Ⓔ01 Ⓒ03 ✖ CLARA & ELISE
Os empregados da empresa de transporte faziam as mudanças finais para a enorme mansão. Clara olhava aquela exuberância com desaprovação, sentindo a aproximação da sua amiga de longa data.
— Não havia necessidade nenhuma de comprar uma casa tão grande quanto essa, Elise. Somos apenas duas pessoas. — Clara altercou de braços cruzados, encarando os belos olhos castanhos de sua melhor amiga.
— Para que ter tanto dinheiro se não podemos gastá-lo com esses pequenos luxos da vida? — Elise respondeu com descaso e animação.
— Pequenos? — O sobrolho bem desenhando de Clara ergueu-se diante daquela palavra totalmente contraditória.
— Vá Clara, é só uma casa.
— Para mim uma casa deveria ser um lar acolhedor, não um lugar frio e desconfortável. — Clara olhava a enorme mansão de mármore e azulejo com desconforto, abraçando o corpo e se encolhendo. Não apreciava nem um pouco a sensação que aquele lugar lhe passava.
— Não seja tão pessimista, Mulder. Até parece que comprei uma caverna.
— Elise, Elise, você nunca muda não é mesmo? — Clara tentou sorrir diante das hipérboles da amiga e se garantia a si mesma de que bastava a presença e amizade de Elise Braisser para se sentir em casa.
— Quero ter tudo o que me foi negado quando nos arrancaram do seio de nossas famílias — Elise explicou, como se apenas aquilo justificasse o seu lado consumista. — E por falar em família... você vai procurar por ela? — Havia um secretismo em relação àquela pergunta e até mesmo um certo cuidado ao proferir aquelas palavras. A reação de Clara foi exatamente a que Elise esperava; a expressão da amiga se fechou em tristeza e desalento.
— Sim. O detetive particular que contratei para achá-la está perto de chegar a resultados. Muito em breve poderei revê-la. — Clara tentava falar com fé e alegria, mas esses sentimentos já tinham sido mortos há muito tempo.
— Estou tão feliz por você, minha querida amiga. — Elise abraçou Clara espontaneamente, chegando mesmo a surpreender a mulher. — Eu gostaria muito de ficar, mas terei de me ausentar para tratar de uns assuntos pessoais pendentes.
— Tudo bem Braisser, pode ir. — Clara assentiu com um sorriso carinhoso, mas ao ver a amiga se afastar, sua mente recordou de algo que não a havia abandonado um segundo desde que chegara a Amsterdã, meras horas atrás. — Elise?
— Sim?
— Você já... cruzou com ele? — A hesitação de Mulder bastou para que Elise percebesse a quem a amiga se referia, mas a tensão e o medo instaurado em seu rosto, foram a afirmação que Braisser precisava para saber que Clara ainda temia aquele fantasma do seu passado.
— Por incrível que pareça, não. Ele parece estar se escondendo em um casulo — respondeu com tranquilidade, sorrindo, ainda que não soubesse como passar o mesmo sentimento para aquela que considerava como uma irmã.
— Não ria da situação.
— Pois você deveria. Por culpa dele você está levando essa vida profana. Diferente de mim, eu sei que você não tira nenhum prazer nisso, por mais que finja que sim. Eu te conheço bem demais, Clara. — Elise cruzava os braços e entoava suas palavras num tipo de sermão carinhoso.
Não estava zangada ou desiludida com a amiga, mas queria que a mesma parasse de se sentir uma vítima daquela história e tomasse o controle de sua vida, de uma vez por todas. O status adquirido, o dinheiro e a suposta liberdade, eram meros artefatos para camuflar a verdadeira prisão a que Clara Mulder se auto condenara.
— Eu sei que sim. Você tem razão, não podemos chorar pelo passado envenenado. Devemos nos alegrar por ainda estarmos vivas e a salvo. — Aquele discurso compreensivo era tão falso quanto o sorriso aliviado que suspirava aos olhos de Elise, mas fora o suficiente para dar alguma tranquilidade momentânea à amiga.
— É assim que eu gosto de ver você, minha querida Clara. — Braisser abraçou a amiga de longa data com bastante afeto. A amizade das duas era forte o suficiente para dar algum alento a Clara e impedi-la de desistir de ser feliz. Tal como Clara pensara, Elise era o suficiente para se sentir em casa. — Agora preciso de ir.
Clara assentiu, vendo Elise partir e mais cargas adentrarem o casarão de dois andares.
Graças ao dinheiro que havia feito ao longo dos anos como Madame de bordeis, elas tinham dinheiro o suficiente para comprar meia dúzia de mansões iguais àquela, e com a abertura do novo negócio no seio de Amsterdã, talvez conseguissem dinheiro para comprar mais duas do mesmo. Mas Clara Mulder não queria isso, ela queria um lugar acolhedor e familiar. Talvez uma casa igual a que ela tinha em Yerseke: pequena, simples, humilde, mas acolhedora, situada perto da baía da cidade e com vista para o Mar do Norte.
Contudo, Elise era o completo oposto de Clara e gostava de luxo, de se presentear com as mais finas e caras peças que pudesse comprar. Tudo o que fosse material e servisse para preencher o vazio que ambas sentiam, ainda que soubesse que dinheiro não compra felicidade.
Após longas horas direcionando as dezenas de carregadores com os pertences que maioritariamente haviam sido comprados por Elise, Clara se deu um pouco de descanso antes de voltar a sair para a grande abertura do seu novo estabelecimento.
Este era apenas mais um franchising de um negócio que já tinha longos anos e tinha sido iniciado por Madame Angélique em Toulouse, França. Lembranças de Angélique faziam Mulder agradecer de ainda estar viva, apesar de tudo.
Aquando da casa vazia, Clara subiu a enorme escadaria curva até o andar superior e caminhou o longo corredor de paredes creme e dourado, com inúmeras decorações atemporais, adquiridas em leilões ou até mesmo oferecidos por antigos clientes e admiradores.
O chão era forrado a vermelho e as portas pareciam não acabar. Para seu próprio facilitismo, Clara colocou ao lado da porta do seu quarto um vaso de petúnias lilases num jarro, em cima de uma pequena mesa de apoio, talhada a dourado e com suporte de mármore.
Aquelas flores tinham um significado muito profundo para si, ainda que doloroso, pois a lembrava todos os dias do que havia perdido.
A lembrança de uma jovem adolescente, tão inocente quanto um anjo, correndo pelas praias da baía livre e feliz, a faziam pensar o quão miserável ela estava. O sorriso sereno dos lábios da sua antiga pessoa se abriam apaixonadamente aquando da aproximação daquele jovem rapaz por quem um dia morreu de amores. O verdadeiro príncipe encantado, ela pensava, mesmo desconhecendo a verdadeira essência dele e o seu passado e presente. Para Clara nada mais importava naquela altura. Ela estava iludida no seu mundinho perfeito, onde tudo finalmente estava se ajustado e seus sonhos estavam se concretizando.
O banho de imersão não demorou mais que meia hora, ainda que Clara precisasse bem mais que isso para relaxar, no entanto ela necessitava de um pouco de calma e paz antes da grande inauguração.
O medo de voltar a sair às ruas de Amsterdã era o mesmo de anos atrás, mas agora ela era uma mulher crescida e consciente. Não mais uma adolescente cega de amor que teve sua vida destruída por um homem em quem depositou toda a sua confiança, sua inocência, sua dignidade e sua felicidade. Não bastava ele ter destruído o seu coração, ele também tinha esmigalhado sua alma. Não importava a nova identidade que Clara adquirira, ela sempre seria a jovem estúpida que confiou de mais.
Clara buscou todo o ar que podia consumir, ao ressurgir à superfície. Suas lágrimas se misturavam com a água que banhava seu rosto e suas mãos apertavam fortemente as bordas da banheira de porcelana, embranquecendo os nódulos de seus dedos.
Sua vontade de gritar era aplacada pelos soluços constantes em sua garganta e o seu peito ardia, arranhando pela vontade de respirar.
Pé ante pé, ela saiu do seu banho como se nada tivesse acontecido. Nas águas turvas da sua banheira, ela havia afogado suas dores e demônios e agora ela não era mais a lembrança morta há quase duas décadas. Ela era Clara Mulder, a sobrevivente.
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Os saltos agulha pisavam o chão brilhante com elegância, como se de uma passerelle se tratasse. A rainha do palco desfilava com classe, trajando o seu vestido mais ousado, com um decote frontal até o umbigo e de tecido transparente nas costas. Suas pernas expostas eram a mais bela obra criada e não era apenas só o corpo de Madame Avalon que chamava a atenção. Seu olhar cristalino de Femme Fatal, delineado fortemente de preto, prendia de forma hipnotizante toda a atenção dos presentes.
Seus lábios encarnados estavam entreabertos, apreciando em silêncio cada um dos homens musculados, trajados apenas com uma peça de roupa e espalhados ao longo do salão principal do Paradise Desire, entretendo os convidados.
Todos a olhavam com desejo. Homens e mulheres estavam ali presentes, uns para tomarem apenas uns copos e conviverem, conhecendo o novo negócio aberto pela lendária Madame Avalon, conhecida em toda a Europa pelas suas ideias inovadoras e pela sua sagacidade e mistérios. Outros clientes estavam ali para se divertirem além da festa, rodeando os acompanhantes masculinos que trabalhavam ao serviço da nova casa de prazer da Red Light District em Walletjes.
— Então? — Elise questionou com ansiedade e animação, acompanhando os passos da sua parceira.
— Ótima escolha, Lady Sasha. — Clara respondeu impassível, sem demonstrar um pingo de emoção. Não que ela não sentisse nada, mas ela gostava de se mostrar uma mulher dura e impenetrável quando vestia a pele de Madame Avalon.
— Os espécimes que selecionei são realmente extraordinários — Elise comentou, sorrindo para os clientes e apreciando os gigolôs.
— Não os trate como mercadorias. — Clara reprovou as palavras e reações da associada, a puxando pelo braço e fazendo esse comentário apenas ao pé do ouvido dela.
— Desculpe, má força do hábito. — Elise respondeu com uma risadinha, segurando duas taças de champanhe. — Agora menos seriedade. Vamos nos divertir, Madame Avalon. — Elise sugeriu num tom mais alto e alongando uma olhada para os mais de quinze homens que ela havia contratado e experimentado previamente. — Escolha um, ou dois, ou quantos você quiser. — O sorriso sugestivo de Elise levou Clara a erguer uma sobrancelha.
— Tudo bem, Lady Sasha. Vou alinhar no seu joguinho. — Clara assentiu, olhando em volta na festa e procurando minuciosamente pela escolha perfeita, como uma predadora feroz.
Não que essa fosse a sua intenção. Ao contrário de Elise, Clara avaliava a "mercadoria" pela sua essência, como se ela buscasse algum tipo de clique especial.
Era sempre assim. Em qualquer uma das suas casas de prazer ela sempre tinha um ou dois favoritos. Alguns ela se envolvia fisicamente, outros apenas os tomava embaixo da sua asa e os privilegiava.
— Qual o seu nome, rapaz? — Clara questionou, parando um rapaz de cabelos negros e olhos esverdeados, bem delineados pelos seus cílios e sobrancelhas carregadas.
— Conrad. — O rapaz se surpreendeu ao ser parado pela sua chefa.
— Esqueça seu nome verdadeiro, porque enquanto você trabalhar aqui, você será outra pessoa. Vou perguntar de novo, como você se chama?
— Não tenho ideia, Madame Avalon. — O rapaz engoliu em seco. Não era seu costume temer a mulheres, pelo contrário. Ele tinha um grande poder de persuasão e normalmente era ele o dominador, mas perante Clara, ele parecia ter perdido todas essas qualidades que o tinham feito conseguir o tão difícil posto de Adão, no Paradise Desire.
— O que você acha, Lady Sasha? — Clara inquiriu a parceira, sabendo que a mesma tinha a criatividade necessária para o batizar.
Lady Sasha rodeou o rapaz, analisando cada milímetro do corpo dele, o tocando, o avaliando e se recordando do dia em que o "entrevistou".
— Você é o malabarista. — Ela indicou após lembrar da habilidade dele com os dedos.
— Sim. — O sorriso do rapaz se alongou sedutoramente, encarando com sensualidade os olhos castanhos de Elise.
— Devious. Esse é o nome do nosso Adão. — Lady Sasha respondeu, mordendo o lábio e mantendo o contato com os olhos do rapaz.
— Devious será. E o seu, já escolheu? — Clara foi taxativa, Devious era seu. Pelo menos aquela noite.
— Kidd. — Elise apontou para um rapaz de aparência jovem e tímida, o perfeito anjinho do Éden. — Acredite, ele é ótimo no que faz. — esclareceu, ao perceber o olhar confuso que Clara lançou sobre si. — Devious, você gosta mais de mulheres ou de homens? — questionou de seguida, tendo em mente algo cabuloso.
— O que você preferir que eu goste, Lady Sasha. — O sorriso sedutor não saía dos lábios dele e aquela questão não o havia incomodado de todo, para surpresa de Elise.
— Eu falei que eles eram ótimos. — Ela comemorou entusiasmada, mas para Clara aquilo não tivera tanto o encanto que a amiga esperava. — Agora vamos, porque a noite está só começando.
Clara assentiu incomodada. A ideia de se divertir um pouco de repente não lhe parecia tão tentadora quanto antes. Não por preconceito com a resposta de Devious. Num mundo como o que Clara levava, como Madame de um bordel masculino, não havia espaço para preconceito e tabus. O que a tinha deixado desanimada era diferente, algo inexplicável.
Diferente de Elise que vivia para aquela vida promíscua, Clara apenas buscava um ponto de fuga dos problemas que a assombravam.
As duas se retiraram mais cedo da festa. Apesarem de serem as donas do Paradise Desire, elas não eram de todo a alma da festa. Já haviam feito suas aparições, apresentações e conversas jogadas fora durante as duas primeiras horas e a noite ainda prometia durar até o amanhecer.
Ao fundo do salão havia uma cortina vermelha de fios brilhantes, decorando uma entrada em arco. Esta passagem dava acesso aos quartos criativos, onde já vários clientes haviam estreado — e ainda estreavam — aquela noite. Devious e Kidd fizeram as entradas afastando as cortinas para elas passarem, mas antes que Clara sumisse para lá da cortina, uma mão circundou o seu braço e a prendeu no lugar.
Seu olhar azul cristal encarou a mão masculina que a agarrara e por segundos, antes de fitar o rosto, seu coração bombeou fracamente, falhando algumas batidas em antecipação de um encontro que ela não estava preparada para ter.
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