│20│norma
"Talvez não haja nada
depois da meia noite
Que possa fazer você ficar
E agora estou em pedaços
E agora você sabe disso"
5Seconds of Summer - Jet Black Heart
...
O volante está coberto de sangue quando afasto minhas mãos dele. Estou diante da casa de Anne, a lua cheia brilhando as minhas costas, mas existe uma sombra sobre mim quando atravesso o jardim, esmagando suas rosas sob minhas botas enlameadas.
Não há ninguém na sala ou na cozinha, o silêncio denunciando que foram todos se deitar. Eu deveria fazer o mesmo, deveria, no entanto me mantenho obstinado, subindo até o segundo andar onde o nosso quarto de hóspedes tem a porta entreaberta, conforme me aproximo consigo visualizar Harry deitado na cama, os olhos quase que totalmente fechados, Spencer em seu colo, segurando uma mamadeira vazia e completamente apagado, apenas o ruído baixo da TV rompendo com a plenitude.
Parei ao lado da porta, deixando apenas parte do rosto visível.
— Harry, Harry! — Chamei baixo, esperando que ele ouvisse.
Logo seus olhos se abriram e ele se arqueou um pouco, como se tivesse se assustado.
— Lou... — Disse rouco, esfregando os olhos.
— Vem aqui.
Harry assentiu, deitando Spencer na cama e pegando a mamadeira. Os seus passos contra o piso eram praticamente inaudíveis e o pijama estava mais justo na barriga, ele vinha como a personificação da inocência. Eu me deixei levar tantas vezes pelo teatrinho de dono de casa dedicado e inofensivo que me esqueci completamente que Harry era capaz de muito mais.
Assim que ele fechou a porta e me seguiu quando me afastei, eu perdi o controle. Era como se não tivesse poder sobre mim mesmo e contra a minha vontade meu punho se fechou e eu acertei seu rosto.
O som de Harry caindo no chão e a mamadeira rolando pela escada retumbou por toda a casa. Finquei os dedos na parte de trás de sua cabeça, o puxando para cima pelos cabelos e o jogando contra a parede. Ele estava exatamente como eu esperava, apavorado e confuso, lágrimas caindo por seus olhos sem a companhia de qualquer soluço e a boca sangrando pelo impacto do soco.
— Louis, o que é isso? — Sibila, a respiração descompensada — Você está m- — O empurro com mais força contra a parede, propositalmente batendo suas costas, automaticamente a mão vai em direção a barriga e a encontro no caminho, virando seu pulso, é evidente em seus olhos o instante em que ele está prestes a gritar, então tapo sua boca, tendo os olhos vidrados de horror fixos em mim.
— Não ouse chorar sua vadia imunda, se soubesse o que eu tenho vontade de fazer com você agora. — Digo em tom baixo, Harry se agita, tentando se soltar e o prenso mais firme, as lágrimas caem em abundância sobre minha palma — Você deve ter achado tudo isso hilário, me julgando todos esses anos e me tratando como se eu fosse um monstro enquanto você fazia bem pior. Foi divertido zombar de mim? Me ver como um trouxa que acreditava em tudo o que você dizia? — Pego o papel do bolso, o balançando diante de seus olhos — Está vendo isso? Me explica essa merda direito!
Afasto a mão e ele inspira ruidosamente.
— Eu não... Eu não sei do q- — Ele não consegue falar, chorando sem parar e cambaleando.
— Eu não deixei você chorar. — Grito, Harry se encolhe — Por que aqui diz que esse homem é o pai da Evangeline?
O cacheado passa os olhos avermelhados sobre o papel, embora eu divide que ele consiga entender algo agora.
— Não sei, deve te-ter sido algum erro. Não sei.
— O único erro foi você abrindo as pernas para outro enquanto já estava comigo.
— Não fala desse jeito comigo.
— Eu falo do jeito que eu quiser. — Soco a parede ao lado de sua cabeça — Você me enganou, me enganou desde o início.
— Lou, eu não entendo o que está acontecendo, eu nunca fiquei com ninguém além de você, nunca...
— Para de mentir. Você fodeu com seu diretor e mentiu para mim por todos esses anos, assim como você deve ter fodido com outro alguém para ter os gêmeos e deixa eu adivinhar, esse aí deve ser do Aaron, acertei?
Harry me encara com a mais completa repulsa pelo que digo.
— Como se atreve? — E tenta se soltar, mas aperto seus braços garantindo que ele se mantenha imóvel, preso entre a parede e eu — Você perdeu a cabeça, me solta!
— Eu perdi a cabeça? Sério? Eu? E como poderia esperar que eu me mantesse são estando casado com alguém como você. Ah, Harry, você é nocivo, cruel, egoísta, mau, sim, você é mau, podre e odioso. — Seu rosto está pálido e abalado, me aproximo para dizer o mais perto possível de seu ouvido: — Eu te odeio, está feliz? Odeio você e a armadilha que criou pra mim em forma de família, odeio cada um de vocês.
— Não... — Engasga, apertando os olhos.
Seguro seu rosto.
— É verdade, eu te desprezo do fundo do meu coração e espero que você tenha uma morte dolorosa muito em breve.
Harry praticamente desfalece, tentando engolir o choro intenso e não conseguindo.
— Isso não é você, não pode ser... Eu não fiz, não fiz, eu nunca... Com mais ninguém. É mentira! É mentira! É mentira! — Sua voz vai se elevando, tal como o timbre se modifica, embargado pelo choro e a respiração acelerada, ele parece em tempo de desmaiar, encolhendo e se debatendo.
E de súbito tudo para. O choro, a fala, a falta de ar, suas pernas reavém a força para se manter em pé, ele respira tranquilamente, quando ergue o rosto para mim não há mais nenhuma lágrima e o absoluto silêncio. Ele não fala porque seus olhos dizem tudo. Estou diante de outra pessoa.
— H- — Antes que possa dizer, sua mão aperta minha garganta e me empurra contra a outra parede, tamanha é a força que a intenção não parece ser asfixia e sim quebrar meu pescoço, tento andar e percebo que meus pés não tocam mais o chão.
Seu rosto inexpressivo me encara de volta.
É como uma máquina sem vida, programada para matar.
Não lhe parece dificultoso me manter com uma única mão, meu joelho se dobra automaticamente pensando em acertá-lo no estômago e por mais que eu tenha raiva de tudo e de todos no momento, não sou capaz de deliberadamente fazer uma coisa dessas. Sinto meu corpo letárgico e a vista escurecendo, como se alguém tivesse apagado as luzes. Impaciente com a minha demora em simplesmente morrer, ele fecha o punho e o lança em minha direção, num último fôlego de adrenalina consigo desviar e Harry acerta o espelho, me soltando em seguida, o sangue goteja por seu punho rasgado e o Harry que eu conheço teria uma síncope só com aquilo, mas este não se abala pelos cortes sobre a mão, sequer emite um som de desconforto enquanto puxa um pedaço de vidro do dorso.
— Quem é você? — Digo o olhando de baixo, com a mão sobre a garganta.
Ele me olha, indiferente.
Então a porta está rangendo, e uma figura pequena sai dela, cabelos pra cima e olhos inchados e nos olha de volta, confuso, mas tornam a se fixar em Harry e Spencer grita.
Não um grito de teimosia ou manha, como ele costuma fazer, mas um grito de pavor, como se ele estivesse diante de um demônio ou pior.
Harry gira nos calcanhares indo até ele, mas eu sei que esse não é o verdadeiro Harry, sei que pela forma que ele se aproxima não está tencionado acalmar Spencer e ele ainda mantém o pedaço de vidro, não penso duas vezes antes de me lançar sobre ele, envolvendo os braços ao redor e usando de toda a minha força para pará-lo.
Spencer continua a gritar.
O agarro com mais força do que há em mim, lutando para obriga-lo a parar. Ele me arrasta sem dificuldades.
— Harry, para, é o Spencer, você não pode machucar o seu filho, você não quer isso, então para. — Nada funciona, então tento puxar pela memória algo que eu possa ter lido entre os muitos livros sobre TDI, oh, o nome — Harry Edward Styles, Harry Edward Styles... — Sigo repetindo, até que finalmente parece fazer efeito, com seus passos perdendo a intensidade e ele cai em seus joelhos, me levando junto, a menos de cinco centímetros de Spencer.
Suspiro, observando sua cabeça baixa, o cabelo caído sobre o rosto e os membros moles em meus braços. Gemma abre uma das portas do corredor, correndo até onde Spencer continua a chorar e nos olha com espanto, ouço a movimentação no quarto de Anne também.
— O que é tudo isso? O que aconteceu? — Minha cunhada pergunta, balançando o bebê no colo, tentando acalmá-lo.
Não sei o que dizer, então me calo. Os olhos dela caem sobre Harry, a preocupação estampada em seu rosto quando não nota nenhuma reação vinda dele, toca seus cabelos querendo afastar de seu rosto, mas no instante que ela se aproxima demais, apenas a mão dele reage, tal como uma cobra dando o bote, enterrando o pedaço de vidro na coxa de Gemma e desfalecendo de verdade desta vez.
Xx
Não consigo lembrar da última vez em que estive no banco de trás de um carro, talvez quando entrei no quinto ano, talvez. Seja como for, fazem décadas, mas hoje nada soa normal. Anne continua dirigindo sem ter dado nenhuma lição de moral, ela deve estar se remoendo por dentro depois que seu filho furou a sua filha sem nenhum motivo. Gemma também não falou nada, nem mesmo enquanto nós três estivemos lado a lado na emergência, felizmente seu corte foi superficial e alguns pontos resolveram o problema, Harry precisou de mais pontos do que ela e uma dose cavalar de sedativos e agora estava desmaiado no meu colo, eu, por outro lado, perdi boas horas enquanto tratavam da queimadura no meu pescoço.
Todos voltavam para casa com curativos e a base de diazepam.
Eu não pensei além, apenas me deixei ser guiado pela raiva. Não imaginei o que fazer quando a raiva passasse. Qual o próximo passo?
Anne para o carro, ela ajuda Gem e eu levo Harry em meus braços, Cams está cochilando com as crianças na sala e seguimos direto para o quarto, deito meu marido na cama, puxando as cobertas sobre ele e deixando a mão enfaixada sobre outro travesseiro. Sentado aqui, depois de todo esse inferno, apenas os dois me dói perceber que eu o odeio na mesma intensidade que o amo. Sempre tive horror daqueles casais que matavam o cônjuge e se matavam em seguida por não serem capazes de viver sem, hoje em dia não parecia tão irreal que esse fosse o nosso fim.
Tão dopado quanto ele, acabo deitando ao seu lado, uma distância enorme entre nossos corpos, adormeço.
Desperto sem noção das horas, as cortinas fechadas perpetuam o breu mesmo que já seja dia. Me espreguiço, sentindo um peso sobre minhas costas, torço o pescoço, encontrando o rosto de Harry aninhado em mim, o braço ao redor da minha cintura. Em outros tempos não me moveria em hipótese alguma, aproveitaria de sua proximidade, de estar com ele. Agora eu tenho um ataque de ansiedade só de estar no mesmo cômodo que ele. Tomo um banho e troco de roupas rapidamente, apavorado com a possibilidade dele acordar, escapo do quarto ainda calçando um dos sapatos.
Estou alimentando a esperança de passar desapercebido, porém, o cheiro de café fresco e a torradeira ligada denunciam que não será bem assim.
— Olá? — Digo, imaginando que Anne estará sozinha, mas percebo uma cabeça loira lhe fazendo companhia — Ashton!
Ashton deixa a bancada da mesa e vem até mim, me dando um abraço apertado.
— Ei, Louis, como vai? Eu cheguei tem um tempinho, espero não ter te acordado.
— Não, está tudo bem.
— Ashton, está procurando por um estágio na cidade, disse que você o convidou a ficar na casa de vocês enquanto isso. — Minha sogra comenta, servindo uma xicara de café para mim, aceito, bebendo tudo de uma vez.
— Sim, foi isso mesmo.
— E qual é a opinião do Harry sobre isso? — Pergunta com desconfiança.
— Acho que ele não vai se importar.
— Deveria ficar aqui em casa, Ashton.
— Não. Ele vai ficar na minha casa.
Anne bufa, jogando o pano de prato sobre o balcão e marchando escada acima.
— Que clima tenso. — O rapaz observa, sentando-se novamente — Notou mais alguma coisa?
Rio de minha própria desgraça.
— Não tem como não notar, Ashton. — Pego minha pasta, reavendo o arquivo no qual vinha trabalhando a respeito das supostas personalidades de Harry, abro para ele — Essas são as personalidades e as singularidades que consegui apontar de cada um, não sei o nome da maioria, mas é notável que algumas são perigosas e outras não, e eu acho que as mais sinistras podem se comunicar com as outras, isso é possível?
Irwin analisa tudo meticulosamente, os lábios se movendo a medida que lê silenciosamente.
— Sim, é possível, elas podem ter consciência uma da outra, conversar, até mesmo trabalharem em conjunto. Se o Harry realmente for um TDI e mesmo depois de todos esses anos tendo acompanhamento psicológico não ter sido diagnosticado só existe uma possibilidade, ele tem uma ou mais personalidades que não permitem que isso seja exposto, ou seja, elas sabem exatamente o que são e não querem ser controladas. Essas que você apontou como manipuladoras podem ser grandes colaboradoras do grupo para manter o disfarce.
— Grupo?
— Se o número que você supôs for este mesmo nós temos um grande grupo aqui, bem articulado e engenhoso.
— Acha que o Harry pode ter consciência disso? — Indago, temeroso de sua resposta.
— Ainda não sei dizer, vou precisar passar algum tempo com ele. Também precisamos descobrir os traumas relacionados a essas quebras de identidades, sabe se ele já sofreu algum abuso?
Abuso? Penso em seu horror e negação quando mostrei o resultado do exame, em sua certeza de que nunca esteve com o diretor Prescott, que eu fui o único, e se esse homem abusou dele? E se Harry foi violentado e sua mente criou uma outra persona pra se livrar do trauma e ele nunca soube que a filha que esperava era de outro homem? Então ele é uma vítima... Ele sempre foi a vítima em tudo isso.
Minha cabeça está girando.
— Nós tivemos um probleminha em casa, mas voltamos hoje mesmo, quando o Harry for, eu quero que você vá com ele, por favor.
— Claro, Louis, não se preocupe, eu farei todo o possível para descobrir o que o Harry tem e como ajudá-lo da melhor forma, está bem?
— Certo. Obrigado.
Xx
— Ela está gritando com ele até agora. — Michael disse gargalhando para alguém do lado de fora, empurrando a porta com o quadril, equilibrando uma rosquinha e um copo de chá nas mãos. Ele se vira, soltando um som de surpresa quando me encontra em sua sala, encolhido no sofá — Louis... oi?
Suspiro, esfregando as mãos sobre as têmporas.
— Por que você faz isso?
— O quê? Como rosquinha com chá? — Arrisca uma de suas piadinhas, me fazendo rir, o que me leva a chorar também e quando as lágrimas começam a rolar pelo meu rosto, Clifford se apressa em deixar suas coisas na mesa e sentar ao meu lado, preocupado — Louis, o que foi?
— Mike, eu estraguei tudo, estraguei tudo. — Choramingo, escondendo o rosto entre as mãos — Eu fiz uma bagunça tão grande, estou afundando na minha própria merda.
— Não fala isso, você não fez merda nenhuma. — Sinto seu carinho reconfortante em minha nuca e volto a olha-lo.
— Por que você continua me amando? — Pergunto aquilo que me prometi nunca indagar, era um assunto esquecido, encerrado, mas eu precisava de uma resposta. Precisava entender o que existia em mim para ser gostado, não consigo enxergar nada.
Michael é pego de surpresa e sem palavras, olha para as persianas, seus cabelos estão loiros de novo, a franja longa cai sobre os olhos de um verde cristalino ao serem iluminados pelos primeiros raios da manhã, e eu percebo que foi observando-o que me apaixonei por ele.
— Você é lindo.
Ele sorri pelo elogio aleatório e ajeita sua jaqueta, não sabendo o que fazer com as próprias mãos.
— Eu fui um bosta com você, fui um bosta com todo mundo. Eu perdi a cabeça de um jeito que você nem imagina, se soubesse as coisas que fiz, você teria medo de mim, medo e nojo. — Torno a me afundar na angústia, chorando em um oceano de autopiedade e remorso, até estar escorregando até o chão, puxando meus cabelos e querendo gritar ao mundo o quão maldito eu sou.
Quase consigo ouvir os neurônios de Mike debatendo sobre fazer ou não, até que seu coração vence e ele me toca – o que prometeu não fazer nunca mais – mas diante do meu sofrimento não se controla e me abraça, deixando que eu chore contra seu peito, e ele me aninha como se eu fosse merecedor de seu cuidado, de seu amor.
— Foda-se, eu te amo! Pronto, é isso, te amo e não preciso de razão nenhuma pra isso, apenas amo e não consigo tirar isso de mim, eu não supero e sou patético, satisfeito? Não me importa o que você fez, eu vou te proteger do que for.
— Eu matei um homem inocente ontem. — Digo esperando que ele me chute ou coloque algemas nos meus pulsos, não que ele beije meus cabelos.
— O que mais?
— O cara que me manteve preso no esgoto, eu matei ele e... O cortei em pedaços. Nunca vão achar nada dele e desde então eu o vejo, como uma assombração e ele me diz para fazer coisas ruins.
Sinto seu pomo de Adão se mover, mas ele não diz nada além de:
— O que mais?
— Eve não é minha filha.
— Ah, Louis. — Lamenta, me abraçando mais forte e eu torno a chorar desesperado.
— Devia ter te ouvido, você tinha razão, isso, esse casamento, ele vai me matar, vai matar nós dois. Eu devia ter ficado com você, eu gosto de você.
— Devia mesmo.
Sorrio de seu bom humor até em momentos como esse.
— Mike, eu estou perdido.
Permanecemos desse jeito por horas a fio, sem a necessidade de palavras, apenas a companhia um do outro. Ele escuta tudo o que eu falo, por mais vergonhoso e medonho que seja e ele canta para mim quando não tenho mais tanto pavor de tudo. Ao lado dele o mundo parece menos assombroso, até um passarinho pousa em sua janela e o olhamos de perto, claro que ele faz questão de fincar suas patinhas no dedo de Clifford.
Em menos de vinte e quatro horas tive a oportunidade de contemplar todos os possíveis rumos que a minha vida poderia ter seguido e o mais tenebroso foi o que escolhi seguir. Por dois dias, nós dois fomos pai do mesmo filho, Sonny era um filhotinho órfão quando ambos nos apaixonamos por ele e não conseguimos chegar a um consenso de quem ficaria com ele. Harry não queria um cachorro, Luke também não, então nós dois fizemos uma guarda compartilhada e em um daqueles curtos dias fomos ao parque e deitamos sobre a grama, Sonny correndo ao nosso redor e as nuvens macias como algodão doce flutuando livres no céu azul.
Uma criança disse que éramos um casal lindo e nenhum de nós a desmentiu.
Michael fechou os olhos e sorriu tranquilamente.
— Queria ficar aqui pra sempre.
— Que foi? — Indaga, quando percebe que estou olhando pra ele.
Vamos ao parque, quero dizer, mas a porta é aberta e Sarah diz que ele tem que acompanhar uma equipe de investigação. Talvez outro dia, penso comigo mesmo.
— Nos falamos mais tarde. — Ele se despede, com um último abraço e eu retribuo profundamente grato — Vai ficar tudo bem.
Ele chega até a porta e acena, com um sorriso, a fechando em seguida.
Desabo no sofá, vai ficar tudo bem.
O dia foi embora quando saio da minha sala, com o corpo moído por ter ficado deitado o tempo todo. O escritório está em alvoroço, todos que não tem plantão se aprontando para ir embora, noto a falta de muitos rostos no dia de hoje. Niall não deu as caras, assim como Liam, por algum motivo penso em Mia e sinto um aperto no peito, como o aviso de um mal presságio.
Luke está bem a vista, sentado na mesa de uma secretária, lhe contando algo que a faz rir e ele dá de ombros, abaixando os óculos escuros para me dar o vislumbre de seu olhar de desprezo mútuo.
É o fim do expediente, só quero ir embora.
Sarah está reunindo suas coisas quando o telefone toca, ela o atende com uma expressão tediosa, mas não parece entender de início, então pede silêncio e continua ouvindo seja lá o que for e quando parece identificar o que há do outro lado da linha, grita e solta o telefone.
— Meu Deus! — Berra, em estado de choque. Me apresso em atender, enquanto Mitch e os demais tentam acalmá-la.
Não preciso de mais do que um segundo para discernir o ruído de engasgo e golpes, algo se arrasta, é metálico e próximo demais ao telefone, como se quisesse que fosse ouvido. É Andrômeda matando alguém ao vivo.
Lanço um olhar urgente para Mitch que entende de imediato, correndo até o computador, rastreando o quanto antes a chamada que não é interrompida, sendo assim, a finalidade é que encontremos.
Essa vítima é alguém que conhecemos. Essa vítima é uma vingança direta.
Estremeço ao perceber que o endereço que Mitch me entrega é onde encontrarei o cadáver de alguém importante. Quem?
Uma equipe é prontamente convocada e entramos nas viaturas, Luke está dando a volta para entrar no carona.
— Dirige você.
Ele franze as sobrancelhas, confuso.
— Tudo bem?
Não.
Mesmo assim ele dirige e somos os primeiros a chegar ao local da ligação, é um casébre antigo, serviu de asilo por muitos anos até que um incêndio definitivamente o tornou um lugar inóspito, caindo aos pedaços, a relva selvagem alta ao redor e nenhuma movimentação dentro e fora. Entramos de armas em punho, próximos o bastante para cobrir a retaguarda um do outro e quando não encontramos nada no hall nos separamos, poucos minutos depois tornamos a nos reunir, sem nada.
— Deve ter sido só um trote. — Luke suspirou, coçando a nuca e olhando ao redor, assim que seus olhos passaram pelo topo da escada ele empalideceu de tal forma, segui seus olhos e senti que o mesmo me acontecera.
Não haviam correntes.
Não havia um corpo pendulando do teto.
Não havia um cadáver.
Só havia Michael, em pé, a silhueta salientada pela janela de vidro atrás dele de onde a lua cintilava, tudo parecia bem, ele deu um passo a frente e depois outro, a vista de seu corpo se tornando mais nítida do que a mera sombra e foi quando percebi que sua mão estava sobre seu estômago, tentando inutilmente manter seus órgãos dentro do corpo quando todo seu tronco estava dilacerado, suas roupas, o chão ao seu redor, era puro sangue e continuava a correr abundante para fora dele, como uma fonte.
Foi como em câmera lente, a noção da realidade nos abatendo.
A vítima de Andrômeda naquela noite era Michael Clifford.
Seu próximo passo não pode ser concluído, ele não conseguiu suportar o peso de seu corpo e tombou, caindo sobre o próprio sangue, Luke disparou tão veloz que mal pude perceber até que ele estivesse ajoelhado no chão, tentando estancar o ferimento de Michael, mas não era possível, não quando ele fora praticamente rasgado de fora a fora. Os outros agentes vieram em nosso encalço, perdidos ao contemplar a tragédia, Payne cavou espaço entre os corpos, ele estava em patrulha e atendeu ao chamado, Niall também, subimos os degraus com o coração na garganta, porque Luke estava visivelmente entrando em estado de histéria, lutando para juntar os pedaços de seu amado, o sangue estava por suas mãos, até seu rosto porque ele tinha trazido Mike para perto dele.
— Cadê a porra do médico? — Gritou trovejante, seu pescoço marcado por veias grossas. O médico estava a caminho, mas não parecia haver muito o que fazer, cai de joelhos ao seu lado, Michael moveu os olhos até mim, os mesmos olhos que admirei mais cedo estavam perdendo o brilho, se apagando, assim que me viu moveu a boca, como se ansiasse por falar, foi quando notei que o sangue em sua boca ia além de uma simples pancada. Sua língua foi cortada, eu solucei não podendo controlar quando o pranto me atingiu em cheio.
Ele não merecia isso. Não ele, eu sim. Eu merecia tudo e mais um pouco, mas ele não, ele nunca.
Ainda assim ele não se desesperou, apenas me estendeu a mão e eu a segurei, seus dedos frios que se empurravam contra meu peito, como se tentasse dizer algo, uma última mensagem.
— Não se esforce, precisa descansar agora. — Hemmings murmurou, acariciando seus cabelos e Mike o olhou, sua mão escorregou da minha e ele a levou até o rosto de Luke, uma lágrima solitária caindo do olho direito e antes que sua mão tocasse a bochecha dele, o braço caiu e os olhos se fecharam. Clifford morreu.
Niall foi o primeiro a reagir, tapando a boca quando o choro se desencadeou, Liam aguentou mesmo com os olhos marejados e eu estava chorando desde o início.
Foi nesse exato instante que as palavras de Zayn voltaram com força, sobre Andrômeda ir no elo mais fraco, acertar onde doi. Parecia tão claro agora, a morte de Michael era um golpe doloroso e profundo, uma facada no meu coração, mas eu não era o alvo dessa vez.
Estava olhando para ele, tremendo por inteiro.
— Luke. — Me aproximei e ele me afastou com um rosnado.
— O médico... — Foi tudo o que disse, o médico chegou no mesmo minuto, mas tanto ele quanto todos nós sabíamos que Michael já estava morto, mas Luke insistiu e quando ouviu o doutor declarando a hora da morte o chão de Luke Hemmings desabou.
Luke era como eu, um desajustado que concentrava todo o seu amor, sua paz, sua sanidade em uma única pessoa, em Michael e com Michael morto, ele não seria capaz de se controlar.
— Eu sinto muito... — O médico dizia quando Luke acertou um soco em sua boca, o pobre homem caiu para trás, Liam e eu tentamos contê-lo, mas em seu estado atual ele era mais forte do que vinte de nós e por um tris Payne não foi arremessado da escada e Luke se agarrou no corpo de Michael, o rosto entre os fios loiros.
— É mentira, você não está morto, você está bem, só está dormindo, você vai acordar já já, meu amor. — Dizia em meio aos soluços, ofegando ruidosamente — Tudo bem, amor, tudo bem, eu te amo e você vai acordar, você tem que acordar.
Ele não acordou e depois do terceiro médico atestar o mesmo resultado e Luke tentar matar o homem, o IML chega e é uma nova saga para fazê-lo soltar o corpo de Michael, quando ele o faz, está inteiramente banhado pelo sangue dele, ignorando quando tentamos levá-lo até o médico já que é evidente que ele não está bem. A ambulância sai e ele caminha até o carro, a chave tilintando entre os dedos ensanguentados.
— Luke, espera. — Chamo, indo atrás dele.
Hemmings para, os olhos mortos caindo sobre mim.
— Você fez isso.
— Eu?
Ele se vira para mim, a expressão de quem está prestes a começar uma carnificina.
— Ele só veio pra cá, só aceitou investigar esse caso por sua causa, se não fosse você estaríamos bem longe de tudo isso, mas por sua culpa ele está morto agora. Morto. — Repete mais para si do que qualquer um, encarando a lua — O amor da minha vida morreu. Ele morreu nos meus braços, consegue imaginar uma coisa dessas, Tomlinson? Num minuto podia sentir sua respiração e ver seus olhos olhando pra mim e no outro tudo se apaga, como se ele nunca tivesse existido. Como eu vou para o escritório sabendo que não o encontrarei? Para quem eu vou ligar bêbado fazendo declarações de amor? Onde eu vou encontrar alguém que me olhava com tanto carinho? Alguém que me amou tanto ao ponto de nenhum outro amor servir senão o dele? Ele não era meu ex-noivo, ele era meu melhor amigo, era o meu porto seguro, minha paz, minha casa, minha vida, ele era o sangue correndo em minhas vidas, ele era tudo. Tomlinson, como eu posso te perdoar por ter me feito perder tudo isso?
— Você não pode.
— E eu não vou. — Diz, baixando os olhos para todo o sangue em si — Tudo o que havia de bom em mim se foi e agora eu sou uma casca oca, fria e cruel e nem que seja a última coisa que eu faça, eu vou acabar com você, vou te destruir, você vai querer morrer e eu não vou deixar para garantir que o seu sofrimento seja eterno, como o meu. Faço questão de ser o seu carrasco. O diabo terá pena de você, maldito. — E me deu as costas, cambaleando até o carro.
Eu o conheço e sei que ele vai cumprir. Vou sofrer as consequências dessa morte, serei castigado e Andrômeda sabia disso.
Retorno para dentro do casebre, sento nos degraus e não me movo mais. Fico assim por horas, até que escuto passos e meu subconsciente quer acreditar que é Michael, que nos finalmente vamos ao parque, que tudo não passou de um pesadelo, mas Michael não usa sobretudo e não tem o cabelo longo e ele jamais me olhou com tamanho desgosto, mesmo quando o acusei de ter arruinado a minha vida.
Harry subiu os degraus, a indiferença estampada em sua expressão, ele parou perto o bastante para que eu o tocasse.
— Michael está morto.
— Eu sei disso. — Respondeu, tocando meu queixo para me encarar — E você está me fazendo assisti-lo chorar por seu amante.
— Ele não era meu amante. — Afasto o rosto.
— Isso já foi longe demais, você precisa sair disso antes que você seja o cadáver, Louis.
— Luke tem razão, a culpa é minha, se eu não... Eu pedi a ajuda dele, por minha causa ele veio para cá e eu sei que Andrômeda me odeia, aquilo foi pessoal, ela nunca mutilou ninguém daquele jeito, ela cortou a língua dele.
— Oh, pobrezinho. — Acaricia meu cabelo, como ao pelo de um cão de rua.
Sou cada vez mais dominado pela dor, passamos todo o dia juntos. Eu sinto que podia ter impedido, eu podia tê-lo salvado de alguma forma. Tem um buraco no meu peito. Tombo para frente, a cabeça apoiando na coxa de Harry e choro abertamente, sentindo seu toque seco.
— O que está sentindo agora vai passar, em breve não vai mais doer, querido. Não vai sentir mais nada.
Sim, por favor, é tudo o que eu quero.
Suas palavras teriam soado bem menos afáveis se eu tivesse visto a forma orgulhosa com que olhava para o sangue de Michael sobre o chão. Mas naquele tempo eu estava cego.
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