Capítulo 4
— O seu amigo é um idiota.
Tomei um generoso gole do coquetel de frutas vermelhas com vodca e gemi com a delícia doce que tocava minha língua. Débora me avisou para maneirar ou terminaria bêbada rapidamente, uma vez que o sabor disfarçava o gosto forte do álcool, por isso, mordi um pedaço de cebola frita empanada com molho especial.
— Achei que trabalhar com ele fosse "de boas". — Fez aspas no ar e, no mesmo instante, um garçom se aproximou para saber se precisávamos de algo.
— Eu também pensei. — Chequei a bunda do homem, que se afastou assim que foi dispensado. — Gostei dele, por mim está aprovado.
Julian era o novo dono do restaurante que ficava no térreo do clube Mundo e pediu para que a gente viesse infiltrada e analisasse como os funcionários agiam sem a presença do futuro chefe por perto. Na minha opinião, um ou outro poderia reconhecer a noiva dele e nos tratar diferente, mas era jantar grátis em um dos lugares mais caros da cidade.
Quem, em sã consciência, negaria?
— Ele é muito atencioso.
Ao concordar comigo, Deb digitou o nome do cara no celular, sempre pronta para ajudar o seu amor, independente do que ele precisasse. Ela era uma daquelas pessoas que adorava cuidar dos outros, não à toa que tinha me ajudado com o meu emprego de forma altruísta, além de ajudar com a casa.
— Sua mãe está melhor?
— Sim, fazendo o tratamento para suportar o futuro transplante... — Acariciou o próprio ventre, a gestação dela precisava ser perfeita para que o bebê tivesse a mínima chance de ajudar a avó.
Ultimamente, a preocupação nublava suas delicadas feições. Ela colocou uma mecha de cabelo loiro atrás da orelha e forçou um sorriso, que não parecia verdadeiro.
— Vai dar certo. — Segurei sua mão por cima da mesa, apertei de leve e tratei de mudar o rumo da conversa: — Me surpreende Julian não estar aqui ao seu lado, significa que ele confia em mim para cuidar de você.
O noivo de Débora era meio paranoico com a segurança dela e do filho não nascido, se pudesse, a colocaria em uma redoma de vidro e a deixaria protegida até o parto. Era até engraçado vê-lo o tempo todo se esforçando para dar a ela qualquer coisa que precisasse.
— Não contaria com isso — deu uma risadinha —, ele está bebendo um uísque no escritório de Dante e preparou alguma coisa para mais tarde em um dos quartos.
Dante era o CEO do Mundo. Não o conhecia muito, mas já o tinha visto de longe. O cara era gato, o mais velho da turma com mais de quarenta anos e, assim como um bom vinho, a idade o deixava melhor. E ele devia saber um truque ou outro na cama, afinal, projetou aquele prédio que foi feito pensando no prazer de seus frequentadores.
— Sortuda!
Mastiguei um pedaço do medalhão de picanha, que desmanchou na minha boca. Minha nossa! Cada mordida era uma nova explosão de sabor, será que Deb conseguiria voucher de desconto para eu usar ali quando desejasse?
Só se eles fizessem cupons de 90% off, ou eu não poderia pagar o jantar.
— Por isso estou na comida leve, não quero o estômago pesado. — Piscou um olho e, desta vez, o sorriso era verdadeiro e iluminou o seu rosto por completo.
A gente mudou de assunto, com ela me contando algumas das safadezas que tinha feito nas dependências daquele prédio, sem revelar muito sobre o que existia em cada andar. Eu era virgem, mas não era tonta, tinha lido bastante fanfic hot para não me chocar com as coisas que saíam de sua boca.
Ora, se aquilo era o que ela se permitia dizer, como seria a experiência real? Nos livros a gente via esse tipo de lugar aparecer, mas era em uma realidade distante, quase paralela, ali tudo era muito mais real, com experiências inusitadas acontecendo diversos metros acima da minha cabeça.
Após o jantar e sobremesa, eu estava com o riso frouxo, entretanto, pés firmes. O álcool subiu à minha cabeça, porém disfarcei, não queria que ela me passasse um sermão sobre beber rápido demais.
No saguão, quando estávamos prestes a nos despedir, vimos Julian descer pelo elevador panorâmico e ele não estava sozinho. De costas, os dois amigos se pareciam, com altura, cabelos escuros e físico similares, mas as semelhanças paravam por aí. Havia uma leveza maior em Leonardo que não se encontrava em Julian. Faltava neste o ar sacana, a expressão de quem sabia um segredo e não iria dividir, que tanto despertava a minha curiosidade.
Dois impressionantes espécimes masculinos se aproximaram de mim, mas apenas um capturou minha atenção. As mãos de Leonardo se esconderam no bolso de sua calça jeans de marca, a camisa de botão preta com detalhes em azul citrino estava com as mangas dobradas na altura dos cotovelos. Os cabelos espetados para cima tinham um toque de bagunça, como se tivesse passado os dedos por eles, no entanto, desconfiava que fosse proposital e os olhos... ah, os olhos! Me encaravam como se eu fosse a presa que ele adoraria devorar.
Débora colidiu com o noivo, que a recebeu de braços abertos e lhe deu um beijo que mais um pouco e a língua dele estaria fazendo um exame de endoscopia nela. Jesus! Vão para um quarto, pelo amor de Deus. Olhei para os meus pés, envergonhada por ver o chefe dando uns amassos. Uma risada baixa, disfarçada de pigarro, escapou da garganta de Leo.
— Vou ligar para o motorista, ele pode te levar para casa — Julian avisou assim que se separou da minha amiga, apesar de não ter se afastado muito dela.
Abri a boca para agradecer pela carona — não queria ir de Uber sozinha em uma madrugada de sábado —, entretanto Leo foi mais rápido:
— Não se preocupem e vão se divertir, eu a levo.
Débora me observou com atenção, uma pergunta silenciosa para saber se eu estava ok com aquilo. Honestamente, não sabia a resposta correta. O meu lado racional alertava para correr e me esconder nas montanhas, porém, a parte de mim que se parecia com o Simba, que ria na "cara do perigo", estava mais do que ansiosa em passar um maior tempo com Leo.
— Vejo você na segunda — disse para minha amiga.
Ela me deu um breve aceno de concordância e eles se despediram antes de sumirem em direção ao elevador panorâmico. O saguão principal do clube era amplo e elegante, bem iluminado e repleto de funcionários dispostos a ajudar os sócios. Naquele segundo, entretanto, tornou-se vazio, pequeno e escuro. Não que tivesse acontecido uma alteração no ambiente em si, apenas na minha percepção. Pois, éramos eu e ele isolados em uma bolha só nossa.
— Nos encontramos de novo no Mundo.
Uma frase simples, mal passava de uma declaração, mas que escondia outros significados em sua entonação.
— Por que fez soar como se a minha vinda aqui tivesse alguma coisa com você? — Levantei uma sobrancelha, desconfiada.
Sua resposta foi o irritante levantar de ombros, de quem não se importava muito com nada. Dava vontade de sacudi-lo até que largasse a pose confiante, um segundo depois, me questionei porque sentia aquela necessidade. Nova resolução: aprender a lidar com Leo sem ficar afetada por sua presença.
— Que tal a gente tomar um drinque e aí você me convence de que esse encontro foi uma coincidência?
— Metido demais, não? — Joguei na lata, sem pensar duas vezes no que estava falando.
— Sou apenas um realista.
Não sabia que prepotência tinha mudado de nome.
— Tem certeza? — Cruzei os braços e elevei o queixo. — Não quer abrir mais os olhos para ver se enxerga direito?
Se não estávamos no escritório e ele podia me chamar para beber, eu estava livre para devolver sua alfinetada de mais cedo, não é? Esperava que ele concordasse com a minha lógica. Leo não pareceu se importar, ao invés disso, colocou a mão na base da minha lombar e me fez caminhar em direção aos elevadores.
— Está esperando um pedido de desculpas por ter sido repreendida quando te peguei cochilando no trabalho? — questionou, assim que apertou o botão para as portas se abrirem.
— Não.
A mentira não soou convincente em meus lábios, ainda mais agora que nos encontrávamos presos em um ambiente fechado. O vidro, que permitia uma vista ampla do saguão principal, dava a impressão de que não estávamos sozinhos, e isso deveria aliviar a tensão que percorria minha pele como garras fantasmas, que me deixavam arrepiada, mas não era o caso. Estaria eu influenciada pelas diversas cenas de beijo no elevador que li nos livros? Costumava achar um clichê legal para colocar nas fanfics junto a um roçar de lábios ou toque proibido.
Entrar em um com Leonardo me encarando daquele jeito era a prova de que os clichês funcionavam na vida real. Ele se aproximou, dei um passo para trás, ele um para frente. Minhas costas tocaram a parede, as pontas dos seus sapatos encostaram nas das minhas sandálias vermelhas, elevei a cabeça e ele olhou para baixo, para os meus lábios. Engoli em seco, o seu braço foi em direção ao meu rosto, esperei pelo toque de seus dedos e eu não iria me afastar.
— Ótimo — ao invés de segurar minha face e me beijar, apertou o botão do terceiro andar atrás de mim —, vamos tomar aquela bebida.
Sua falta foi sentida assim que ele recuou e o meu coração ainda batia acelerado, prestes a saltar para fora do meu peito, enquanto que de sua garganta escapou uma risadinha de escárnio. Ele sabia! O canalha sabia que tinha me afetado e estava se divertindo com isso.
Do que a gente estava falando antes?
— Apenas para esclarecer, nunca dormi no trabalho.
— Compreendido.
Bufei, aquela atitude irritante ainda estava ali e eu podia ver o meu cérebro, quando terminei de ser impertinente e ele estava em cima de mim, sussurrando em meu ouvido:
— Que tal eu te fazer revirar os olhos assim enquanto você goza?
Sim. Não. Sim. Não. Sim. Tenha juízo!
— Não pode falar esse tipo de coisa para mim.
As portas se abriram e eu fugi o mais rápido que pude, dando as boas vindas ao barulho da boate e as luzes que piscavam multicoloridas intermitentes.
— Por que não? — Claro, ele e suas pernas longas me alcançaram com facilidade.
Vasculhei o ambiente, o bar imenso, a pista de dança cheia de corpos balançando, a música reverberando em mim e a suave penumbra que dava um ar intimista em meio à multidão.
Preferia ficar em um dos bancos altos do bar, onde a gente teria movimento constante de pessoas e uma distância respeitável entre nós, mas estava lotado. Então, optei por uma das poucas mesas vazias.
— Sou sua funcionária.
Sentei-me no sofá vermelho e Leo se acomodou ao meu lado, para que eu pudesse ouvir o que falava acima do barulho que nos cercava.
— Você é funcionária de Julian, para mim, é uma freelancer e estamos longe do trabalho. — Acionou um botão no canto da mesa para chamar um garçom. — Aqui somos apenas Leonardo e Thaís.
Ele pediu uma dose de uísque e eu quis outra taça de coquetel de frutas. Ter um passe VIP era vantajoso, fomos servidos com uma agilidade impressionante, lambi os lábios, minhas papilas gustativas cantarolaram de prazer.
— Ok, mas você não pode falar comigo assim.
Um pouco de espuma se prendeu ao arco do cupido em meu lábio e limpei com o polegar, ele não perdeu o movimento. Foi a minha vez de me sentir superior, ponto para mim.
— Peço desculpas, é a minha terceira dose — indicou o copo.
Uh-hum... Como se aquilo fosse uma desculpa aceitável:
— Então, a culpa é da bebida?
— Teria dito mesmo que estivesse completamente sóbrio — disse sem vergonha alguma, mas logo ficou sério. — O que você quer, Thaís?
— Por enquanto, apenas o coquetel.
Tirei o morango preso na borda da taça e mordisquei. De novo, a sua atenção ficou presa em mim, mas ele disfarçou, tomando um longo gole de sua bebida.
— Eu quis dizer em relação à vida — corrigiu-me.
Teríamos esse tipo de conversa? Tudo bem, era melhor do que ficar desviando de suas investidas. Por mais que eu sonhasse em casar com J-Suga, ter filhinhos com olhos puxados e morar em Seul, meu objetivo principal era outro.
— Cuidar da minha família, as coisas ficaram mais difíceis após a morte do meu pai. — Tomei outro gole, deixando o álcool assentar em meu estômago. — Mamãe ganha uma pensão, mas é bem menor do que o salário que ele recebia e Thales não teve direito ao BPC.
O Benefício de Prestação Continuada era um pagamento que a previdência dava para que as pessoas acima de sessenta e cinco anos ou com deficiência tivessem um salário mínimo mensal. Era um direito garantido pela Lei Orgânica da Assistência Social, o LOAS, mas a gente não entrava na renda per capita familiar para nos candidatarmos a receber.
— Quem e o que? — Ele me tirou dos meus pensamentos.
Explicar minha vida em uma noite de sábado não era exatamente o que eu desejava.
— Não é conversa para bar...
— E a gente deveria falar sobre o que? — Terminou o resto do drinque com um único gole. — As formas diferentes que pretendo te fazer gozar?
— Thales é meu irmão.
Contei a ele sobre minha família, como foi complicado quando Thales era bebezinho e notamos que ele ficava revirando os olhos diversas vezes, até o meu pai dizia: "cadê os olhinhos brancos do papai?". Ao levarem para a médica, descobriram que não era uma brincadeira que ele fazia e sim, convulsões. Com o medicamento, elas diminuíram e chegaram até a sumir, mas à medida que foi crescendo, outras estereotipias surgiram.
A dificuldade em se comunicar, tendência a se isolar, alguns movimentos, não gostar de ser tocado... No começo, a gente não queria crer que ele estava no espectro autista, como ele era muito novo, tinha a chance de não ser, mas a confirmação veio e não adiantava mais permanecer em negação. O tratamento começou assim que conseguimos vaga em uma ONG que se dedicava a cuidar de crianças com deficiência.
E... minha nossa! Por quanto tempo eu estava falando sem parar? Com ele me fazendo perguntas e comentários durante o meu relato, ávido por todos os detalhes, mesmo os menos importantes, mais de hora se passou e nem percebi. O garçom tinha reposto nossas bebidas e ambos os copos já estavam quase vazios de novo.
— Desculpa, é o pior encontro da sua vida.
Abaixei o rosto com um suspiro, porém Leo segurou meu queixo em concha e me fez encará-lo. Não havia como decifrar sua expressão neutra, mas fiquei feliz em não encontrar resquícios de pena. Podia lidar com muita coisa, entretanto, nunca gostei que sentissem isso de mim e, muito menos, da minha família.
— Então, isso é um encontro? — uma simples pergunta com a volta do sorriso sacana aliviou o clima e eu relaxei os ombros. — Sendo assim, vamos dançar.
Pretendia fazer uma piada, dizer alguma gracinha, no entanto, aceitei o convite. Leonardo estava certo, não era horário de trabalho e tínhamos ultrapassado a linha patrão-empregada antes mesmo de eu ser contratada por ele. A música era agitada, mas ele ignorou e me trouxe para perto de si, a mão em minha lombar, me mantendo perto. Com a cabeça encaixada embaixo do seu queixo e o ouvido colado em seu peito, escutei as batidas retumbantes de seu coração. Isso me embalou mais do que a música.
O jeito que ele dançava comigo era diferente da primeira vez que nos encontramos, era mais próximo do que o normal para o ambiente. Afastei o rosto para encará-lo.
— No que você está pensando?
— Achei que o curioso fosse eu.
Sob o seu escrutínio, meu corpo inteiro esquentou em expectativa.
— Vai ver que é contagioso e estou ficando assim também.
Ele riu e afastou algumas mechas do meu cabelo, colocando-o por trás da orelha, sua mão se demorou em minha face e eu segurei a necessidade de inclinar em sua direção.
— Hoje vi um lado seu que eu não fazia ideia e me fez querer conhecer mais de você, só que tem uma coisa que não sai da minha cabeça.
Mordi o lábio, curiosa para que concluísse o pensamento, mas ele esperou pacientemente que eu mordesse a isca.
— O que?
— A sua boca e o quanto quero beijá-la.
___________
Eita, eita, eita! Alguém está pronto para atacar!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro