Análises: Leitura Em Si X Biográfica
É possível, através de uma leitura contextual, de perfil psicológico e biográfica, seguir pegadas para chegar, com razoável segurança, no outro lado da margem interpretativa. Em relação aos traços identitários de um autor, que responderá em sua obra.
O crítico e historiador francês Hippolyte Adolphe Taine defende que o sistema nos sentimentos e nas ideias humanas "tem por motor primeiro certos traços gerais, certas características de espírito e coração comuns aos homens de uma raça, de um século ou de um país." (SOUZA, 2011, p. 533).
Dessa forma, o meio, a raça e o momento são fundamentos gerais, universais, constituitivos dos seres. Ou seja, uma leitura cientificista, naturalista sobre o método interpretativo. O escritor Franz Kafka, por exemplo, reconhecia a herança genética recebida por parte materna, a influência genética de seus ancestrais maternos em relação à sua personalidade, pois os seus parentes por parte de mãe foram homens cultos, instruídos, sensíveis, muito dados à leitura, aos estudos (PAWEL, 1986, p.9).
Sobre esse método — biográfico/psicológico — o crítico literário francês Charles Augustin Sainte-Beuve defende que a produção literária não é distinta ou sequer separável do homem e da organização. O crítico relata que é difícil o julgamento da obra literária independentemente do conhecimento do próprio homem, e acrescenta que, no entendimento dele, "tal árvore, tal fruto"; e que o estudo literário o conduz muito naturalmente ao estudo moral. (SOUZA, 2011, p. 521). Para ele, não se pode estar seguro de ter apreendido o autor "por inteiro".
Já o crítico literário belga George Poulet condena diretamente o método de interpretação pautada no conhecimento prévio do leitor sobre informações biográficas, uma vez que não coincide com o conhecimento interno da obra. Segundo o autor, isso se dá porque, no momento da leitura, o que conta "é viver, de dentro, em certa identificação com a obra e só com a obra.[...] Coisa alguma exterior à obra poderia participar do domínio extraordinário que a obra exerce sobre mim agora." (POULET, 1976, p. 78).
De acordo com Poulet, a obra literária só se realiza no campo da leitura, e assim ganha interioridade, ou seja, um ser, uma consciência, que não é acessível em um primeiro momento, mas que na literatura se desnuda, pois está sem máscaras. O leitor cria, através das palavras lidas, imagens e ideias, dessa forma, as personagens são entidades mentais na consciência do leitor; são formas mentais, objetos subjetivados.
A consciência do autor, no momento da escrita, e a do leitor, encontram-se em uma relação de escrita e leitura. Ou seja, a mente do leitor é o palco em que entidade mentais se apresentam e o eu do leitor empático se confunde com o eu existente na obra lida. (POULET, 1976, p. 74, 75, 76).
Dessa interação surge uma terceira consciência, um terceiro ser, que é a fusão entre o eu da obra e o eu leitor. Se basear apenas no que o texto diz e não em críticos, estudiosos, influências filosóficas etc, é o que o crítico literário Leo Spitzer faz para interpretar o poema O êxtase, de John Donne, "preferi acreditar no que o poeta diz de inicio, com voz inconfundivelmente verídica, sobre a beleza e a realidade do ekstasis espiritual." (SPITZER. 2003, p. 54).
Se a relevância estivesse na biografia do autor, em sua hereditariedade, genética e assim por diante, a obra machadiana não teria sido reconhecida em seu tempo, pois Machado era mulato, isso em uma sociedade escravocata. Não era de boa aparência e não tinha saúde. Era raquítico, míope, epilético.
Mas em que residia a valoração da obra de Machado? Nas histórias singulares, extraordinárias? Não necessariamente.
Um dos maiores sucessos de Machado é Dom Casmurro: um homem velho e recluso que relembra sua vida com sua falecida esposa com a certeza de que foi traído, porém sem a comprovação do flagrante. O que tem de novo nesse tipo de situação? Nada de extraordinário. E sobre o tema? Adultério, suspeitas, ciúmes. Seriam esses temas originais? Claro que não, são temas comuns.
Quais seriam os parâmetros para um juízo de valor? De certo na estrutura, no enredo, a maneira de narrar, a organização, coerência, dinâmica, lógica interna da obra. Embora o contexto histórico ou em que situação a obra foi escrito sejam interessantes para uma melhor compreensão, entendimento do texto, em alguns casos, até mesmo informações sobre o autor, tais informações não devem servir de critério para empregar um juízo de valor sobre a obra.
De acordo com o filósofo, hermenêutico e psicólogo Wilhelm Dilthey, se por um lado, para o leitor compreender a obra, basta acessar o outro dentro da obra; por outro lado, para essa compreensão deixar de ser meramente particular e passar a ser uma interpretação reconhecida, precisa de um procedimento técnico objetivo, ou seja, hermenêutico, para assim dominar a arte da interpretação.
Nesse sentido, tanto o texto em si, com o seu uso gramatical, como as ideias existentes nele — que contém o passado para além de sua época — devem ser estudados. Isto é: "a interpretação gramatical, que avança no texto de conexão em conexão até chegar aos nexos supremos no todo da obra, e a interpretação psicológica, que parte da transposição para dentro do processo criativo" (DILTHEY , 2010, 378).
Dessa forma, a defesa desse trabalho é de uma análise do texto em si por si. Ou seja, não devem ser levados em consideração fatores externos ao texto, como informações biográficas do autor, intenções, inspiração etc, conforme esclarece WIMSATT & BEARDSLEY (2002, p.641, 247).
Apesar de cada pessoa ter que completar, a partir do seu próprio sentido de vida, aquilo que ela capta de outras pessoas através de fatos sensíveis (DILTHEY, 2010, p.366), é preciso alcançar uma interpretação universal para que ganhe reconhecimento, validade, caso contrário, será apenas uma compreensão particular sem peso geral, científico, de método. Dilthey aponta a necessidade de um procedimento comparativo entre o "todo" e o "particular" e sua importância para a compreensão do texto. Essa técnica estilística foi utilizada por Spitzer, porém usando como base comparativa não apenas as diferentes obras de um mesmo autor, mas sim o que diferentes autores disseram sobre um mesmo tema.
Apesar das palavras de um poeta (também de um escritor) não surgirem de uma cartola, mas sim de uma cabeça, não é recomendável a busca por uma interpretação externa ao texto, pois o que é externo é particular, faz parte do mundo privado do autor, e esse mundo privado nem sempre será acessível em sua totalidade, e ainda que seja parcialmente, suas reais intenções não serão, porque isso é da competência psicológica, do subconsciente.
Isto é, a intenção de um autor não é acessível, logo não é recomendável, e por conta disso, não é sequer desejável utilizar desses fatores como parâmetro pelo qual devamos julgar o valor de uma obra.
Dessa forma, tendo em vista que são irrelevantes os fatores externos para o juízo de valor, não tem justificativa serem considerados. Assim, deve ser analisada apenas a estrutura da própria obra, através da semântica e da sintaxe, "através de nosso conhecimento habitual da linguagem, através das gramáticas, dos dicionários, de toda a literatura que é fonte dos dicionários, através em geral, de tudo que forma a linguagem e a cultura" (WIMSATT & BEARDSLEY, 2002, p.647). Sendo assim, cabe apenas a exposição do texto e os seus detalhes.
(2018)
REFERÊNCIAS:
DANZIGER. Marlies. K.; JOHNSON, W. S. Introdução ao estudo crítico da literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix/ EdUSP, 1974.
DILTHEY, Wilhelm. "O nascimento da hermenêutica". In: Filosofia e educação: textos selecionados. Trad. de Alfred J. Keller e Maria Nazaré de Camargo P. Amaral. São Paulo: Edusp, 2010.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. Trad. de Teresa B. C. da Fonseca e Vera Mourão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
MACKSEY, Richard; DONATO, Eugenio (Org.). "A crítica e a experiência de interioridade". In: A controvérsia estruturalista: as linguagens da crítica e as ciências do homem. São Paulo: Cultrix, 1976.
PROUST, Marcel. "O método de Sainte-Beuve". In: Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura. São Paulo: Iluminuras, 1988.
SOUZA, Roberto Acízelo (Org.). "Introdução [à História da literatura inglesa]". In: Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Chapecó (SC): Argos, 2011. P.
____________. "O princípio poético" . In: Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Chapecó (SC): Argos, 2011.
SPITZER, Leo. Três poemas sobre o êxtase: John Donne, San Juan de la Cruz, Richard Wagner. Trad. de Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 9-15, 40-55.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Trad. de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
WIMSATT & BEARDSLEY. In: COSTA LIMA, Luiz (Org.). Teoria da literatura em suas fontes. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 2 v.
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