Parte I
"Como um raio de sol você chegou
Levou embora a escuridão
Deu sentido ao meu mundo
E vida ao meu coração
Sei que estou enrascado
Mas negar não vou
Gamado em você estou."
Enrascado, Sound of Silence*
💘💘💘
TENHO CERTEZA DE que para algumas pessoas, o Festival Águas Sonoras é sinônimo de descanso ou farra. Não para mim, infelizmente. O Festival significa trabalho em dobro, estresse e dor de cabeça.
Não que eu não goste de música, muito pelo contrário. Sou completamente apaixonada por esta arte maravilhosa onde as pessoas conseguem expressar seus sentimentos através de simples melodias que ora são animadas e felizes, ora lentas e tristes. O problema é ter de trabalhar justamente na noite do Festival e ter de aturar possíveis bêbados.
Mas este é o meu trabalho. E é ele que paga minhas contas no fim do mês — não que eu tenha muitas dívidas, longe disso. Até que me considero uma mulher econômica, mas tenho que bancar meus gastos no sebo do seu Ari. Minha mãe não gosta muito da ideia de eu gastar com livros e vinis, vive dizendo para eu guardar dinheiro no banco, assim terei um futuro seguro; poderia pagar uma faculdade na capital, até mesmo me mudar para lá. Só que minha mãe se esqueceu de um pequeno detalhe: esse não é o meu sonho.
Eu amo morar em Marina! Amo correr pela areia da praia todas as manhãs depois do nascer do sol. Amo sentir o cheiro de maresia no ar. Amo dormir ouvindo o barulho das ondas contra os rochedos do farol e acordar com o canto das gaivotas.
Nunca pretendi e não pretendo sair daqui.
Não sinto a menor vontade de me aventurar mundo afora. De conhecer pessoas e culturas diferentes. Posso fazer isso aqui mesmo, na minha pequena e tranquila Marina.
Mesmo ela não estando mais tão tranquila nos últimos dias.
Desde que a Sound of Silence anunciou que faria um show aqui, após anos sem dar as caras, tenho a impressão de que a cidade foi invadida pelo tanto de gente que veio para o Festival.
Não que eu não goste da banda, pelo contrário, sei todas as canções de cor e salteado e, se bobear, até sei cantar de trás para frente. Só não gosto muito da ideia de ter minha cidadezinha — mesmo ela não sendo minha — sendo invadida por estranhos que possuem o péssimo hábito de sujar as ruas, a areia da praia e o mar. Será que eles não sabem que lugar de lixo é no lixo?
Espero um grupo de rapazes, já bêbados, saírem cambaleando pelo píer para poder limpar a mesa que eles ocupavam. Não consigo entender como alguém consegue beber tanto a ponto de perder a consciência. Só o cheiro de uma simples cerveja me deixa enjoada.
Arrumo os copos na bandeja e decido limpar a bagunça que eles fizeram antes de me dirigir até o balcão. Enquanto passo pano com um pouco de álcool gel na mesa, pergunto-me se mamãe me deixará ir ao show da Sound of Silence. Sei que a apresentação só começará às onze da noite, mas não é todo dia que sua banda preferida faz um show na sua cidade.
E é provável que mamãe venha com um papo sobre álcool, drogas e sexo e termine por me segurar aqui no Marine's. E, embora saiba que esse é o jeito dela, não consigo não achar estranho. Em um primeiro momento ela diz para eu me mudar para a capital e viver minha vida, no outro ela surta só com a perspectiva de eu me divertir em um festival de música. Sinceramente, dona Estela me confunde!
— Boa noite — diz uma voz rouca atrás de mim.
Eu me assusto e acabo esbarrando nos copos que estão na bandeja, fazendo com que dois deles se espatifem no chão de madeira do píer. Fito os cacos de vidro por um breve instante antes de me agachar. Quanto antes eu os catar, melhor.
Ignoro o estranho responsável pelo meu susto e pelo estrago que ele causou aos copos de chopp até o instante em que ele se agacha ao meu lado, ajudando-me a limpar a sujeira.
— Perdão. Eu não quis assustá-la — diz ele. Sua voz soa, realmente, culpada.
— Não se preocupe — digo, tentando fazer com que ele não se sinta culpado. O porquê disso, eu não sei, mas é o que sinto. — Eu estava distraída e não ouvi o senhor se aproximar.
— Mesmo assim, peço que me perdoe — insiste ele.
— Moço, já disse que não tem... Ai! — resmungo, chacoalhando minha mão. Faço menção de chupar o dedo que cortei em um dos cacos de vidro quando sou impedida pelo estranho homem da voz rouca. Ele cobre meu dedo com um lenço de linho branco. O calor de seu toque se espalha pelo meu corpo, causando-me arrepios até então desconhecidos por mim.
Então, eu o fito.
E meu coração para. Não literalmente. Mas é a sensação que tenho. A mesma de que o tempo parou ao meu redor. Como se alguém tivesse dado um pause no filme que estava assistindo para fazer um lanche.
Um par de olhos azuis, tão azuis quanto o céu noturno acima de mim, fitavam-me de maneira acalorada. Uma mecha do cabelo do desconhecido — e que belo desconhecido! — estava caída em sua testa e conferia-lhe um charme irresistível. Eu senti uma vontade enorme de tocar seus cabelos, de enroscar meus dedos nos fios dourados e saber se eles eram tão macios quanto pareciam.
— A senhorita está bem? — pergunta ele, tirando-me do transe.
E foi exatamente nesse instante que reparei que o encarava. Descaradamente. Então, eu senti minhas bochechas esquentarem. Não só elas, na verdade, meu rosto todo.
— E-eu estou bem — digo, recolhendo rapidamente os últimos cacos de vidro e me levantando.
Após jogar os estilhaços dos copos na lata de lixo, saio à procura da vassoura e da pá. Preciso varrer os caquinhos que ficaram espalhados pelo chão. Não quero que ninguém se machuque por minha causa — não por minha causa, já que quem causou o incidente foi o estranho de belos olhos. Ainda assim, não é nada legal espetar o pé em uma lasca de vidro, quem dirá várias.
Quando saio da cozinha, vejo a bandeja com os outros copos de chopp em cima do balcão.
— Deixa que eu faço isso — diz o estranho, quando me vê com a vassoura na mão. — Eu fui o responsável pela sujeira, então, eu a limpo.
— O senhor enlouqueceu? — pergunto. Não posso negar que estou surpresa com a reação dele. Que raio de homem se oferece para limpar uma bagunça? Nem meu padrasto, que costuma ter chilique quando vê algo sujo ou fora do lugar, se prontifica. Geralmente, sou eu quem acaba limpando ou arrumando. — Este é o meu trabalho. É o meu dever limpar!
— Só porque é o seu dever — diz ele, se aproximando —, não significa que seja o certo a ser feito. Eu fui o responsável pela sujeira, então, eu a limpo. Além disso, não quero que se corte novamente.
Eu pisco pasma.
Há um completo — e muito bonito por sinal — estranho, parado à minha frente, varrendo o chão de madeira do píer.
A situação não poderia ser mais esquisita. O desconhecido de belos olhos havia dobrado as mangas de sua camisa branca na altura de seu cotovelo, dando-me uma bela visão de seus braços fortes. Mas, o que deixava tudo mais estranho, era o fato de ele estar usando suspensórios.
Eu solto um suspiro e me dirijo até o balcão. Enquanto lavo os copos de chopp e os seco, espio o estranho catar os cacos de vidro. É uma bela visão, para ser sincera — embora ainda ache toda essa situação bem esquisita. Guardo os copos no armário atrás de mim e seco a pia.
O estranho me entrega a pá com as lascas de vidro e a vassoura. Jogo os estilhaços na lata de lixo da cozinha e guardo a vassoura no armário. Antes de sair, olho o relógio. Em menos de quinze minutos o show da Sound vai começar e eu não conseguirei ir. Não se tiver clientes para atender e mesas para limpar.
— Estão fechando? — pergunta o estranho, parado ao lado do balcão, com as mãos nos bolsos da calça.
— Não — respondo, com uma careta que, na certa, deve ter denunciado meu desânimo. — Só vamos fechar com o raiar da aurora, depois que o Festival terminar.
Ele assente lentamente. Então, a sombra de um sorriso desponta em seus lábios.
— Posso te pagar um café?
— Só se me disser o seu nome — rebato marota.
Ele passa as mãos pelos cabelos dourados e se aproxima. Há algo em seu olhar, algo que me causa um rebuliço. Parece que tem algo em meu estômago. Tipo borboletas que o vento tirou para dançar.
Ele para. Bem perto de mim. Perto o suficiente para que eu sinta seu perfume, uma mistura de algo amadeirado e sabonete e algo só dele.
— Me chamo Marcelo, e estou ao seu dispor — diz ele, com um sorriso jocoso nos lábios. Então, para minha completa surpresa, ele toma a minha mão e deposita um beijo no interior de meu pulso.
E, mais uma vez, meu coração para. Não literalmente, se não estaria morta, estirada no chão desse píer. Mas é o que eu sinto.
— A-ana. Me chamo Ana — digo por fim, em resposta a pergunta silenciosa que seus olhos fizeram.
— É um belo nome — comenta ele, ainda segurando minha mão.
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