Amora
Clarice estava encostada na beirada da mesa, às vezes parecia observar os detalhes de cada pessoa presente na sala, às vezes parecia tentar escutar alguma conversa que aparentasse interessante, ou simplesmente parecia estar absorta em seus próprios pensamentos. Era uma solidão aquelas reuniões familiares, neta mais velha, adolescente sem lugar nas conversas adultas, lhe restavam os pensamentos, as curiosidades e os mistérios de tudo na vida. O que haveria de tão proibido na conversa das mulheres que se agrupavam no quarto depois do almoço? O que lhe faltava para se tornar uma delas e poder estar lá?
Quando se tem quinze anos parece estar boiando sobre a imensidão de um mar, às vezes parece calmo, tranqüilo, mas a todo momento há uma correnteza de enigmas te levando para longe. Te leva para longe do que você conhecia da vida, dos seus referenciais e sentimentos infantis. Tudo se transforma em desejos desconcertados, desencontrados pela inconstância do que se sente. Está ali inerte e só, porque ninguém é capaz de responder o que se passa com você. Debaixo do seu corpo em transformação há um além de si mesmo que talvez jamais possa ser alcançado, mas que nesse momento está quase a flor da pele. Clarice está absolvida no mistério de sua alma, no mistério do que é ser mulher.
Ano passado a cunhada de uma tia, de apenas dezessete anos pôde participar. Clarice em sua solidão não teve chance de protestar, só pôde ouvir a frase da tia: "seu momento vai chegar". Ela gostaria de saber o que seria necessário, o que seria preciso saber, conhecer, fazer... Tinha esperança de que este ano pudesse ter a chance, mas não teve...
Olhou para a estante ao lado e viu a foto da sua avó. Ela estava tão jovem, diziam que devia ter uns 16 anos naquela foto. Ela não olhava em direção ao fotógrafo, mas para um outro lado, tinha-se a sensação de que ela gozava de um momento de encantamento. O olhar era difuso, o sorriso quase imperceptível e os lábios pareciam entregues a um beijo que ela podia sentir, mas ninguém podia ver. Mas, sua vida foi curta, Clarice nem chegou a conhecê-la.
Clarice descansou os olhos sobre a janela e lá de longe alcançou a cabana de seu avô. Lá era proibido, e por isso mesmo extremamente atraente. Era uma pequena casa cercada de arvores. Não haviam janelas, apenas pequenos básculos tocando o teto. A porta estava permanentemente trancada, as chaves misteriosamente escondidas e qualquer incursão na tentativa de se conquistar o território proibido poderia ser severamente punido. Dizem até que um empregado teria perdido um dedo devido à tentativa de burlar a proibição.
Dizem que lá teria tesouros, jóias, mas há quem diga que haveriam coisas horríveis, que o avô de Clarice realizaria magia negra ou se auto flagelaria... Especulações, não sem fundamento, mas um mistério desses incita a imaginação em qualquer um. Mas, ninguém era capaz de ter certeza de nada.
De repente, um movimento na casa, o avô de Clarice estava se sentindo mal. Deitaram-no no sofá, seu casaco ficou aberto, com um dos lados tocando o chão. Clarice viu duas chaves amarradas ao casaco, elas brilhavam e eram atraentes como uma jóia. Clarice se deu conta de que poderiam ser as chaves da cabana, foi se aproximando do avô pensando se devia pegá-las ou não. Talvez, fosse melhor não saber o que havia lá, ela amava tanto seu avô que tinha medo da decepção. Mas, quem sabe essa não seria sua única chance? Não era hora de pensar, sim de agir.
Não houve tempo, seu primo meteu a mão nas chaves, de maneira inocente se ajoelhou próximo do avô e desamarrou as chaves do casaco. Fábio correu com as chaves até a varanda se encontrou com o irmão Márcio. Eram apenas dois moleques de 10 anos e já haviam aprendido o que era uma oportunidade. Clarice olhou seu avô vulnerável e correu instintivamente atrás dos primos. Ela não queria impedi-los, talvez alguma coisa lhe dissesse que deveria, mas na verdade o que ela queria era desbravar aquele mundo proibido.
Quando se aproximou, a porta da cabana já estava aberta. Um frio passou pela barriga de Clarice. Os primos, lá dentro estavam imóveis, silenciosos. Estava tudo tão escuro lá dentro que os olhos levaram um tempo para acostumar. A medida que a pouca luz ia se tornando suficiente, os objetos iam tomando forma.
Haviam três fileiras de estantes, a primeira pareciam livros, a segunda tinha potes de vidro. Clarice se deparou com uma coleção de cobras, estavam enroladas, deviam estar mortas dentro dos vidros. Mas haviam algumas que eram lindas, de cores impressionantes, tamanhos inesperados... Na prateleira debaixo haviam aranhas, também de todas as formas e cores, surpreendente. Pregadas ao teto haviam cabeças de búfalos, bois e até de onça.
Na outra fileira, caminhava Fábio, vagarosamente, sentia um arrepio pela atmosfera de tensão estabelecida. Lá havia menos luz do que nos outros lugares, fazendo com que os animais empalhados sobre a estante fossem mais assustadores. De repente, ele ouviu um estranho ruído, girou o corpo bruscamente e se deparou com macaco em posição de ataque, mostrando os dentes, deu um pulo para trás e um morcego fez um vôo rasante sobre sua cabeça. Foi o limite para ele, não gritou, só correu. Márcio que ainda estava imóvel na porta saiu atrás dele.
Clarice chegou ao final do corredor de estantes e se deparou com o inesperado, ficou admirada. Haviam várias telas de pintura com imagens intensas, de cores fortes mas sombreadas. Em todas elas havia uma mulher nua, seminua em meio à florestas, cachoeiras, acompanhadas de animais, observada por eles ou seria velada por eles. Haviam cobras, lagartos, onças, pássaros... Animais que representariam um perigos uns aos outros e à aquela mulher, por estarem juntos. É a harmonia misteriosa da natureza, em sua lei instintiva e selvagem, como parecia estar aquela mulher.
Olhando para ela, em sua suave volúpia, Clarice percebeu que era a mesma em todas as telas. Reconheceu os traços daquele rosto, mas sua expressão lhe era desconhecida, era sensual, sexual, transbordante em desejo. Na mesa ao centro haviam fotos da mesma mulher em sua nudez e sentimento, não tinha mais dúvidas era sua avó em seu estado e sentimento totalmente desconhecido e surpreendente. Clarice estava conhecendo um lado do feminino que lhe era proibido, por ser julgado vulgar e obsceno e que naquele momento lhe pareceu extasiante.
Ali era realmente um lugar mágico, entendeu o segredo do avô. Não se arrependeu e nem sentiu medo. Já estava lá há tanto tempo que seria melhor ir embora, mas não foi, percebeu que ainda havia muito a conhecer. No canto da parede havia uma estante de vidro, coberta com cortinas por dentro. Algo de mais valioso deveria estar lá porque estava trancada. Clarice procurou as chaves por todos os lugares que podia imaginar dentro da cabana, até se dar conta de que haviam duas chaves para abrir a porta e apenas uma fechadura. A outra chave só podia ser da estante. Estava certa.
Não foi fácil abrir, estava totalmente emperrada. No minuto que conseguiu e abriu a estante, ficou encantada com o que viu. Havia uma camisola de renda branca dependurada, vidros de perfume adocicados ou selvagens, escova de cabelo e inúmeros outros objetos pessoais de sua avó. Numa caixinha havia algumas jóias, pérola, ouro, prata, pedras lindíssimas. Em uma gaveta, Clarice encontrou muitas cartas de amor trocadas pelos dois, fotos, desenhos que a retratavam.
Na outra gaveta encontrou dois pequenos livros, capas vermelhas e sem título, quando os abriu viu a letra escrita a mão, sentiu perfume nas páginas e encontrou uma foto dos dois em um jardim florido, era um diário e o outro livro também. Precisava lê-los, mas como se não havia tempo, a qualquer minuto o avô poderia dar falta da chave... Clarice trancou o armário e saiu com os dois diários. Não podia chegar na casa com os diários na mão era preciso escondê-los.
Voltou tentando perceber o que se passava na casa e onde poderia deixar os diários em segurança. Havia o silêncio comum de fim de tarde perto da casa. Clarice se lembrou que costumava se esconder embaixo de um sofá de madeira na varanda, e lá deixou os diários. Precisava saber o que se sucedeu com seu avô antes de pensar em como devolver as chaves. Mas estava tudo tão tranqüilo, ouviu as vozes dos homens lá pelas bandas do curral, passou pela cozinha e os empregados já estavam terminando de arrumar tudo...
No fundo do corredor viu que a porta do quarto do avô estava entreaberta, se ele estivesse dormindo seria sua chance. Quando entrou o avô abriu os olhos. Clarice sentiu um frio na barriga, mas também calor de euforia por vê-lo bem. Ele pediu que ela se aproximasse e olhando em seus olhos lhe disse: "Faz tanto tempo que não vejo essa expressão no olhar, é uma mistura de quem sente algo bom e ruim, doce e amargo ao mesmo tempo, como só Amora sabia fazer...".
Clarice se espantou com o nome e ele logo retrucou: "Amora é como eu chamava sua avó, ela era doce e macia quando madura, amarga e dura quando verde e selvagem quando misturava os dois." Ele não quis saber qual efeito que causou sua frase na neta, olhou para o teto e foi como se ignorasse a presença dela. Em seguida olhou para o paletó no encosto de uma cadeira e numa aflição mandou que ela o apanhasse. Ela só tinha alguns segundos para pensar no que fazer e não causar nenhum estrago, o avô já estava com a saúde frágil.
Ela foi se aproximando devagar da cadeira e pensou, o laço que prende a chave pode simplesmente desamarrar. No momento em que pegava o casaco, ela deixou a chave cair, fazendo um estalo no chão. O avô a olhou apreensivo, ela pegou as chaves e entregou nas mãos dele. Sorriram um ao outro e ela se retirou do quarto.
Clarice estava tomada de alívio por ter conseguido e ansiedade para ler o diário. Enquanto passava pela porta de um dos quartos, sua mãe abriu a porta, sorriu-lhe e disse: "Ainda não é hora de participar. Mande a copeira nos servir um suco." Clarice ouviu risinhos dentro do quarto, não se importou, ela agora tinha algo que ninguém mais tinha, era cúmplice de sua avó. Iria deleitar sob a alma feminina e descobrir o que é ser mulher.
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