Desfile
Capítulo 26
Desfile
O almoço foi ocupado por conversas e alegrias. Estávamos felizes e ouvíamos tia Zayra muito animada contar como era Hakim na infância, enquanto na medida do possível Kadi concordava.
— Ele um dia fugiu da escola sem que seu pai soubesse e foi lá em casa. Lembra desse dia, Hakim? — Hakim concordou com a cabeça enquanto colocava uma garfada de comida na boca. — Ele tinha decidido que se tornaria alguém que contribuiria para a humanidade. Seu sonho era que um dia ele pudesse ser lembrado por isso. — Hakim concordou com a cabeça.
— Eu estava no fim do ensino médio. A pressão de meu pai para seguir a área dele era grande. — Tia Zayra concordou.
— Mas você conseguiu sair perfeitamente da situação e tomou a sua decisão, não é mesmo? — Hakim deu de ombros.
— A senhora me ajudou. — Tia Zayra fez um gesto afirmativo com a cabeça.
— É verdade. Mas a decisão sempre foi sua. Aliás, a mesma coisa quando você me mostrou o que queria sugerir para o governo da Arábia Saudita a sua ideia de uma cidade tecnológico como um dos arquitetos responsáveis e que será mais conhecido pela engenhosidade do processo. — Hakim, modestamente, negou.
— Há muitos outros trabalhando comigo. E estamos todos querendo o melhor. A cidade tecnológica poderá ser um start para que outras cidades assim se formem e possamos melhorar a vida para todos na Terra. — Malika que não sabia muito bem do que falávamos, perguntou:
— O que seria essa cidade tecnológica? — Hakim umedeceu os lábios e passou a explicar a sua engenhosidade. Tia Zayra esperou que ele falasse para voltar ao assunto do qual falava.
— Hakim sempre foi e sempre será uma pessoa boa, igual a Kadi. Seu coração é enorme e o que você quer fazer pela humanidade, só por querer fazer, já é digno de nota.
— É verdade. — Concordou Malika.
A conversa foi mudando de assunto e passamos a ajeitar as coisas na cozinha enquanto Kadi arrumava as peças que queria apresentar no seu desfile de moda. Hakim ajudou ela a adornar um caminho que descia pelas escadas até a sala com alguns tapetes que tínhamos e alguns vasos de flores e velas não acendidas, só para demarcar o espaço.
Malika aproveitou para ir no banheiro e tia Zayra aparentemente aproveitou o momento para me chamar e falar comigo.
— Vejo que você e Hakim se ajeitaram desde o casamento. — Sem entender o que ela queria dizer, perguntei:
— Como assim? — Ela piscou como se eu estivesse me fazendo de desentendida.
— Ah, como casal. Agora parece que são mesmo, não? — Meu sangue pareceu subir todo para o rosto enquanto eu tentava responder isso sem parecer extremamente envergonhada.
— Ah, eu... — Tia Zayra me interrompeu.
— Não precisa falar nada querida. Só vai em frente. Você e Hakim se completam, eu sinto isso. Um faz bem para o outro. Hakim precisa de alguém em quem confiar... Ele sempre foi tão sozinho... E você parece que sempre foi um pouco também... — Ouvir o que Tia Zayra dizia era quase como um soco no estômago.
Como ela podia me desvendar tão facilmente? Eu me sentia aquecida pelas suas palavras, mas também nua, como se ela pudesse ver através de mim. Ela continuou:
— Se sempre estiveram tão sozinhos... Porque não dividirem a solidão juntos? — E a frase dela tinha alguma coisa de tão forte e tocante que acabei me pegando olhando para Hakim.
Ele ajudava Kadi a forrar as escadas com tapete e colocar adesivos no chão para que os tapetes não escorregassem e fizessem alguém cair. Enquanto eu o olhava, só conseguia notar esses pequenos detalhes que tia Zayra me alertara.
Hakim não parecia ter amigos e aparentemente vivia a vida apenas para sua irmã Kadi. O que ele poderia ter no passado dele que o tivesse feito se tornar uma pessoa assim? Normalmente, não nos afastamos das pessoas porque queremos. O ser humano é naturalmente sociável. A não ser por traumas, receios ou até mesmo vergonha do que virá, o ser humano acaba se afastando um pouco e não alimentando amizades.
Como se entendesse por onde os meus pensamentos iam, tia Zayra se aproximou de mim e falou:
— Oh, querida, você não sabe... — E eu a olhei assustada quando ela apertou um lábio sobre o outro e continuou: — Um dia ele terá coragem de contá-la. Mas não é fácil ter amigos com um pai como Mustarf de tabela... — E talvez um soco doeria menos.
Voltei minha atenção para Hakim que tinha o sorriso que eu achava o mais lindo do mundo. Ele ria de Kadi que havia cortado mais tiras de fita adesiva do que precisava. Contudo, o que mais me chamava a atenção era como eu nunca tinha sequer pensado nas pequenas nuances, no olhar lá no fundo entristecido que Hakim fazia questão de esconder – ou já se habituara tanto a esconder que nem mesmo mais percebia.
Hakim era uma vítima do homem horrendo que era o senhor Mustarf e, aparentemente, queria salvar sua irmã de ser uma vítima tal como ele. O que ele escondia de mim que era tão difícil de confiar e contar? O que talvez seu pai tenha feito para que ele se negasse à realidade de ter amigos?
Hakim parecia tão sincero comigo em tudo que eu também ficava surpresa em descobrir que havia alguma coisa cavada dentro de seu peito, tal como essa dor, que ele não tinha coragem de desenterrar e contar. Ele deixava claro como seu pai era horrível, como ele queria livrar a sua irmã das garras do pai ruim, mas nunca deixou claro o quanto isso mexeu com ele.
Nunca achei que Hakim pudesse ser como eu. Afinal, eu tinha um segredo que ainda não tivera a coragem de contá-lo. Ele também tinha um segredo. Alguma coisa muito dolorida, por sinal.
— Vamos começar! — Gritou Kadi me tirando do meu momento de torpor momentâneo.
Eu e Malika subimos ao encalço de Kadi para colocarmos os vestidos que ela queria que vestíssemos. Tia Zayra e Hakim ficariam de plateia. Seria um desfile de brincadeira, mas como isso era importante para Kadi, eu ficava feliz em participar.
Kadi me colocou uma abaya verde escuro e um hijab preto para começar a apresentação e colocou em Malika uma abaya vermelha vinho de botões com um hijab bege que combinava com a cor dos botões. Comecei na frente e desfilei fazendo graça.
Tia Zayra, muito animada, começou a gritar e Hakim começou a bater palmas. Do andar de cima, via Kadi falando várias coisas animada e o clima era de uma felicidade enorme. Terminei de desfilar fazendo uma posição tipo o homem pensador. Até eu não aguentei e acabei rindo.
Enquanto voltava para subir a escada, vi Malika desfilando. Diferente de mim, ela levou o desfile mais a sério e desfilou séria, tal como uma modelo realmente faria. Até me senti a mal pensando se eu não estaria desmerecendo o trabalho de Kadi brincando. Tia Zayra e Hakim fizeram as mesmas coisas que tinham feito com o meu desfile e continuamos o trabalho.
Kadi me colocou dessa vez uma blusa larga laranja que combinou perfeitamente com uma calça social lilás. Combinei com um hijab branco. Quase me fazia lembrar do meu conjunto de roupas na Nova Zelândia. Coloquei tênis branco que eu tinha e fui para o meu desfile.
Malika colocou um macacão largo jeans e uma blusa branca. Não colocou hijab nenhum e desfilou assim. Tudo ia bem. Continuamos desfilando com mais um conjunto de roupas e então chegou a última peça de roupa que Kadi tinha para nos vestir.
Eram dois vestidos de manga cumprida. Um deles era preto com flores vermelhas e o outro era um vestido rosa delicado. Talvez porque eu era mais baixa do que Malika, Kadi tenha decidido que eu ficaria com o vestido rosa e Malika com o outro. Contudo, Malika logo falou:
— Eu gostei do rosa. É mais delicado. Quero usar esse. — Kadi ficou alguns segundos sem reação e eu aproveitei para remediar o possível conflito:
— Sem problemas, mana. Eu fico com o outro, Kadi. — Kadi concordou e então colocamos os vestidos.
Eu não podia dizer como o vestido preto com detalhes em vermelho era extremamente lindo. O hijab vermelho só deixava tudo ainda mais espetacular. Me sentia com uma roupa para ir em um casamento de tão lindo que era. Malika também estava linda com os cabelos com ondas caindo por cima do vestido rosa.
Desfilamos pela última vez e fizemos uma vênia para então bater palmas para Kadi que vinha com um vestido da própria criação. Era uma saia de cor azul bebê com duas camadas, sendo a última de um material que parecia até o véu de noiva. Ela usava uma blusa branca que não ficava colada no corpo, mas bem bonita mesmo assim e estava com os cabelos caindo pelo vestido, tal como Kadi.
— Obrigada, obrigada! — Disse Kadi muito entusiasmada.
— Você realmente devia já abrir uma loja, Kadi! Talento é pouco para o que você tem! Vou ser a primeira cliente! — Disse, fazendo Kadi rir.
— Eu não vou cobrar barato! — Todos nós rimos.
— Nem deveria! É fruto de muito trabalho e delicadeza sua. Deve ser valorizado. — Disse. Hakim veio ao meu encontro e para minha surpresa me abraçou pelas costas colocando as suas mãos na minha cintura.
— Está muito linda com esse vestido. Eu já disse que agora gosto ainda mais de vermelho? — Senti minhas bochechas corarem.
— Você não deveria me deixar vermelha na frente dos nossos convidados.
— Mas eu não falei nada demais, Mah. É você que pensou besteira. — E ele sempre tinha a forma dele de fugir.
— Gente, vamos sair agora? Acho que se não sairmos, vamos chegar atrasados para ver o filme. — Disse tia Zayra nos lembrando do nosso compromisso. — Acho que vocês três podem ir até assim mesmo. Estão lindas. — Kadi concordou entusiasmada com a ideia.
— Papai não deixaria eu nunca sair assim de casa, porque ele acha que azul não combina com meninas. Eu posso mesmo, titia, Kimkim? — Os dois assentiram sorridentes.
— Eu não vejo nada demais em azul para meninas. E você está linda. — Disse Hakim fazendo Kadi bater palmas.
— Kimkim, eu te amo! — E ela era tão adorável abraçando Hakim realmente feliz por poder usar uma cor pela primeira vez.
Acabamos concordando e decidimos que seguiríamos assim para nossa sessão de cinema. Não havia mais tempo a perder.
**
Ver um filme é sempre um momento agradável para a maioria das famílias. Compramos pipocas, escolhemos uma poltrona, sentamos todos juntos. É um momento que acabamos por manter nas memórias, principalmente das risadas, das felicidades e do momento partilhado.
Não era diferente conosco. Malika havia sentado do meu lado e Hakim, Kadi e tia Zayra vinham seguidos. Tudo se seguiu tranquilamente e depois do filme seguimos para um restaurante para comermos juntos.
Acabamos encontrando Zey e sua família justamente ali e sentamos todos juntos para confraternizar. Apresentei Zey para minha família e ela me apresentou para sua mãe e seu irmão:
— Essa é minha mãe, Fatma e esse é meu irmão, Siao.
Continuamos com conversas amenas e as conversas paralelas logo começaram. Fiquei surpresa com o bom desenvolvimento de conversas entre Siao e Kadi, mas logo descobri que o irmão de Zey era dono de uma das maiores lojas que vendiam tecido para toda Dubai e como Kadi entendia muito bem de tecidos, eles conseguiam conversar perfeitamente sobre isso.
Zey tentou puxar assunto com Malika e eu acompanhei enquanto Hakim se mantinha quieto e fazendo carinho na minha mão.
— Você poderia tentar fazer jornalismo como eu. Parece ser capaz de buscar justiça como âncora de um programa de TV. — Malika sorriu.
— Não tenho vontade de ser jornalista. Parecem mais corvos e passarinhos gritando por atenção. Mas eu tinha vontade de fazer direito. Talvez eu pudesse assim conseguir lutar mais pelos direitos das mulheres... — E Zey tinha conseguido algo que eu, com a delicadeza em lidar com Malika, não tinha tido coragem de perguntá-la. Saber agora o que ela queria fazer no futuro me animava ainda mais para ajudá-la.
— Você consegue Malika. Pode tentar ver se já começa agora ou quem sabe, se preferir um descanso antes, pode tentar no próximo semestre. — Malika me olhou e concordou com a cabeça.
— Eu só não concordo com a parte dos corvos e passarinhos, mas a mídia sofre sempre com seus ferrenhos julgadores. Tudo bem. Eu não ligo. — Ela deu de ombros.
— Sério que você faz vestidos? Mas pensei que fosse modelo por ser tão linda, com todo respeito, não pensei que... — Olhei para Siao que dava uma leve corada ao falar e Kadi também parecia tímida.
— Eu tenho fotos. Gostaria de ver? — Hakim ameaçou ao meu lado a falar alguma coisa, mas eu me aproximei da sua orelha e sussurrei:
— Deixa a sua irmã, Hakim. Estamos aqui de olho, não há nada demais. E vai que seja esse o momento que ela esteja encontrando o futuro homem da vida dela? — Hakim me olhou como se não acreditasse no que eu dizia, mas eu falava de verdade.
Acreditava que realmente Kadi tinha oportunidade de se casar e que ela encontraria alguém que a amaria apesar dos problemas que ela tinha. Não seria uma trissomia do 21 que faria dela menos capaz de amar e ser amada.
Hakim acabou por concordar comigo e a janta foi agradável. Zey me passou o contato da psicóloga que ela conhecia e Malika concordou de marcarmos para uma conversa mesmo.
Eu não podia deixar de achar o fim de semana o mais agradável possível. Por mais que tivesse os seus contratempos e algumas coisas a ajustar, acreditava fielmente que tudo estava pouco a pouco se adequando e entrando na rotina.
Eu esperava que pudesse continuar assim para todo o sempre.
***
Oi oi gente! Tudo bem??
Temos um capítulo em véspera de Natal que nos faz pensar no que o Hakim pode ter sofrido no passado... Alguém arrisca?
E, além disso, já vimos algumas coisas da Malika e parece que um novo personagem apareceu... Rsrs
Aguardem as cenas que virão. As coisas aos poucos estão se ajeitando para o remate final...
Bjinhos
Diulia.
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