│14│hydra
"É tarde demais para dizer adeus
Puxe do meu coração, queria que nós voltássemos para o inicio.
Mas, oh meu Deus! Isso é real? Não há mais tempo
É tarde demais, é tarde demais para dizer adeus"
To Late To Say Goodbye - Cage The Elephant
Durante aquele curto espaço de tempo, eu não sinto nada. O meu coração não está acelerado, minhas mãos não suam, meu peito não dói e eu não tenho medo de sua resposta, porque eu não me sinto integrado a cena. É como se estivesse no trabalho, observando um caso trágico sem ter qualquer tipo de sentimento à respeito.
Como se eu fosse uma máquina, sem emoções, sem temor. Apenas fazendo o que me mandam.
— Se mirar um pouco mais abaixo vai acertar em cheio o coração. — O demônio segredou em meu ouvido.
Olhei para meu alvo, procurando mirar onde Lucian havia sugerido. Não daria certo, Harry está com o joelho na frente do peito.
— Esqueça, vamos direto na cabeça. É assim que se corta o mal pela raiz.
Faço com ele diz erguendo o braço. Mas então, Harry me olha diretamente, os olhos grandes e assustados, lábios trêmulos e completamente atordoado, seu corpo se encolhe ainda mais em seu entorno e ele olha repetidas vezes para o lado.
Tão perdido.
Tão inocente.
— Lou, p-por que está fazendo isso? — Pergunta, por fim.
Eu já ouvi isso antes.
"— Policial, por que está fazendo isso, an?
— Porque você é um criminoso. Um traficante. — Harry revira os olhos e anda pela cela.
— Eu não sou traficante! A erva era minha, ok? Só pra mim. Eu posso ter exagerado na quantidade, mas é só, você não precisa me deixar atrás das grades como se eu fosse um maníaco ou coisa parecida.
— Talvez você seja, estou checando seus registros.
— Vai se impressionar com a minha ficha limpa.
— Quem sabe. A sua mãe já está a caminho, relaxe.
— Você diz que a minha mãe está a caminho e espera que eu relaxe. Que piada! Olha, policial, eu não posso estar em uma cela quando a minha mãe chegar. Me deixa ficar ali no banco, pode ser de algemas mesmo e eu fico quietinho, por favor.
— E por que eu deveria acreditar que você não vai tentar alguma coisa? Você pode ser do mal.
Ele agarra as barras da cela e deixa que eu veja bem o seu rosto.
— Argh! Apenas olhe pra mim, olhe bem nos meus olhos, eu pareço um vilão pra você? Eu devo ser a pessoa mais inofensiva da terra. Nunca machucaria ninguém. "
— Você fez como disse, você não fez nada. Não era mentira. — Tremulo com a arma em minhas mãos.
É o mesmo Harry.
O meu Harry de sempre. É fácil notar quando olho em seus olhos. Por que eu nunca mais o olhei de verdade?
— Meu amor, você não está bem. Esse caso todo tem mexido com você.
— Apenas me responda. — Tento soar firme.
— Você passou por muitas coisas, desde que voltou daquele esgoto não tem sido o mesmo. — Diz com a voz macia, calma, justamente para ir me domando, pouco a pouco — Aconteceu mais do que você disse, não foi? Aconteceu algo muito mais sério e isso está te atormentando.
— Touché! — Lucian comemora com um berro que ressoa nos meus ouvidos, me deixando ainda mais nervoso.
— Só fala comigo, Lou, você pode me contar qualquer coisa, eu quero te ajudar.
— Eu não preciso de ajuda, preciso apenas que você responda.
— Encontrei os seus remédios na garagem. Há quanto tempo parou de tomá-los? Sabe que precisa deles...
Seus desvios acabam por me dar nos nervos. Toda a indiferença que eu sentia há poucos minutos deu lugar a um nervosismo e temor ao mesmo tempo que paralisante era também efervescente.
Diminui a distância entre nós, sem nunca deixar de mirar. Mas mesmo com uma arma apontada para si, Harry não aparentava medo. Ele se assustava, no entanto nada o amedrontava.
— Só me diga.
Ele me olha de baixo, com os lábios crispados e então, solta um suspiro.
— Quer que eu diga que sim?
— Eu só quero a verdade.
— Você sabe a verdade. — Seu tom muda — Se eu fosse um assassino aqueles homens que mataram a minha filha já teriam pagado há muito tempo, Michael Clifford não estaria por aí pagando de bom samaritano e você...
— E eu?
Harry não responde, sem desviar o olhar seus olhos lacrimejam e ele olha em direção a janela onde as cortinas dançam conforme o vento sopra.
— Precisa de alguém para culpar, não é? Já fazem anos e você não conseguiu nada. Quer tanto pegar essa Andrômeda que acreditaria ser qualquer um. Mas como eu faria isso? Que horas? Em qual momento? Acha que eu estriparia pessoas e depois voltaria a tempo de fazer o jantar e colocar as crianças para dormir? E você não teria notado nada, em dois anos? Eu precisaria ser um gênio do crime, coisa que eu não sou. Você me prendeu uma vez, viu a minha ficha, eu sou tão criminoso quanto o Spencer ou o Blake. Eu não sou e nunca seria capaz de matar ninguém, mas só cabe a você acreditar ou não em mim.
Eu não sei o que dizer. Não faz sentido que ele seja Andrômeda. É possível traçar um perfil de assassinos em série. Harry não se encaixa em nenhum deles, ele é a pessoa mais normal que eu conheço, exceto por...
— Você fala...
— Falo quê?
— Fala como se tivesse mais alguém, como se não fosse apenas você. Até mesmo briga...
— Todo mundo fala sozinho. — Retruca.
— Não é falar! Você aje como se tivesse mais pessoas com você. — Teimo sentindo minha cabeça doer.
— Eu não faço isso.
— Você fez há pouco.
— Não. — Ele diz sério — Eu não fiz.
— Como não? Você disse.... Você disse... — Não consigo me lembrar.
— Será que aconteceu mesmo? — Lucian começa a rir.
— Quieto, eu preciso lembrar.
— Você não consegue.
— Claro que consigo.
— Não pode se lembrar do que não existe.
— Não tente me confundir.
— Não estou! É só a verdade. O louco é você, é você, Louis, seu doente, seu louco, louco, louco....! — Ele não para de gritar e sua voz só vai ficando mais alta e mais alta. Eu não posso ouvir meus pensamentos. Não posso pensar, eu só quero cala-lo.
Procuro por ele e enquanto berra surge no espelho da penteadeira e disparo contra ele, até descarregar por completo o revólver. Por entre os cacos estilhaçados de vidro encontro fragmentos do rosto de Harry. Nove pedacinhos. Todos me dirigem repulsa.
— Você não tem dormido, o carro está cheio de remédios que cortam o sono. Tudo o que você faz noite e dia é pensar nesse caso, você está obcecado e não se abre com ninguém e isso está te consumindo. Te enlouquecendo. — Harry sussurra com a voz quebrada, lágrimas gordas rolam pelo seu rosto — Em pensar que você me prometeu que o seu trabalho nunca iria interferir nas nossas vidas. É o seu trabalho que está nos destruindo. Ele vai acabar com nós dois, você quer me por na cadeia e vai parar num hospício ou pior, e se você me matar...
— Eu não vou! Eu não vou nunca. — Prometo, atordoado e desesperado, deixando a arma cair, enjoando por ter ousado apontar aquela coisa pra ele.
— Então pare com isso agora. Volte pros seus remédios, vá até o Adam e deixe-o te ajudar e pelo amor de Deus, largue esse maldito caso.
Ajoelho diante dele, assentindo.
— Se eu fizer isso você me perdoa? Nós podemos voltar a ser como antes?
Harry olha por sobre meu ombro. O espelho.
— Isso só depende de você, porque no momento, eu te odeio um pouco.
Aquilo foi como uma facada no meu peito. Uma faca profunda que alguém girava, dilacerando o meu coração.
Fechei meus olhos, afim de administrar toda aquela dor e foi quando ouvi passos.
— Uhm, com licença?
De alguma forma Niall Horan havia se materializado na minha casa.
— Ah, bem, a porta estava aberta e eu fiquei preocupado que tivesse acontecido alguma... — Se cala ao que seus olhos miram nos cacos de vidro, na arma no chão e Harry acuado — , acho que não é um bom momento.
— Isso não importa. — Passo a mão pelos cabelos, de costas para ele, encarando o chão — O que faz aqui?
— O detetive Hemmings me pediu para vir, como o senhor não atendia as ligações e–
— Tá, tanto faz! — Exclamo, abruptamente me pondo de pé. Olho para o meu marido e ele respirava devagar colocando a mão sobre a barriga, mais uma vez meu peito lateja com o remorso.
Que merda eu achei que estava fazendo?
Harry ser Andrômeda? Não. Não faz sentido.
E assassinos sempre possuem um sentido. Um motivo. Ele não tem nenhum.
— Niall, por favor, leve o Harry para o hospital. — Digo, saindo do quarto de uma vez. Niall assente e eu já estou longe o bastante, em nosso quarto, recolhendo meu celular e carteira, deixo a arma para trás. Eu não preciso daquilo.
Mas é parado naquele cômodo que me vem uma necessidade maníaca de procurar e é exatamente o que eu faço. Reviro por inteiro, entro no closet e vou tirando todas as roupas do caminho, faço o mesmo com as gavetas, empurro móveis, olho debaixo da cama. Vasculho por cada mínimo objeto pertencente a Harry, leio e releio suas agendas, não satisfeito vou até o quarto dos meninos, afinal, faria muito sentido esconder uma faca no berço do seu bebê.
Mas não há nada.
Nada em nenhum dos cômodos.
Faz meia hora desde que ouvi o som do carro de Niall. Eles já devem estar no hospital e é quando procurando por pistas inexistentes na lareira que caio na realidade dos fatos. Não existe nada porque ele não fez nada. Ele é bom e inocente e eu sou um completo louco paranóico que quer desesperadamente colocar um ponto final nisso mesmo que nos destrua.
E vai destruir porque sem ele...
Sem ele eu não funciono.
Eu não existo.
Ele é o amor da minha vida.
O pai dos meus bebês.
— Aí meu deus. — Me jogo contra o encosto do sofá, esfregando meu rosto ao ponto de sentir pequenas ardências ao causar arranhões acidentais, vou subindo meus dedos nervosos até os cabelos, apertando os fios entre eles. Minha respiração engata e estou suando.
E se ele perder o bebê?
Se ele perder o bebê a culpa vai ser minha, eu não o ajudei.
O que eu disse... Maldição, eu disse que ele merecia perdê-lo.
Como eu pude dizer isso?
Como eu pude? O que há de errado comigo?
E se for tarde demais e ele estiver tão mal a ponto de morrer também?
Se o Harry morrer o que eu vou dizer ao Spencer e ao Blake?
Spencer vai morrer também e o Blake vai me odiar e eu vou me odiar e vou ter perdido tudo aquilo que eu amo. Tudo aquilo que me mantém são.
Preciso da minha família.
Preciso mais deles do que resolver esse maldito caso, senão vai ser como se eu mesmo estivesse envolvendo aquelas correntes ao redor do pescoço dos três e os observasse morrer. Eu seria como ela.
Eu seria ela.
Apavorado e atormentando corro em direção a garagem, desbravo as caixas de arquivos que amontoei ali ao longo dos anos até reaver a caixa de madeira que abandonei ali no início do ano quando resolvi me dar alta. Até tinha me esquecido de que precisava de tantos antidepressivos e estabilizadores de humor, mas é um fato que eu sou melhor com eles, menos neurótico e explosivo.
Diante da urgência de me estabilizar tomo dois comprimidos de cada e estou inclinado a subir e pegar uma bebida quando escuto vozes familiares, olho pela janelinha que dá a visão para o outro lado olho e vejo Anne conversando com Bebe em frente a casa dela, as três crianças riem e brincam com Sonny que rola de barriga para cima na grama.
A vergonha esmaga meus ossos só de pensar que eles entrarão nessa casa que eu destruí a procura de uma justificativa para tirar o Harry deles.
Não posso lidar com isso agora. De maneira nenhuma.
É somente quando abro a porta da garagem e saio com o carro que eles desviam sua atenção do labrador para mim. Minhas mãos ainda não estão firmes o bastante no volante e por isso hesito quando os vejo ignorar os chamados da avó para correrem em minha direção gritando sem parar "papai, papai".
Afundo o pé no acelerador e arranco em direção a rua. Observo pelo retrovisor, tanto Spencer quanto Blake permanecem parados, em choque, o sorriso alegre morrendo e a mágoa dominando suas feições. Eu os magoei. Magoei todo mundo hoje.
— Desculpa, mas eu não sou bom pra vocês agora. Desculpa. — Repito como se eles estivessem comigo, mas a verdade é que eu estou tentando me consolar.
Permaneço repetindo isso do lado de fora do consultório do Dr. Prendergast. Os remédios fizeram efeito, me sinto bem mais calmo e presente do que antes. Isso é bom.
A secretária surge anunciando que o psicólogo me espera.
Adam está sentado em sua poltrona de couro reclinável, prancheta sobre o colo e as mãos batucando nos descansos de braço de seu assento. Os olhos me seguem atentamente.
— Você nem disfarça! — Resmungo sentando no divã.
— Desculpe, mas esse é o tipo de coisa que nunca aconteceu antes, você costuma faltar até em suas consultas, quem dirá vir por livre e espontânea vontade. Estou incrédulo desde que recebi sua ligação.
— Bom, eu só... — Esfrego as mãos nas calças, correndo o olho por cada centímetro de sua sala até acabar voltando pra ele — , acho que está na hora de fazer terapia de verdade.
— Isso é ótimo, Louis! Tem algo que deseja falar, em especial?
— Eu gostaria de falar sobre... — Sobre Andrômeda; sobre a minha raiva; sobre o inferno que foi viver com meus pais; sobre ter sido rejeitado pelo Zayn; sobre ser pai de uma garota que eu quase não tenho contato; sobre estar vivendo com meu antigo amante; sobre ver a minha filha morta; sobre desconfiar que meu marido seja um serial killer. Céus! São tantas opções — Eu gostaria de falar sobre o Lucian.
Adam arqueia a sobrancelha e pega sua caneta.
— Quem é Lucian, Louis?
Respiro fundo, sentindo um ligeiro incômodo sobre meu dedo decepado.
Talvez se eu falar sobre ele deixe de existir e saia de vez da minha cabeça.
— Foi o homem que me torturou.
Xx
Me abrir sobre Lucian foi estranho, perturbador e absurdamente desconfortável. Era humilhante dizer em voz alta o que ele fez comigo, eu nunca aceitei isso de ser vulnerável e frágil, não era o tipo de coisa que meu pai valorizava e consequentemente eu também não, mas precisava admitir: Foi libertador.
Pela primeira vez em muito tempo não me sentia um baú de segredos, não sentia que meus demônios estavam corroendo a minha carne. Eu era uma pessoa normal que não precisava guardar tudo, nem ter que lidar com tudo sozinho, era okay pedir ajuda e agora Lucian havia perdido seu poder sobre mim, uma vez que não mais era um segredo, ele era apenas um fantasma que perdera toda a sua força. Nada mais.
Infelizmente ainda havia trabalho a ser feito.
Por mais anti profissional e irresponsável que fosse optei por não ir até a cena do crime. Luke, Liam e Michael já tinham estado lá e me mandaram fotos o suficiente para fazer meu estômago revirar e caso eu dormisse, ter pesadelos a noite. Durante a investigação, Clifford notou pegadas no tapete da porta da cozinha que servia como uma espécie de saída dos fundos e que raramente era usada – segundo testemunho da família – , as pegadas se destacavam por ter uma coloração avermelhada, barrosa, obviamente de alguém que andara por um terreno lamacento e terroso, alguém que tivesse vindo de uma floresta ou campo.
A área mais próxima que se enquadrava melhor nesta descrição era o Edwin Park, uma área de acampamentos, muitos jovens frequentavam e escolas organizavam curtos períodos de acampamento aqui, Evangeline veio uma vez, quando ela tinha cinco anos, brincou, comeu, nadou no lago e se divertiu o dia inteiro até o anoitecer quando ficou com saudades e começou a chorar sem parar para a professora pedindo que ligasse para nós.
Me lembro como se fosse ontem, dela encolhida no banco de trás, embrulhada no edredom agarrada a Harry, choramingando feito um gatinho sobre como era assustadora a floresta durante a noite e que tinham barulhos estranhos e que ela ficou com muito, muito, muito medo e que só queria os papais dela. Harry estava tendo o seu momento porque ele foi efetivamente contra, Eve era o seu tesouro e ele não a queria fora de suas vistas nem por um minuto.
Embora me lembre das imagens não consigo recordar o que eu sentia na ocasião.
Mas o que eu sinto agora, ao pisar nessa floresta anos depois é saudade, talvez a mesma saudade que Eve sentiu naquela vez, tanta saudade que eu confundo com medo.
A equipe está espalhada pela área em busca de provas.
Michael está próximo, agachado ao lado de um velho carvalho, todo cuidadoso e meticuloso, de luvas e até toca, enquanto varre a terra por sobre o que parece ser um copo descartável.
— Isso não me parece uma prova em potencial. — Comento cruzando os braços as suas costas, rindo quando ele se assusta e cai de bunda no chão.
— Louis, você me assustou. — Fala se levantando e limpando a calça — Onde você se meteu? Todo mundo ficou preocupado.
— Eu estava com o Harry.
Sua expressão se contorce ligeiramente, mas ele luta para esconder.
— Então, já deve estar inteirado do caso.
— Andrômeda pode ter deixado um rastro dessa vez.
— É um palpite. Alguém que esteve na casa também esteve por aqui, espero que tenha deixado algo para nós.
— Certo, então, eu vou dar uma averiguada.
— Okay, só tome cuidado! O Luke saiu trotando por aí feito um cavalo e destruiu boas possíveis evidências. — Resmunga sem conter sua irritação.
— Deveria controlar seu namorado. — Brinco, começando a me afastar.
— HAHA, some daqui. — Ele me atira um galho que eu consigo pegar no ar e acenar como se fosse um bracinho.
Adotando um ar mais sério e compenetrado passo a observar com o máximo de atenção a floresta, não há nada fora do comum. Provavelmente não é um santuário de corpos, se Andrômeda esteve aqui foi de passagem. Meu próximo passo é em falso e eu tropeço em alguma coisa, está debaixo da terra remexida. Penso em chamar por Clifford, mas reconheço a pulseira no braço de plástico da boneca.
Me curvo para desenterrar o brinquedo há muito esquecido.
"— Papai, nós precisamos voltar! Eu esqueci a Spencer no acampamento.
— Sem chances, Evangeline. Estamos muito longe, quando chegar em casa eu ligo pra professora e peço pra ela trazer pra você, okay?
— Mais ela não vai saber! Eu enterrei porque a Lisa queria roubar ela de mim.
— Então já era.
— Mas papai... — E a manha começou, seguida do choro.
— A gente compra outra, minha bebê. — Harry a consolava, fazendo carinho em seu cabelo.
— Eu não quero outra, eu quero ela.
Olhei pelo retrovisor para o seu draminha e resolvi usá-lo a meu favor.
— Pipoquinha, porque não pede um bebê de verdadinha para o papai Harry, hein?
— Louis!
— Papai, eu quero um bebê de verdadinha.
— Eu também quero. — A imitei rindo em seguida.
— Não comecem.
— Olha, papai, eu vou cuidar da bebê e vou dar comidinha e vou trocar quando ele fizer caquinha e vou dá banho e vou brincar e vou...
— Tá, eu entendi, você vai fazer tudo.
— Isso. Tudo. Tudinhodinho.
— Tudinhodinho?
— Isso.
— Pode ser que eu pense a respeito, então.
— E eu tenho uma condição.
— Qual?
— A bebê tem que se chamar Spencer.
— E se for menino?
— Spencer também. "
Limpo a terra do rosto da boneca, os olhos azuis perderam quase toda a cor, o vestido está em farrapos.
— Quanto tempo Spencer! Como está? Sabia que você tem um xará? Ele vai gostar de você, ele é um grande fã de bonecas e de brincar de chá da tarde e princesa, igual a sua antiga mamãe, lembra da Eve? Ela virou um anjinho, sabe. — Acaricio o cabelo castanho dela e me lembro a quem realmente pertenciam aqueles cachos escuros. Foi a minha mãe quem fez aquela boneca, Eve insistiu para que elas fossem gêmeas de cabelo e por isso quis cortar o seu para doar a sua filhinha.
E esse mesmo cabelo era tudo o que restava da minha filhinha.
Por um momento esqueci completamente a onde estava e por consequência da minha falta de atenção eu tropecei e cai, mas não na terra e sim em algo mais fundo e duro, as minhas costas doíam como o inferno e tinha algo molhado e pegajoso abaixo do meu corpo, me revirei ficando ainda mais enlameado em toda aquela sujeira.
Um buraco.
A porra de um buraco.
Que bosta!
O céu brilhava distante, provavelmente estava a uns nove ou dez metros abaixo da terra.
Antes que o desespero batesse Clifford surgiu.
— Louis? Você tá bem? — Sua voz ecoou.
— Sim. Tirando a imundice eu vou bem.
— Graças a Deus! Fique calmo, eu vou chamar os outros e nós vamos te tirar daí.
— Okay. — E ele desapareceu.
Estava esperando pacientemente quando aquilo começou.
As correntes se arrastando.
Lentamente.
Devagar.
Elas deslizavam pelo chão de madeira.
O ruído de uma porta sendo aberta, os gêmeos dormindo tranquilamente e então seu choro alto.
Abro bem os olhos, eu estou em um buraco, fundo e escuro, sem lugar para ir. Não é real, é fruto da minha imaginação.
Não é real.
O choro vai crescendo, encorpando como o de um adulto, o de uma mulher adulta.
— Socorro! — Ela grita e sua voz retumba mais do que a de Mike.
Parece a Jéssica.
— Tudo bem. Só respira, respira, Louis, só respira. — Digo a mim mesmo, me concentrando em olhar para um só ponto, mas então esse ponto vai se desintegrando e é como se uma passagem secreta se abrisse, ela dá acesso a um túnel semelhante ao esgoto e então ele surge, o corpo grande e imponente, caminhando com lentidão até mim, o facão na mão gotejando sangue da lâmina, os chifres arrastando no teto, provocando um rangido parecido com um gemido de agonia e os olhos, aqueles velhos olhos mortos do alce focados em mim.
Lucian está perto e ergue sua arma, prestes a me partir ao meio e é quando a corda cai diante dos meus olhos. Rapidamente a prendo em minha cintura e mais rápido ainda sou puxado para cima.
Viu? Não era nada demais. Foi só o escuro. Sob a luz do dia nada disso existe. Repito mentalmente até ser atingido pelo clarão e alcançar terra firme, porém, quando olho para frente a boneca se tornou de carne e osso, suja de terra, lama e sangue, cheia de buracos por toda o corpo, alguns ainda com estilhaços de bala, a única coisa que me leva a reconhecê-la são seus olhos verdes.
Mas não consigo dizer seu nome ou fazer coisa alguma porque meu cérebro para. Literalmente. Eu posso sentir. Ele se desliga e depois, o meu corpo faz o mesmo.
Sinto a agitação ao meu redor e então Eve está estendendo a mão e fechando meus olhos para que eu possa cair completamente na inconsciência.
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