Capítulo 2 | Harry
O despertador está quebrado no chão do quarto. Me recuso a levantar. Sei que tenho trabalho e que preciso sair dessa fossa bizarra; mas sinceramente? Não quero. O fim de semana foi, mais uma vez, uma maratona de cerveja e de músicas deprimentes no meu violão. O som enchia o meu flat enquanto a bebida enchia o meu cérebro. Só Liam, baixista da minha banda e meu amigo desde os treze anos, me mandou mensagem. Não respondi.
Essa é a minha rotina há dois meses: fins de semana de merda seguidos por cinco dias de pesquisa para o meu doutorado na Escola de Biologia e Ciências da Queen Mary Universidade de Londres. Além da minha pesquisa simplesmente não andar, eu ainda tinha que lidar com os alunos do curso de Zoologia. Pelo menos, eles entraram de recesso há duas semanas — thank fuck! Se eu tivesse que continuar fazendo meu papel de professor assistente de biodiversidade marinha, provavelmente não estaria vivo hoje.
Eu sei que tenho que quebrar esse ciclo vicioso, no entanto é bem mais fácil seguir com o status quo da minha vida inútil do que ativamente tentar mudar. Eu posso sentir o fedor da depressão em volta de mim — basicamente cerveja e roupas que estão há três dias no meu corpo sem banho —, mas ele já é conhecido. Qualquer mudança seria novidade e eu não sei se consigo lidar com novidades.
Meu telefone toca. É Liam. Atendo sem dizer nada.
— Harry? — Faço um barulho que pode ser considerado como algo entre um grunhido e um arroto. — Harry, cadê você? A Dra. Harrison acabou de cruzar comigo no campus, você tinha uma reunião há quarenta minutos com ela. Cara, você vai perder sua vaga nesse doutorado se continuar assim. Levanta essa bunda e vem logo antes que eu vá aí te encher de porrada.
Ele nunca me bateria. Até porque não conseguiria. Eu faço muay thay há dez anos e ele, apesar de ser forte, é um graveto de gente comparado a mim, mas tem boa intenção. Em minha defesa, eu tinha me esquecido da reunião. Contudo, mesmo que ela não existisse, já era para eu estar na universidade há duas horas, então a verdade é que não tenho uma desculpa boa para dar.
— Vá à merda, Liam.
— Seria uma opção melhor do que ir até a sua casa, que, a propósito, está fedendo que nem o sovaco do Taylor, mas aparentemente eu vou ter que sair do meu caminho para salvar a sua vida de novo.
Toda segunda-feira tínhamos a mesma conversa, incluindo a referência ao sovaco do nosso baterista. Eu odeio o que estou fazendo com ele. Queria realmente conseguir parar, mas não o suficiente para realmente fazer acontecer.
— Vamos, Harry. Me dá uma ajuda, cara. Eu tenho uma vida também, sabia? Vim até o campus encontrar a Danny, não me faz ter que cancelar com a minha garota de novo por você.
Liam conheceu a Danny numa festa em que fomos tocar, perto da faculdade. Ela é professora do departamento de História... Ou Matemática... Ou Medicina. Eu não estava prestando atenção quando ele me contou. Liam se apaixona rápido e fácil, mas os relacionamentos costumam explodir na sua cara antes que eu tenha tempo de me apegar à garota. Não que eu vá lhe falar isso. Mesmo que agora esteja fingindo ser casca-grossa para me fazer levantar, é um cara sensível.
— Okay, Liam. — desisto. — Já estou indo.
Faço menção de desligar, entretanto ele grita um "espera" do outro lado da linha que quase arrebenta o meu tímpano.
— Que foi?
— Toma um banho antes de sair. Pelo amor de Deus, Harry. Toma um banho.
Faço uma careta e desligo sem me despedir. Liam é um santo. Se a situação fosse ao contrário, confesso que não sei se o apoiaria por tanto tempo levando tanta porrada. Não é justo com ele. Sou filho único, assim como Liam, e nossa amizade é mais um laço de irmãos do que de amigos; tenho muita sorte. Já Liam podia ter tirado uma mão melhor nesse jogo.
Como uma forma de recompensar seu esforço em me fazer voltar à vida, resolvo tomar banho. Recompensa de merda, eu sei, mas estou deprimido, então me deixa.
A água quente é um tapa em cada um dos meus músculos. Ela deveria fazer com que eu me sentisse melhor, no entanto só me sinto mais sujo. Tudo que já vivi nessa casa, nesse banheiro, nesse chuveiro, minhas melhores memórias são todas com ela.
Melanie.
Por mais que sair seja um suplício, estar aqui, com a minha mente viajando por tudo que vivemos, é pior.
***
— Que alegria você nos dignificar com a sua presença, Harry.
A Dra. Harrison não costuma ser muito adepta do sarcasmo, então posso afirmar, com toda certeza, que ela está puta.
— Desculpe o atraso, doutora. Meu despertador está com algum problema.
Não minto ao dizer isso. Afinal, o fato de eu tê-lo destruído hoje de manhã qualifica como um problema, não?
— Venha até a minha sala, precisamos conversar.
Então esse é o momento.
Tudo pelo que eu trabalhei ao longo dos últimos anos — as horas de pesquisa, estudo e dedicação —, tudo foi por nada. Ela vai me tirar do doutorado. Destruí mais uma parte da minha vida. Meu relacionamento implodiu, minha banda não se encontra mais, eu só tenho o doutorado e, agora, nem mais isso.
Parabéns, seu bosta. Você conseguiu.
Afasto o pensamento derrotista da minha cabeça. Vou receber essa notícia com dignidade. Se é que ainda tenho algum pingo restante em mim.
A sala da Dra. Harrison é pequena e possui apenas uma mesa de trabalho e duas cadeiras, uma para ela e outra para algum eventual visitante. O Departamento de Biologia e Ciências recebe um bom investimento da universidade, mas ela reverte tudo para tecnologia e pesquisa. Essa é a Dra. Emily Harrison, focada e sem necessidade de luxos supérfluos.
Ela se senta e aponta para a cadeira à sua frente depois que me pede para fechar a porta. Obedeço enquanto tento controlar a minha respiração e penso qual será minha reação quando ela me chutar daqui. Tentarei implorar perdão? Pedir para ficar? Levantar a cabeça e apenas me retirar sem falar nada? Ela não me dá tempo para tomar uma decisão.
— Harry, eu confesso que estou decepcionada.
Ouch.
Já começou arrancando o band-aid.
— Seus últimos relatórios sobre os impactos do efeito estufa na vida marinha até 2050 foram superficiais, isso quando você se deu ao trabalho de entregá-los no prazo. Essa pesquisa precisa ser encerrada em três meses ou você será reprovado e estará fora do doutorado.
Dra. Harrison faz uma pausa. Acredito que esteja esperando eu dizer alguma coisa. Nada disso é novidade, no entanto sinto meu peito contrair e minhas palmas suarem. Ouvir em voz alta o que eu já sei torna tudo ainda pior. Não há defesa para mim. Deixei o que aconteceu com Melanie afetar todos os âmbitos da minha vida e agora tenho que arcar com as consequências.
— Sinto muito, Dra. Harrison. Sei que não estou fazendo o meu melhor.
— Que bom que sabe! Se você achasse que estava arrasando, o problema seria pior do que eu imaginava.
É, ela está bem puta.
— Olha, Harry, você conseguiu essa vaga porque me surpreendeu. Seu estudo sobre a vida marinha nos trópicos foi um divisor de águas para esse departamento e nos ajudou a conseguir um financiamento maior neste ano. Quero que você continue conosco, então vou lhe dar mais uma chance.
Sabe os personagens de desenho animado que levam um susto e seus olhos saltam para fora das órbitas? É assim que eu estou no momento. Com olhos arregalados e sobrancelhas elevadas; o choque estampado em cada centímetro do meu rosto.
Mais uma chance?
Sim! Por favor, sim!
Uma onda de energia renovadora passa por mim. Não sei mais onde está o Harry de hoje de manhã. Ele dá espaço para um Harry com esperanças, alguém com uma luz no fim do túnel. Sem esse doutorado, não sei o que seria da minha vida; preciso encontrar forças para seguir. Preciso abraçar essa chance com unhas e dentes!
Dra. Harrison levanta um papel que estava na mesa esse tempo todo, mas eu só percebo agora. É o meu currículo.
— Vi aqui que você fala português; é verdade?
Onde ela está querendo chegar com isso?
— Sim, é verdade. Minha mãe é brasileira. Por quê?
— No mês que vem, o Brasil vai sediar um evento para a semana do meio ambiente. Empresas ao redor do mundo vão se reunir no Rio de Janeiro para mostrar as últimas novidades sobre o tema. A universidade foi convidada a participar e, como você tem o domínio do idioma, gostaria que apresentasse a sua pesquisa nesse evento. Isso vai ajudar na sua nota e lhe dará uma chance de sobrevida neste doutorado. Posso colocá-lo como nosso representante?
Ir para o Rio de Janeiro?
Penso na minha casa, nas lembranças, na bebida — no ciclo de depreciação em que eu me encontro. Penso no rico ecossistema marinho do Rio, na chance de levar a minha pesquisa para ser ouvida por pessoas que podem fazer a diferença, nas famosas praias que eu já vi em séries e filmes — nos biquínis ínfimos que não deixam muito para a imaginação. A resposta sai antes que eu possa frear meus lábios.
— Onde eu assino?
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