Ardor (Queima, queima, queima)
⊱✿ – KIM NAMJOON
"Meu sangue quente vem queimando
Por tantos verões até agora
É hora de se acalmar"
— Lorde.
Para Suzana.
🔮
1974
Mergulhada no limbo das falsas estrelas e dos brilhantes de vidro, Love segurava o panfleto da Revista Chemtrails como se sua vida dependesse disso. O pedaço de papel impresso em tinta vagabunda tinha sido rasgado de uma página de jornal, que por movimento do destino e das brisas quentes da Califórnia, tinha arrastado-se até ela no meio do trânsito caótico e da poluição da cidade grande, quando caminhava de volta para o trailer onde vivia.
VAGA PARA REDATOR NA REVISTA CHEMTRAILS
NECESSÁRIO VASTO CONHECIMENTO MUSICAL E HABILIDADE COM MÁQUINAS DE DATILOGRAFIA.
HOLLYWOOD BLVD
LA BREA/72
NÃO TELEFONE, APAREÇA!
Anunciava o pedaço de papel rasgado que releu pela décima vez durante o caminho.
Nem sabia ponderar com clareza quantas milhas havia percorrido até ali, suas sandálias de cortiça e tiras de couro, que serpenteavam pelos tornozelos, eram só um lembrete da autoflagelação por ter escolhido aqueles saltos que nunca tivera costume de usar. Queria correr descalça até lá. Agarrar aquela oportunidade, que parecia um presente dos deuses, com unhas fincadas na carne. Era seu lugar e sabia. Sentia em alguma parte da alma.
Love ainda era meio menina. Pelo menos sentia-se assim. O momento mágico em que passava de fedelha para mulher, como se rompesse uma crisálida engenhosa e macia, nunca tivera, de fato, acontecido. Mal passara dos dezoito e ainda exibia o mesmo corpo lânguido e esguio de seios pequenos e bumbum magro, como se seus ossos tivessem sido perfeitamente encaixados numa estrutura firme que jamais obteria curvas sinuosas de mulher feita.
Mas como qualquer outra garota na época, mesmo em disparidade física, ainda era apaixonada por música, ídolos e pela fantasia Hollywoodiana. Contudo, não do mesmo modo. Não poderia dizer que se encaixava ali entre as groupies: as fanzocas, como as revistas chamavam as garotas devotamente apaixonadas por seus ídolos, o que lhe interessava não pairava, necessariamente, nos corpos dos integrantes da banda, nem chupando paus de caras desconhecidos só pelo fato de empunharem guitarras como se fossem deuses medievais com suas espadas de misericórdia desembainhadas. Mas entendia qualquer paixão que era nutrida pela música. Qualquer histeria provocada pela melodia de uma canção. Sentia que existia uma certa magia em tudo que movimentava uma massa, ou um número significativo de pessoas que aglomeravam-se, e deixavam seus corpos suados estagnados no mesmo templo, em uma troca mútua de energia e calor, fazendo todos vibrarem na mesma frequência. Estava acostumada a amar estranhos, estremecida por uma força além de um ímpeto natural desde muito pequena. Fora ensinada sobre o amor universal, irmandade, mas não chegava a acreditar que a cura para os males do mundo poderiam ser facilmente encontrados ficando chapada de ácido e aprendendo os desígnios do Kama Sutra.
Love acreditava que a música ainda era a única língua capaz de unir povos e nações, sem barreiras.
Cruzou a Hollywood Boulevard enquanto ouvia os xingamentos no tráfego: — desapareça da minha frente, hippiezinha fedida! — gritou um sujeito barbudo e com o bigode sujo de molho.
Love mostrou o dedo do meio antes de pôr o pé na calçada e encarar a fachada do prédio da revista Chemtrails. Parecia que todos os seus sonhos estavam abrigados ali.
— Seguidora de Satã! — berrou o homem, antes de seu carro velho e de motor oco, cruzar a avenida.
Nada poderia destruir seu dia feliz, sua chance de ter o mundo e a vida que merecia em suas mãos.
Quando mais nova, costumava surrupiar, vez ou outra, as revistas de música das bancas lotadas. Enquanto os homens vislumbravam-se com os peitos à mostra na capa da Playdames, Love esgueirava-se entre os rapazes e alcançava a revista musical, correndo em disparada logo em seguida, parando somente quando chegava à praia e podia ler e folhear as divindades que davam o ar da graça nas páginas, entrando em outro plano existencial com criaturas revestidas de couro e saltos altos, glitter e com olhos injetados de paixão.
A capa daquele mês mostrava uma banda famosa na época, a Velvet Goldmine, cujo líder, Taehyung, um rapaz alto, sedutor e potencialmente problemático — a promessa de um novo Jim Morrison, como gritavam as letras capitulares da capa —, anunciava a primeira turnê internacional da banda.
A revista trazia um review do último disco, Fantastic Voyage, e era chamado de revolucionário e jovem, ou algo menos sutil do que aquilo, mas o que mexia com o coração de Love eram as palavras. As doces e sensíveis palavras de um sujeito sem rosto. Se seu corpo fosse feito de papel, gostaria que aquelas mãos mágicas tivessem escrito história em suas curvas. Aquele homem parecia escolher sempre as melhores conjunções com uma delicadeza pessoal e única, um certo ardor em tom de crítica que não era destrutivo, mas muito bem intencionado, imersivo e bonito. Não havia como denominar de outra maneira. E não se esquecera dele nunca: Joonie. Joonie Kim.
Vez ou outra fechava os olhos e imaginava seu rosto, que tipo de corpo teria, seus traquejos, suas manias. Mas o que encantava suas fantasias eram as mãos, as mãos que teciam aquelas palavras como um urdume uniforme. O homem por trás do texto que tinha salvo sua vida. Mãos que em noites solitárias se tornavam as suas e queimavam-na em um ardor de paixão sob as estrelas. Doce Joonie, Joonie, Joonie.
Talvez, por viver à beira-mar, num trailer parcialmente oxidado pela salina, sempre vestida em um pedaço de trapo herdado de alguma estranha, com sua magreza assustadora, todos deduzissem automaticamente que Love era uma garota perdida.
"Você é uma daquelas seguidoras do demônio?"
Diziam pelos cantos, em perguntas que soavam mais como convicções próprias.
Era confundida com uma das Garotas Manson, vez ou outra, como costumavam chamá-la naquele tempo, mesmo anos depois de tudo ter acontecido. Odiava aquele homem e nunca, em seus poucos dias de vida, seguiu Diabo algum.
Mas tinha medo dos estranhos que pareciam inofensivos e se aproximavam com intenções difíceis de ler.
Em uma noite que voltava para casa sozinha, quase fora agredida por uns rapazes, lembrava bem que eram estudantes da UCLA*, os seus casacos de filhinhos de papai bordados com a insígnia da classe superior não saía de sua memória.
Ali mesmo na praia puxaram-na pelo cabelo, arrastando-a pela areia fria com tapas e socos e ela sabia bem o que aconteceria se não tivesse esperneado e gritado por ajuda, sendo salva por uma surfista que abria um quiosque por perto e a conhecia de vista. Entendia desde muito nova que seu corpo, coberto ou não, parecia nunca ser sua propriedade. A mãe avisara antes de partir que o mundo era cruel e sujo. Sabia muito bem o que aconteceria depois que parasse de lutar, quando as forças se extinguissem; homens costumavam comparar cansaço com permissão. E ela, por ser livre, era vista como uma garota de ninguém. E o que não era de ninguém, acabava por ser de todo mundo. Conhecia bem a rota.
Anos antes, tivera que deitar para alguns estranhos que a abordaram no píer, estava faminta e não tinha um tostão, o pai havia gasto todo o salário com vodca, deixando ela e a irmã caçula, Cherry, sem comida por quatro dias inteiros.
Poderia muito bem roubar, sim, poderia, não seria tão difícil se esgueirar pelos quiosques e pegar alguma coisa por ali, quando algum turista distraído saísse para tirar fotos. Mas não teve forças, não naquele dia.
Dez dólares foi o preço combinado pelos minutos de horror. Fechou os olhos e apertou bem a nota amassada entre os dedos quando o primeiro, da macabra tríade de garotos, penetrou-a fundo. Deixou que sua alma escapasse para longe já que o corpo não podia ser livre. Pensou em Joonie e no que ele acharia de suas opiniões musicais ainda cercadas de um encanto juvenil. Pensou que suas mãos, tão delicadas para tecer palavras bonitas, jamais seriam capazes de machucá-la.
Mas vez ou outra sentia o cheiro do protetor solar Banana Boat* que o estranho usava naquela noite, a essência de limão e menta ficou impregnada em seus cachos por semanas, como a lembrança física de um pesadelo morto.
Tentava ao máximo enterrar aquela memória terrível e o gosto da culpa que ainda carregava por vender-se daquela maneira.
Mas nunca cedera sequer a espiral do LSD que derrubou sua mãe e tornou o pai um alcoólatra viciado em benzedrina*. Seu modo de se desligar do mundo era ali, nos discos, encarando as caras marcadas de tinta de Ziggy Stardust ou Iggy Pop mergulhado em glitter prata, mostrando a bunda em algum show lotado em Birmingham. Relia todos os artigos escritos por Joonie até saber de cor as palavras. Ali tinha criado seu refúgio, e dele tinha feito um confidente.
Utilizando guardanapos de papel para escrever cartas, que enviava a redação da Chemtrails e assinava com seu pseudônimo mágico: Penny Lane. Como a música famosa dos Beatles que sabia que ele adorava.
Nunca obtivera resposta, mas algo lhe dizia, nem que fosse uma sutil menção nas cartas marcadas de um tarô surrado que a avó lhe presenteara ainda quando armava a barraca ali mesmo, pelos arredores de San Gabriel e montava monólogos fantasiosos para casais apaixonados e solteironas tristes, que um rapaz de olhar bonito salvaria sua vida. Era dele. Deveria ser ele.
Em outros momentos, sabia que se pedaços de papel pudessem mesmo prever o futuro, teriam mostrado a solidão daquela vida cruel.
Mas dispersou o pensamento triste e colocou o pé diante do primeiro degrau rumo à nova vida.
Pensou na chance de recomeço que teve depois daquilo, no trabalho de meio-expediente numa loja esotérica pelos arredores de Redondo Beach que foi oferecido por Minnie, a proprietária e melhor amiga de sua mãe. A pequena criatura de cabelo ruivo e estatura de fada que adorava música e sempre trazia seus discos para que Love pudesse desfrutar de sons de qualidade. No fim do dia, ficavam chapadas nos fundos da loja e ouviam todas as canções até o ruído branco do vinil preencher os ouvidos e a estática desligar suas mentes banhadas de suco de maçã e erva.
Riu ao lembrar da cena e encenou outra vez o que havia aprendido. Lembrou de como se apresentaria, Minnie havia lhe ensinado, assim como as roupas que tinha lhe emprestado para parecer um pouco mais velha, tão largas nas coxas e na cintura que não conseguia tirar de Love o ar de Verão de Amor que ainda carregava nas entranhas.
Seus dedos ardiam, assim como a pele sensível por baixo daquela calcinha pequena e apertada que não estava acostumada a usar. Se perguntava qual era a necessidade da peça. Parecia só contorcer seus pensamentos e fazê-la pensar com menos clareza.
Seu coração batia num compasso desritmado e atípico. Tum, tum. Estava nervosa.
"Olá, sou Love Greene, tenho dezoito anos e queria me candidatar a vaga de redatora"
Repetiu para si mesma antes de cruzar a porta de vidro e ser abordada por um homem de estatura banal.
— Ei, o que quer aqui? Não temos nada para você, criança. — disse o homem, caminhando para impedi-la de entrar.
— Não, não senhor. Não vim pedir nada. Quero me candidatar a vaga de redatora. — Exibiu o papel cuidadosamente dobrado, rasgado nas pontas.
O olhar que o homem lançou a Love poderia ter ferido seu coração em outros tempos, antes da dureza da vida secá-la por completo, ali, era só mais um dos muitos que o caminho até aqui tinham lhe proporcionado.
— Você, menina? Ah, ande logo, não tem nada aqui para você.
— Eu vim a convite do Sr. Joonie Kim, ele está?
Joonie Kim devia estar cercado de mulheres e rapazes cheios de amor para lançar aos seus pés, jamais lembraria de um pseudônimo ridículo de uma garota que escrevia cartas de amor aos discos como se ele fosse a personificação de todas aquelas músicas. Nem sequer sabia quem ela era.
O homem lançou um olhar incrédulo, mas caminhou até o telefone e avisou que uma garota estava ali para ver o Big Joon, em poucos minutos já estava no elevador, erguida e puxada por cordas lançadas de um Céu particular.
As portas se abriram e Love caminhou para dentro da sala de clima caótico, piso linóleo, e cheiro forte de café expresso e nicotina.
— Ei, bonitinha! Posso ajudar? — Um rapaz se aproximou ainda sentado em sua cadeira de escritório com rodinhas de silicone, deslizando até ela.
— Hum, eu vim para a entrevista... — Exibiu o papel que o rapaz, cujo crachá indicava o nome Dwayne, se esforçou por trás das lentes dos óculos para ler.
— Ah, redatora. É com o Big Joon ali, naquele cubículo. O cara alto bem ali... — Os olhos de Love demoraram alguns segundos para acompanhar a indicação de Dwayne como se buscasse um fantasma através de um acrílico manchado por resquício de cola ressecada.
— Pode ir até lá e boa sorte! — ele disse, erguendo o dedão positivamente.
Love caminhou por entre as mesas de homens irritados, o hálito cheirando a bebida — a mesma vodca que era o perfume familiar de lar e da figura paterna —, até a porta do cubículo onde um homem de ombros largos e costas proporcionalmente alinhadas segurava o gancho do telefone contra a orelha. O quadro diante dele exibia avisos, fotos, capas e para sua surpresa, todas as suas cartas escritas em guardanapos de papel. O pseudônimo brilhando graças a caneta colorida de cheiro doce parecia invocá-la: Penny Lane.
A cadeira virou-se assim que o telefone foi posto outra vez no gancho, o rosto, que por tanto tempo Love havia tentado dar forma, cor, traços, era excepcionalmente marcante e lindo. Demorou seus olhos em cada detalhe dele. Cada um. Sua pele dourada como uma camada de ouro em pó soprada por cima da crosta mais fina de um punhado de células pulsantes, as pintas sutis nas extremidades de um rosto delicado, as covinhas que ganhavam forma como fendas marítimas no seu rosto uniforme e a boca, carnuda e excepcionalmente tentadora. Nem se tivesse uma habilidade sobrenatural seria capaz de juntar todas aquelas características perfeitas em uma mesma criatura.
— Você veio para a vaga da redação, não é? — perguntou, apontando para a cadeira diante da sua. — Você é maior de idade, menina?
Love parecia ter entrado em estado catatônico. Uma ambiguidade sem sentido para tudo que fremia dentro dela, em êxtase. Seu corpo nem sequer fora capaz de ler aquela emoção, estava acostumado ao ardor sutil da carne, mas nunca ao incêndio dilacerando em chamas as vísceras e devorando-a por dentro com gosto de sutil de Paraíso.
Observou as mãos estendidas de Joonie Kim. O seu Joonie. Quis beijá-las. Quis tocá-las e observar todos os detalhes como uma quiromante em busca de respostas nas linhas marcadas de centenas de vida que aquela criatura resguardava dentro daquela alma antiga.
Sibilou as palavras e então, teve o ímpeto de sentar-se, deixar seu corpo reagir conforme queria, mesmo que não tivesse total controle dos próprios membros.
— Qual seu nome? — ele perguntou, deslizando a mão pelo cabelo louro que exibia a raiz em um tom bonito e natural de castanho.
Respirou fundo antes de ter coragem de emergir de todos os sonhos e expectativas. A Crisálida protetora acabara de romper, e agora, havia espaço para suas asas.
— Penny, Penny Lane.
🔮
*Banana Boat: Marca de protetor solar.
*Benzedrina: foi o nome comercial de um produto usado inicialmente como descongestionante nasal com a anfetamina como ingrediente ativo.
*UCLA: Universidade da Califórnia em Los Angeles.
—
N/A: Uaaau!
Gente, eu tava contando os dias para publicar a primeira parte desse conto que mexeu com meu coração, confesso que considero "Coração Selvagem" um dos meus textos favoritos de 2021. Quis tentar algo novo e experimentar uma narrativa em terceira pessoa, o que foi bem satisfatório!
Lá no Twitter vou atualizando vocês sobre as outras partes que serão liberadas em breve.
Agradeço muito a quem sempre tira um tempinho para ler, votar e comentar. Eu sempre serei muito, muito grata por isso.
A gente se vê!
— Sofi!
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