Capítulo 2
— Massinha! — Thales bateu o pé, exigindo atenção.
O periquito pousou em meu ombro para berrar em meu ouvido:
— Massinha! Massinha!
Eu tinha acabado de tomar banho, a semana foi brutal. Trabalhando para Leonardo e Julian, cada segundo da minha vida estava ocupado com obrigações e mal parei para brincar com meu irmãozinho. Ele insistiu, chamando-me para sentar no chão da sala e fazer os personagens do Mundo Bita. Era sempre assim: inventar histórias para diverti-lo.
— Tenho que ajudar a mãe na cozinha.
— Não, amor. — Ela apareceu na porta com o seu vestido florido costumeiro, possuía uma coleção deles, todos comprados na feira, e o pano de prato com frutas pintadas sobre o ombro. — O jantar está quase pronto, dê atenção a ele. O coitadinho anda muito sozinho ultimamente...
Dona Amélia soou triste — ela sempre soava desse jeito — e me deu aquele olhar que se tornou uma marca registrada no último ano, definido por dor e luto. Era assim há um ano, desde que o meu pai se foi em um acidente de carro. Dei um breve aceno e segui Thales para a sala, onde ele empilhou três caixas de sapato nas quais a gente guardava os moldes e cortadores.
Coloquei o pássaro em seu poleiro ao lado do sofá e me sentei com as pernas cruzadas em posição de lótus. Quando vivo, a primeira coisa que papai fazia ao chegar em casa era dar um beijo em cada um de nós, o único que Thales permitia fazer isso sem reclamar. Era um gesto costumeiro que nunca foi valorizado, muitas vezes até revirava os olhos ao tê-lo invadindo o meu quarto só para isso. Agora daria de tudo para sentir os seus lábios em minha testa, perguntando como foi o meu dia.
Eu gostaria de ter dito que o amava uma última vez naquela manhã, mas não sabia que jamais voltaria a vê-lo em vida.
— Cadê Bita?! — Thales exigiu.
Pisquei, espantando a tristeza que ameaçava me dominar e sorri para ele. Meu irmão tinha cinco anos e estava no espectro autista, não entendia perfeitamente bem a morte, às vezes perguntava quando papai iria voltar. Não era raro vê-lo encarando a porta ao anoitecer, como se esperasse que ela se abrisse.
Com o rolo, deixei a massinha vermelha plana e usei o cortador no formato do seu personagem favorito, Thales estava fazendo os animais. Ele bateu palmas ao ver todos alinhados um por um. "Bom dia!", o periquito cantarolou e eu o acompanhei, terminando a musiquinha. Inventei uma história para ele, contando sobre a galinha Tatá que queria casar com o belo galo SuSu Gaga, o que cantava mais alto, mas vinha um outro para atrapalhar os seus planos, o Cho-Cho.
E daí se todos na minha versão de Bita tinham apelidos diferentes? Qualquer semelhança não passava de mera coincidência.
Na história, SuSu Gaga estava muito ocupado, cantando assim que o dia amanhecia e era o Cho-Cho que visitava o galinheiro com mais frequência, principalmente quando Tatá estava ocupada, trabalhando. Ele dizia que passou ali apenas para checar o serviço e dar novas ideias e opiniões. O homem... quer dizer... o galo era tentador, sexy e cheirava bem, sua voz sedutora distraía qualquer um.
— Cho-Cho mau?
— O quê? — Minha nossa, eu tinha me perdido em minha própria imaginação.
Thales colocou o personagem azul de massinha na minha cara e eu baguncei os seus cabelos, disfarçando os pensamentos sobre Leonardo. Aquilo vinha acontecendo com frequência ao longo da semana trabalhando com ele e começava a incomodar. Eu deveria pensar em J-Suga e em como conquistá-lo, uma empreitada que não seria fácil.
Ainda mais porque eu tinha uma concorrente à altura: Naomi Choi.
A irmã mais nova de Leo era da minha idade e recém-formada em administração, ela deveria treinar com mais afinco para assumir o cargo de braço direito da empresa, e ao invés disso, estava me ajudando. Era uma fã tanto quanto eu e considerando as suas palavras, desejava o mesmo que eu também, mas a TDS era composta por cinco integrantes, ela podia escolher um dos outros e não precisávamos brigar.
Ora, a quem eu queria enganar? A garota era linda, inteligente, engraçada e rica, qualquer pessoa que gostasse de mulheres se interessaria por ela, eu estava em desvantagem. Naomi era o tipo de gente que tinha um carisma cativante, além de uma enorme facilidade de fazer amigos.
E ela sabia coreano.
Precisava dar um jeito nisso, meu inglês capenga seria risível perto dela, que era fluente em três línguas.
— Cho-Cho é legal, a Nai-Nai também, apesar dela querer o Su-Su.
Eu não fazia mais ideia do que estava falando, tampouco Thales compreendia, considerando o ar de dúvida no qual me encarava. Fui poupada de continuar a história sem sentido por mamãe, que nos chamou para jantar. Meu irmão correu para o banheiro e foi lavar as mãos, eu o segui, garantindo que limpasse os dedos direito.
Podíamos não ter grana sobrando para supérfluos, mas a mesa era farta. Arroz, salada, purê de batatas e frango grelhado, tudo feito com muito amor. Dei um beijo no topo da cabeça da minha mãe e me sentei em frente a ela, com Thales ao seu lado. A cabeceira ficava vazia, aquele era o lugar do papai.
Antenor Caldera veio de Portugal ainda bebê e se apaixonou jovem. Mamãe dizia que não conseguia esquecer os olhos verde-mar dele, que eu infelizmente não herdei, mas eram espelhos dos de Thales, que tinha um tom mais escuro de pele como mamãe. Nossa família era daquelas que faziam as refeições juntos sempre que possível e dava uma volta na praia no fim de tarde, pelo menos uma vez por semana. Há um ano, nenhuma refeição era totalmente feliz.
— Como foi o trabalho, filha? — Mamãe serviu o prato de Thales.
— Ótimo.
Não diria a ela que o turno triplo se tornou exaustivo. O pagamento do FIES — o financiamento da faculdade — era a prioridade número um e sem isso não poderia sonhar com o meu carrinho. Queria algum popular, com uns cinco anos de uso, mas que estivesse em boas condições.
— Você acha que me engana? — Ela me lançou um olhar exasperado. — Te conheço desde que estava dentro de mim, vai ter que ir amanhã?
Era sexta à noite e eu adoraria afirmar que não, que poderia relaxar e sair para me divertir, mas teria que ir cedo para a Choi Imports. Leonardo havia liberado minha passagem com a recepcionista e o porteiro, teria o escritório só para mim, com os seus super-computadores que eram dignos da NASA.
— Estou bem.
Ela balançou a cabeça, ainda sem acreditar na minha garantia, e colocou uma mecha dos cabelos alisados atrás da orelha.
— Você deveria pedir uma folga para o seu patrão — declarou, abocanhando o frango como se fosse o pedaço do galo Cho-Cho.
— Se uma de suas funcionárias pedisse uma folga maior depois de uma semana de trabalho, o que a senhora faria?
Aquilo encerrou a discussão. Mamãe trabalhava como gerente em uma loja de roupas no shopping — um cargo de responsabilidade que pagava bem menos do que deveria — e comandava com punho de ferro. Sua leveza em casa era o oposto de quão implacável era a postura de chefe. Lembrava-me de Leonardo, muito mais rígido e sério com seu terno e gravata de CEO, do que os sorrisos fáceis de conquistador no Mundo.
Duas faces de uma mesma moeda, o mais fascinante era que ambas me intrigavam.
Após o jantar, cuidei da cozinha enquanto mamãe preparava Thales para dormir, eu também me preparei, mas antes de cair na cama, tínhamos o ritual de assistir dorama juntas. Estávamos perto de terminar O rei eterno na Netflix quando ela deu o dia por encerrado.
O meu quarto era o único momento em que ficava sozinha de verdade. Apesar da necessidade de descansar para estar disposta cedo na manhã seguinte, encarei o teto sem sono algum. Tinha algum problema em meu travesseiro, ele devia ser estudado porque toda vez que eu colocava a cabeça nele, mil ideias surgiam na mente.
Por isso, mantinha um caderno e caneta a postos na mesinha de cabeceira. Liguei o abajur e me deitei de bruços, precisava escrever, ou não cairia no sono nunca. Mordi o lábio inferior e dei continuidade à minha fanfic:
Apesar de estar sob a garoa fina, Jeon Suga tomou o meu rosto em suas mãos e... e... e...
Argh! Não estava funcionando, o que tinha na minha cabeça era um outro trecho da história, um em que a protagonista e o astro coreano estavam em uma boate. Eles se encontraram por acaso, enquanto tomavam um drinque exótico. O homem usava terno e gravata, seus olhos viravam risquinhos minúsculos quando sorria e o perfume era inebriante. Música os cercava com uma envolvente melodia, percebendo que ela se mexia parada na cadeira, ele a puxou para o meio da pista de dança.
Voltei a escrever, seria uma cena aleatória para encaixar em um capítulo futuro:
Jeon era mais alto e mais forte do que me lembrava, não podia ver o seu rosto direito com a penumbra da boate, o que era ótimo, pois o deixava mais sombrio. A sensação que tinha era de que estava dançando com um estranho. Nossos corpos se moviam em sincronia, ele me conduzia com maestria e eu era uma marionete em suas mãos.
Ele era duro, feito de poder e músculos, de encontro à minha maciez. Será que podia sentir a excitação em meus mamilos pressionados contra o seu peito? Fui virada de costas, a minha bunda em contato com a dureza característica no quadril dele, minha cabeça perto de seu ombro esquerdo — algo que só era possível por causa do meu salto alto — e as mãos dele em minha cintura.
— Eu não quero ficar sozinho hoje, gostaria de passar a noite com alguém — sussurrou em meu ouvido parte da letra da música, mexendo de modo que eu soubesse exatamente do que ele falava —, mas não superei você e nem te tirei da minha cabeça. Como poderei procurar outra garota hoje?
Seus lábios percorreram um caminho por meu pescoço e ombro, as mãos passeando por minha cintura até a borda dos seios, indo e voltando. Entreabri a boca em um gemido mudo, entregue aos seus cuidados.
— O que você quer de mim? — Havia receio em minha pergunta, Jeon Suga era o meu chefe e eu precisava mais do emprego do que de orgasmos.
Ele notou minha hesitação, aquele homem sempre desvendava o que se passava em minha cabeça:
— Só preciso que você se lembre de que eu não mordo, Thaís.
Droga, eu tinha ouvido aquilo, mas de outra pessoa e na vida real. Risquei a última fala e desliguei a luz antes que me complicasse demais.
__________________________
O que acharam do Thales e dona Amélia?
E, claro, do Louro José?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro