Ampulheta Ou, Sobre a Corrosão do Conformismo
Outro dia, e outro, e outro, e passa o tempo, que se esgota sem que percebamos. Que se esvai entre os dedos, sem retorno. A sensação de imortalidade, típica da juventude, nos abandona pouco a pouco, e uma certa angústia pela proximidade do fim nos acomete. Porque vivemos pouco. O que é um século de vida, quando muito se vive? Parece muito. Não é nada. Passa rápido. Rápido demais. Nos perdemos entre idas ao mercado, boletos bancários (sempre os malditos boletos), compromissos em geral. É trabalho, trabalho e mais trabalho. Um recesso aqui, uma semana lá, com sorte férias de um mês em algum período qualquer do ano. Os sonhos se acumulam, quase sempre sem realização. Vivemos o cotidiano comum da vida diária toda igual, torcendo para chegarmos pelo menos inteiros em casa. E sempre em busca de um sentido. Pra que tudo isso? Pra quem tudo isso? Em nome de quê ou de quem? Rastejamos por migalhas de uma sociedade de castas, onde existem a classe A, para quem leis não há, e as demais, para quem as leis ganham novos contornos. Não passamos de fantoches nessa grande matrix programada. Pressão, opressão, faça, faça, produza, melhore, empregabilidade, talento, qualidade, o novo celular no mercado, o mercado em si, a bolsa de valores. E nós, por aí, perdidos, ausentes...
— Vai na manifestação? — ouço, distante, outro mundo, alguém perguntando. Não entendo.
— Quê?
— Tá dormindo, véio? Foi boa a noite, hein? Vai na manifestação ou não?
— Ah! Não, sim... Ah, sei lá, cara, será mesmo que resolve alguma coisa?
— Pode não resolver, mas pelo menos saímos um pouco daqui...
— É pra isso que serve uma manifestação? Pra fugir do trabalho?
— Também. Mas podemos entender não como uma fuga, apenas, mas como uma tentativa de mudar a nossa realidade.
— Lindo pensamento. Já participei de tantas... Nunca vi qualquer resultado...
— Bom, enquanto você pensa aí, eu vou vestir a camisa e bradar contra a bandidagem que ninguém prende. Abraço, véio.
A vida é luta
Arnaldo se afasta. Fico pensando em como nos permitimos chegar a tal ponto. Ninguém mais tem voz, e quando alguém tenta falar, é calado de imediato. Há alguns anos não imaginávamos viver novamente esse tipo de situação. Não parecia possível. Tínhamos superado aquilo. Mas uma nova geração veio, de políticos inclusive, com um pensamento diferente, e aqui estamos, tudo outra vez, buscando soluções que nunca funcionaram. Já fui da luta, levei porrada das forças de segurança, participei de coletivos sociais, briguei dentro dos coletivos também... E nada. Nada mudou. Mas o que eu esperava realmente? Que tipo de mudança? Eu pensava em termos de nicho. Precisamos fazer crescer o movimento negro. Precisamos falar sobre o feminismo. Mas eu preciso pagar essa conta aqui, também e, a propósito, fui chamado novamente pelo gerente de minha para renegociar aquele empréstimo que eu não consigo pagar. Agora ele me fala em tomar meu carro. Eu estou perdendo minhas coisas para um banco, e ainda ouço o gerente me dizer que preciso aprender a cuidar de minhas finanças, a gerenciar o meu dinheiro. Eu tenho tantas coisas a gerenciar... Uma família numerosa (com filhos que não conseguem emprego, mas é claro, eles não se esforçam o suficiente, é o que alguns me dizem), um carro necessário, porém oneroso, uma casa alugada (o sonho da casa própria? Que pena...), um quintal com uma pequena horta para ajudar no orçamento doméstico.
Pare! Pare, ou atiro!
Na TV, o governo diz que não há mais dinheiro em caixa. Mais cortes. Na Educação, na Saúde e na Segurança, especialmente. Não há mais de onde cortar, essas serão as áreas afetadas. Parece que agora a culpa é dos aposentados. As pessoas vivem demais. Deve ser por isso que vão cortar na Saúde e na Segurança. Com menos saúde e segurança, mais mortes, portanto, mais dinheiro. Tem lógica. Meio cruel, mas pensando pragmaticamente... Porém, ainda tem a Educação. Qual o problema com a Educação? Dizem que os governos não gostam de pessoas bem educadas e inteligentes, pois aumenta as chances de convulsões sociais. Pessoas pensantes tendem a ser mais rebeldes. É mesmo? Mas qual a utilidade da Educação, então? Ela tem um sentido utilitário, puramente técnico? Pensar é tão ruim assim?
Arnaldo diz que "não sou mais da luta". Isso o incomoda sobremaneira. É curioso. Ele é mais de dez anos mais novo que eu, e entrou na "luta" por minha influência. Agora diz que virei o típico senhor que envelhece e ouve Jazz pelo resto de sua vida sem sentido. Porque há sentido enquanto há luta. Tendo a concordar, em parte. Apenas estou cansado. Com todos os problemas que tenho, sei que ainda são mínimos perto daqueles enfrentados por classes e categorias bem mais afetadas que a minha. Eu ainda tenho um carro para perder para o banco. Eu ainda tenho uma casa alugada. Muitos estão pelas ruas. Isso aqui e no mundo todo. Eu me sinto mal pela ausência na luta quando penso na vastidão de pessoas marginalizadas. Além de marginalizadas, ainda vistas como sanguessugas por uma classe mais alta que se considera (e é) dona do poder, dos meios de produção e do discurso oficial, repetido por toda a mídia hoje existente. Não temos mais alternativas, não podemos fazer um contradiscurso, sob risco de prisão.
Não há pena de morte. Aqui se faz, aqui se paga. Aqui é pena de vida.
Minha esposa sempre sonhou em viajar mundo afora, principalmente para a África. A passeio, sim, a vida é curta, é uma só (pelo menos suponho que seja uma só), mas também para conhecer outras realidades, para entender um pouco mais a dureza da vida. Hoje se propaga ideias de que "falta Deus" na África. Não sei se faltam deuses, mas certamente sobram exploradores. Um continente devastado por usurpadores durante séculos, e agora, à beira de um colapso, quando pede socorro, não recebe ajuda dos mesmos que os destruíram, e ainda são obrigados a ouvir que falta um Deus para chamar de seu. Os discursos famigerados e tão bem aceitos por grande parte da massa, que apenas reverbera o que houve nas caixas ditas "mágicas" (a feitiçaria pode ser usada de diversas formas, não?). Tudo gira em torno de indústrias, indústrias, indústrias. O valor está em números.
Já ouço as primeira bombas espocando. As hordas de segurança seguem seu trabalho usual, de manter a massa o mais distante possível daqueles que representam a massa. E foi diferente disso em algum momento histórico?
O conformismo de boa parte da coletividade tem sido semeado paulatinamente durante as últimas décadas, através de um aparato midiático exclusivo e de um sistema educacional "sem ideologia", formador de técnicos, de bons profissionais, de competidores do mercado.
Foi há vinte e cinco anos. Uma grande movimentação nacional, uma onda de gente empurrando governistas contra a parede. Eu lembro de ter dito ao ainda jovem Arnaldo:
— A vida é luta, meu irmão! Agora é o momento, ou fazemos algo, ou conviveremos com esse modelo doente de sociedade!
Arnaldo era jovem demais para entender a importância da luta. Foi um massacre. Corpos e mais corpos, sem identidade, nem valor. Eu sobrevivi ao cerco. O governo reagiu violentamente, as cartas de direitos foram rasgadas, e emergiu dali um novo estilo de governança que não levava em conta nada que viesse das classes mais baixas. A voz, que já era baixa, calava-se. Ano após ano, lutas insanas, tanto quanto inglórias, travadas foram, para desespero de famílias inteiras que se viam destruídas.
Estou diante de um relatório financeiro qualquer do escritório onde trabalho, ouvindo a guerreira multidão sofrendo novos ataques. Há cada vez menos pessoas nas ruas, com coragem para confrontar quem quer que seja. A violência endêmica trata de fazer as pessoas "honestas" temerem sair de casa, a não ser para trabalhar. Não tenho mais força física para esse tipo de coisa. Perdi amigos e familiares em lutas anteriores.
— Um dia você me ensinou que a vida é luta, cara — sou surpreendido por um capenga Arnaldo chegando ensanguentado na pequena sala destituída de ornamentos. Eu não faço nada além de observá-lo.
— E por mais difícil que seja, acho que sem luta não somos nada. O sentido dessa nossa vida está na luta, na resistência. Não podemos simplesmente aceitar toda essa m... Não era isso que você me dizia?
sim, meu caro. Era isso. Eu dizia. Arnaldo tem razão. Levanto para buscar um café que beberei em homenagem à minha letargia, à minha covardia. Ao meu conformismo. Ele continua:
— Talvez tivéssemos alguma chance se os mais velhos voltassem à ativa. Estamos perdidos, falta-nos conhecimento...
— Faltam armas, rapaz. Não é só uma questão estratégica. Eles não brincam de guerra. Eles matam.
— E matarão cada vez mais, se nada fizermos. De qualquer forma, que diferença faz? Morrer ou viver dessa forma? É como estar morto em vida. Sequer podemos sair do país.
— Eu admiro sua paixão.
— Não tenho paixão. Tenho ódio.
— O ódio não te levará a lugar algum.
— O teu conformismo levará?
Não respondo. Não há saída possível para tal diálogo. O inconformismo me deixou com um olho a menos. Tive sorte. Meus irmãos não tiveram a mesma "sorte". Um morto, outro preso, não tenho contato, não sei mais dele. Nossos pais? Apenas presenciaram nossa destruição. Sem forças para lutar. O luto enquanto dura a vida. Lamento que eles tenham sido obrigados a acompanhar tais situações.
— Você era meu ídolo.
Arnaldo insiste.
— E continua sendo. É a sua postura passada que me inspira. Você me ensinou. Você fez de mim o que sou hoje. Talvez meus pais preferissem que fosse diferente.
— Certamente. Não queira saber o que os meus pais passaram e passam...
— Eu acho que posso entender isso. O que não posso é seguir a vida como se tudo isso aí fosse normal, sabendo que vivemos tempos muito diferentes num passado nem tão distante, e que qualquer mudança começa em nós.
— Já falamos sobre isso.
— Continuaremos falando.
— Estarei aqui para ouvi-lo sempre que quiser.
— Não quero ouvidos. Quero ação.
— Você quer mais derramamento de sangue. É só isso que...
— É isso que pensa de mim? A luta não passa de sangue derramado?
— A prática é essa. Eu não tenho mais idade nem vontade de lutar.
— A idade não é um problema. A sua mente está ótima. Poderia nos ajudar muito, estrategicamente. Não é possível que ainda tema algo, depois de tudo o que passou.
— Eu não temo mais nada... Nunca temi.
— E então?
— Apenas não vejo mais relevância. A inocência morreu.
— Considera-me inocente?
— Sonhador, talvez.
Dizendo isso, levanto-me e, sem dar atenção à sua resposta, saio do pequeno escritório de ar rançoso. Não me importam mais as palavras. Deixei a luta quando percebi rachas internos nos movimentos. Foi quando percebi que não havia mais sentido. Deixamos as coisas chegarem em um estado de irreversibilidade de tal forma frustrante, que não me recuperei.
Tenho vertigem. Sinto alguma tontura, preciso me segurar em algum local. Percebo que não posso cair. Ouço um guincho. Abro os olhos, eles ardem. Escuridão. Ratos. Paredes. Uma pesada porta de metal me impedindo de acessar o mundo exterior. Não sei que horas são, não sei em que dia estamos, tenho dúvidas quanto ao ano.
Tudo não passou de um sonho. Arnaldo... Eu o vi morrer à minha frente. Pena de morte sem apelação nem julgamento. Crime: lutar por uma sociedade mais justa. Morto, sim. Mas morreu lutando pelo que acredita. Preso aqui, nada posso fazer. Se um dia tiver oportunidade, certamente agirei. Talvez nunca tenha uma chance. Mas basta uma. Apenas uma. E a mudança começa aí. Com um sonho, seguido de uma atitude. Uma nova onda. A massa unida contra toda a opressão. Como sempre foi. Como sempre será. Ratos.
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