltar a revista.
— Certo, eu só vou sair daqui e-
— Sair por quê? Você fugiu, não é? Precisa de alguma coisa? — Uma das garotas se adiantou em dizer.
— Sim! Pode ter o que quiser daqui. — A outra acrescenta.
— Senhor, somos grandes fãs do seu trabalho. Você é tipo o nosso ídolo. — O rapaz voltou a dizer.
— Vocês... Vocês são meus fãs? — Digo com certa repulsa.
— Com certeza, o que você fez com aqueles merdas da burguesia, ensinou a eles. Isso acontece com gente como nós todos os dias e ninguém liga, mas quando os cheios de grana e metidos a besta começaram a se sentir em risco dentro de suas mansões todo mundo deu a maior atenção. Você deu a eles um motivo para temer, sabe aquele Atkins? Ouvi dizer que ele abusava de criancinhas, ele teve o que mereceu graças à você.
Encaro seus olhos encantados, é nítida a completa devoção que eles nutrem por mim, quer dizer, não por mim exatamente, mas por Andrômeda, pela imagem santificada dela que eles pintaram em suas cabeças. Assim como o casal O'Neil. Andrômeda tinha a sua horda de adoradores e se eu pudesse usar isso a meu favor, o faria.
— Certo. Então, consigam roupas novas para mim.
— Claro, senhor! — Assentiram, agindo prontamente.
Minutos mais tarde estava me olhando no espelho do trocador de sua pequena loja punk, ajeitando a gola do sobretudo, Cassandra e Amber praticamente imploraram pela honra de amarrar os cadarços das minhas botas. Toquei meu rosto pensando no quão fácil todos me reconheciam.
— Precisa de mais alguma coisa, senhor? — O rapaz, que eu descobri se chamar Sean, perguntou.
— Na verdade...
Um pouco depois, tornava a encarar meu reflexo, desta vez com o cabelo preto recém pintado e úmido caindo no meu rosto, um piercing na sobrancelha e outro na boca.
— Você parece diferente.
— Ótimo!
Eu não tinha tido nenhuma mudança radical, mas não parecia destoar tanto de qualquer pessoa vagando por aquela rua. Amber estava ao meu lado retocando o batom e foi quando sua língua despontou que notei uma coisa.
— Eu quero aquilo. — Indico ao que me refiro.
— Ah, se você quer, tudo bem, pode doer um pouco e...
— Não importa e eu mesmo farei.
Ele me olhou chocado, mas não discordou, apenas me deixou seguir em frente e foi o que eu fiz e merda, não doeu porra nenhuma, nenhuma mísera sensação, mas ao fim da minha arte eu tinha repartido parte da minha língua. Cassandra deu os toques finais para que eu não acabasse morto e depois disso, sabia que estava pronto.
— Porra, você é tão gostoso que eu te deixaria me matar como quisesse. — Sean disse, se inclinando na bancada da mesa, enquanto eu carregava a arma.
— Eu não sou conhecido por esperar pela permissão de ninguém. — Retruquei distraído, umideço os lábios, ainda estranhando a sensação — Esse é o tipo de coisa que um agente do FBI não podia fazer. Mas ao fim disso tudo, eu quebrei absolutamente todas as regras.
— Você é incrível mesmo! — Ele sorriu e eu dei de ombros. Seus olhos caíram sobre a tatuagem exposta em meu pulso — Ah, quando descobrimos quem você era, fizemos algo, é como identificamos aqueles que estão do lado de Andrômeda. — Sean puxa a manga da camisa, exibindo uma tatuagem quase igual a minha, a diferença é que ele trocou a corda por uma corrente — Legal, né? Todos nós temos uma.
— Não ficou horrível.
Mesmo com meu completo desprezo, ele continua sorridente.
— Eu queria saber... Por que uma corda?
— Eu costumava estar preso a uma âncora.
Ele não entende e eu não explico.
Em algum lugar Nazareth começou a tocar, a cantoria chorosa de Love Hurts sempre me deu nos nervos, no entanto, dessa vez coloca um peso em meu peito e quando coloco a última bala, Sean me olha intrigado.
— Por que está chorando?
Sinto as lágrimas salgadas deslizando pelo meu rosto e balanço a cabeça como se pudesse espantá-las.
— Eu vou matar o amor da minha vida essa noite.
— Não tem outro jeito?
— Não, não tem! Agora vá fazer o que eu mandei, temos que entrar naquele lugar o quanto antes.
Sean assente e sai e quando ele o faz, fecho a porta da pequena salinha e caio miseravelmente no chão, chorando pela última vez que sou capaz de lembrar. A última vez que me permiti ser humano. A última vez que senti.
Se a canção estivesse certa, se o amor fosse isso, sofrer e sentir dor. Isso significa que eu amo e amei mais do que qualquer.
O amor me dilacerou, corroeu até o fundo da minha alma e não consigo evitar de me lamentar em perdê-lo.
E como um adolescente desiludido eu choro, encolhido e envergonhado pensando no garoto que acabou com a minha vida.
Amar te torna um verme.
Quem sabe depois que eu exterminá-lo volte a ser algo mais do que um remendo de gente ou eu simplesmente me acabarei nesse poço de humilhação.
Só saberei a resposta ao alvorecer quando tiver seu corpo sem vida em meus braços, quando restar apenas o meu coração batendo.
Ele será capaz de continuar batendo quando o seu silenciar?
Deixo a sala, encontrando tudo o que pedi. Os apoiadores, fãs, imbecis com sérios desequilíbrios mentais, foda-se como se denominam. Há mais de dez deles diante de mim, vestidos exatamente como eu.
— Hora de acabar com essa merda. — Suspiro, colocando a minha máscara e me misturando entre as minhas diversas cópias quando deixamos a loja.
Eu só terei essa noite e nunca mais.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro