¹²|Furos de agulha
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Meu perfil: autora.stella
Eu sou fraco para bebida. Eu sei, é vergonhoso, mas é de família e um dos motivos porque nem Kalhil e eu deveríamos beber: a família da nossa mãe tem um histórico de alcoolismo. Isso nunca me impediu de encher a cara, é claro, assim como Khalil, mas eu tenho apagões quando exagero. Isso já aconteceu mais vezes do que eu gosto de admitir.
Tudo o que lembro de ontem é de ligar para Anthony e pedir para me levar a algum lugar com bebida alcoólica. Para onde ele me levou? Um clube chique. Tinha gente lá, mas nós ficamos sozinhos em uma mesa afastada enquanto ele tentava tirar informações de mim. Aparentemente, meu comportamento era estranho. Eu não disse nada a ele.
Eu quase voltei para aquele terraço e estrangulei Adrien. Ele é ainda mais filho da puta do que me lembrava e a forma como ele falou com a Genevieve… Sim, matá-lo passou pela minha mente. E depois teve aquele momento no elevador, quando ela se afastou do meu toque. Eu não sei o que pensar daquilo ainda.
No fim, eu bebi até Anthony precisar me arrastar do clube, pois lembro disso, além de uma mulher. Ela e uma amiga tinham chegado na mesa que Anthony e eu estávamos e isso é tudo o que me lembro até a parte que eu disse que ia processá-la se ela continuasse passando a mão em mim por debaixo da mesa. Estranhamente lembro especificamente dessa parte, e depois nada. Não sei nem como cheguei na minha cama, mas o cheiro inconfundível de morango e menta me deu uma dica.
Os sussurros na cozinha me dizem que Genevieve e Freya já estão acordadas e reúno alguma dignidade quando entro no cômodo.
— Oi, Eros — Freya me cumprimenta com a voz baixa, mas ainda com seu entusiasmo habitual e os olhinhos azuis brilhando.
— Bom dia, Spider. — Puxo sua trança, ganhando uma risadinha dela. — Por que você está sussurrando?
— A mamãe disse que você não teve uma boa noite e que provavelmente estaria com muita dor de cabeça e eu devia fazer menos barulho.
Movo meus olhos para Genevieve que está preparando a lancheira da Freya.
— Obrigado, mas estou bem. — Puxo a trança da garotinha mais uma vez antes de me afastar. — Bom dia — digo a Genevieve, observando seu macacão cinza. Eu não sei o que significa essa cor, mas pela forma que não olha para mim, só posso presumir que não seja coisa boa.
— Bom dia — responde.
Ponho um pouco de café para mim e me encosto no balcão enquanto beberico a bebida quente.
— Mamãe, posso dormir na casa da Jane?
— Não, querida.
— Por quê? Você deixou eu dormir na casa dela naquele dia. — Freya cruza os braços, fazendo cara feia.
— Naquele dia, hoje não. Nem amanhã ou na próxima semana — acrescenta quando a filha abre a boca para argumentar.
— Isso não é justo! Todas as minhas amigas dormem na casa uma das outras, por que eu não posso? — A expressão enfurecida de Freya se iguala a da mãe quando está brava e eu acho fofo, apesar da situação.
— Porque eu estou dizendo que você não pode.
Freya mostra a língua para a mãe antes de pular do banquinho e sair correndo.
— Freya! Freya, volte aqui! — Genevieve grita e quando sua filha não volta, suspira, esfregando a testa.
Ficamos em silêncio por um tempo. Eu estou apenas esperando a sua frustração passar e quando presumo que cinco minutos seja o suficiente, falo:
— Sobre ontem… aconteceu alguma coisa? Quer dizer, eu fiz alguma coisa? — Não perco o controle quando bebo, essa parte Khalil e eu não herdamos, mas o perfume dela estava em meu quarto e ela não quer me olhar nos olhos.
— Além de quebrar o abajur da sala, não.
Relaxo, então, mas fico tenso outra vez. Por que ela está usando cinza, então?
Por que você é tão obcecada em qual cor de roupa ela está usando? São só cores.
São, mas Genevieve é misteriosa. Ela levou três anos para me contar que tem uma filha — o que na verdade eu descobri —, assim como seus problemas com sua família. Então o que mais ela esconde? As cores das roupas dela é o único indicativo do que se passa com ela.
E por que você está tão interessado com o que se passa com ela?
São sete horas da manhã, porra, será que dá para não fazer perguntas difíceis? Sabia que está brigando com a sua própria mente?
— Pronta? — pergunto de súbito.
Mas Genevieve anue, pegando a lancheira de Freya e indo atrás da filha enquanto vou tirar o carro da garagem.
E assim começa a nossa rotina
❦︎
Genevieve está cuidando dos estagiários, por isso o escritório está vazio. Além de mim, é claro. Em breve terei que encontrar com America para mostrar as prévias das joias. Estou decidindo que seria muito covarde da minha parte pedir para que Genevieve me acompanhe, quando Kate entra na sala depois de dar duas batidas e sem esperar a minha ordem para entrar. Como sempre.
— Queria mesmo falar com você — digo antes que ela comece. Kate fecha a boca, parando imediatamente.
Tiro um Macallan da gaveta e fico de pé, indo até Kate e lhe entregando a garrafa de whisky.
Ela pega, hesitante.
— Me desculpe — peço, colocando as mãos nos bolsos. — Eu sou um idiota e você tem todo o direto de chutar a minha bunda. Eu sinto muito por ser um babaca na maior parte do tempo e agradeço a você por me aturar nos últimos anos… Assim como garanto que ainda haverá outros pedidos de desculpas.
— Você demorou quanto tempo para decorar isso? — Kate arqueia a sobrancelha, nada impressionada.
— Meia hora.
— Bom. Enfim, obrigado pelo whisky, você está perdoado. — Juro por Deus que sinto um alívio enorme ao ouvir isso. — Lorelei quer ver você.
— O que ela quer? — Volto para minha mesa fazendo cara feia.
— Eu sou só a mensageira. — Kate dá de ombros, muito ocupada inspecionando seu presente. — Você ainda está culpado o suficiente para me deixar beber no trabalho?
— Você já não faz isso?
Seu sorriso malicioso me faz balançar a cabeça, divertido. Bom, Kate e eu estamos de volta.
Isso melhora um pouco meu humor quando vou até o andar do marketing, onde Lorelei e Anthony trabalham. Não vejo meu irmão desde ontem a noite, mas não ficaria surpreso se o encontrasse acampando na porta do escritório de Lorelei.
— Eu não sou o meu irmão, que você estala os dedos e ele vem correndo — digo como cumprimento ao entrar em sua sala. Não é tão grande quanto o meu escritório, mas igualmente escasso de bens pessoais, apenas a decoração minimalista e a vista para a cidade.
— Seu irmão é inteligente. Você me fez esperar por duas horas. — Ela não tira os olhos do seu tablet, nem quando me sento em uma das cadeira de frente para ela.
— Se estava tão desesperada para falar comigo, só precisava ir à minha sala.
Lorelei suspira, finalmente deixando o tablet de lado e me encarando. Por mais que a gente não se dê muito bem, não posso negar a beleza da mulher e não entender porque Anthony é tão apaixonado por ela. Apesar de ter certeza de que meu irmão diria que sua paixão por Lorelei não tem nada a ver com a beleza e blá blá blá.
— Eros.
— Lorelei.
Nos encaramos por mais alguns segundos antes de ela me entregar seu tablet.
— Comece explicando o que isso significa — diz, então. Ou melhor, ordena como se eu obedecesse a ela.
Não argumento quando vejo do que se trata a matéria em seu tablet.
"O romance que surpreendeu a todos na última semana pode não ser real?"
— Que porra é essa? — pergunto a Lorelei, meus olhos ainda rolando pela tela do tablet. Na matéria, o jornalista alega que "uma fonte confiável" diz ter suspeitas que o meu noivado seja falso.
— Consegui que tirassem do ar assim que vi, mas não vai demorar muito para outro jornalista ter a mesma ideia. Então a pergunta é: é verdade ou não? — Seus olhos frios me analisam como se pudesse ver a verdade.
— Você está mesmo me fazendo essa pergunta? Com qual intuito eu inventaria um noivado falso? — Mentir sem hesitar é outra das coisas que herdei de minha mãe. Só coisas ruins, como você pode ver.
— Responder uma pergunta com outra é um modo defensivo de se esquivar da verdade, caso não saiba.
— Eu não estou me esquivando de nada. E não fique olhando para mim desse jeito, isso aqui não é julgamento. — Franzo as sobrancelhas para ela. Lorelei apenas junta as mãos no colo.
— Você parece muito incomodado para quem não tem nada a esconder. — Ela está certa, mas não irei admitir, por isso fico de pé, abotoando meu terno.
— Obrigado por me fazer perder o meu tempo. — Começo a sair do escritório, mas ainda ouço quando Lorelei pergunta:
— Você pelo menos suspeita quem pode ter vazado isso?
Eu tenho uma ideia, mas saio sem contar a ela.
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Apesar de ter focado no meu trabalho, minha mente divaga até a discussão com Kate. Ela está certa e eu não posso querer ajudar meus irmãos se eu continuar assim. Não tenho moral nenhuma para me intrometer na vida deles — e sim, eu sei que não deveria fazer isso para início de conversa —, mas eu tenho que mudar se quero ser alguém para quem eles vão pedir ajuda no futuro. Apesar das recaídas de Khalil e seu comportamento autodestrutivo, Anthony, ele e eu sempre fomos unidos e eu… eu sinto falta disso agora.
O problema é que sou orgulhoso demais para admitir isso como tantas outras coisas, então é provável que eu demore um pouco para trabalhar nisso.
Mas pelo menos é um começo.
Logo depois do almoço, Genevieve volta para o escritório. Não vejo ela desde a hora que foi cuidar do seu projeto. Quando nos encontramos do lado de fora da minha casa, Freya ainda estava meio rabugenta, mas ela e sua mãe claramente tiveram uma conversa. Eu não fui burro o bastante para me intrometer, então nós apenas seguimos para a escola de Freya em silêncio.
Eu ainda não havia decifrado o humor de Genevieve, mas ela está sorrindo quando entra no escritório.
E ela não está sozinha.
— E aqui é ainda onde está a mente por trás de todos os nossos designs — diz, seus olhos brilhando com desafio. Ela sabe muito bem que um dos motivos para eu ter lhe passado essa tarefa foi para que eu não tivesse que lidar com pessoas.
— Ele é ainda mais bonito de perto — uma garota entre os estagiários, murmura.
Arqueio a sobrancelha para Genevieve.
— A beleza não compensa a personalidade, acredite — diz a ruiva, fazendo uma careta.
— Você me ama. — Reviro os olhos, ficando de pé para me apresentar aos estagiários, apesar de não querer.
— Eu pediria para você guardar o seu ego no bolso, mas ele é grande demais, então não se incomode. — Quando me recosto em minha mesa, Genevieve vem até mim para me entregar uma prancheta e eu digo antes de ela se afastar:
— Meu ego não é a minha única coisa grande. — Minhas voz é baixa para que os outros não ouçam, e observo os olhos de Genevieve se arregalarem e descerem para meu colo, antes de ela virar rapidamente o rosto e sair do meu alcance.
Ainda sorrindo com a forma como suas bochechas estão vermelhas, sorrio e digo aos estagiários que estão olhando da ruiva para mim como se estivessem acompanhando uma partida de tênis:
— Boa tarde, eu sou Eros Blackburn, é um prazer conhecer vocês.
Demorou um pouco para os estagiários se soltarem, mas em poucos minutos estavam me fazendo perguntas. Apesar da minha aversão a treinar estagiários, tentei ser o mais educado possível ao responder suas perguntas, lembrando a mim mesmo que eles não tem culpa que eu seja um babaca em período integral.
Genevieve ficou perto o tempo todo e eu tenho uma teoria de que ela estava achando graça de alguns estagiários agindo como se eu fosse uma celebridade. A partir daqui eu assumo que sou presunçoso, pois reconheci a admiração em seus olhos, lembrando-me que realmente existem pessoas que admiram meu trabalho. Alguns acham que sentar em uma mesa e desenhar uma joia é fácil, mas não é. Trata-se de agradar o cliente, de achar a inspiração necessária para criar uma obra. Eu gosto tanto do meu trabalho porque também o vejo como um meio para me expressar. As joias que desenho são muito mais do que isso para mim, e é bom ter pessoas que reconhecem isso e não vêem o meu trabalho como piada.
Enquanto falo sobre a vez que ganhei meu primeiro prêmio, meus olhos deslizam para Genevieve e eu posso estar louco, mas vejo o mesmo brilho que nos olhares dos outros, no seu.
Ela admira você.
O choque disso me faz me perder no meio de uma frase, mas me recupero rapidamente. Isso, claro, não muda o fato do que acabei de perceber. Genevieve é uma dessas pessoas que entendem o que faço, porque ela faz igual. Quando digo que ela é talentosa, não estou mentindo: ela tem um talento nato e irá longe em nosso ramo, mas nunca percebi que minha aprovação é tão importante para ela.
Meus sentimentos nem sempre são claros quando se trata dela.
Você não tem sentimentos. Não bons, pelo menos. E não pela sua estagiária.
Foda-se.
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Genevieve instalou os estagiários no nosso andar, o que achei muito irritante, mas reconheci que facilitaria a vida dela, ficar perto dos estagiários para treiná-los e ao meu alcance, para trabalharmos.
Quando dá a hora, Genevieve e eu vamos embora. Tento não pensar como já me acostumei com a nossa rotina. Ainda é estranho sair mais cedo, mas agora tenho tempo para malhar quando chego em casa ou assistir ao noticiário. Ainda parece um pouco decadente, mas é melhor do que ficar na empresa até tarde da noite e voltar para uma casa vazia se não fosse pelos cachorros.
Freya parece já ter esquecido o episódio de hoje de manhã quando a buscamos na escola. Ela conta animada sobre a atividade que ela e sua turma fizeram hoje: plantaram no canteiro que há no jardim da escola. Sua animação é fofa, o que me tirou um sorriso.
Genevieve desviou seu olhar rapidamente quando eu a peguei olhando para mim.
Chegamos em casa e eu chamo Freya para me ajudar a colocar ração para os cachorros. Notei nos últimos dias como Zeus se acostumou rápido a ela, apesar de não gostar de estranhos.
— Nyx, para! — Freya ri quando quando o pastor alemão não para de lamber o rosto dela.
— Nyx, senta.
Ele a deixa em paz na mesma hora, obedecendo.
— Por que eles só obedecem a você? — Freya vem para o meu lado quando começo a encher o pote de ração de Apollo.
— Eu os treinei. Você quer que eles obedeçam você?
Freya anue ansiosamente e eu dou risada. Ficamos do lado de fora com os cachorros enquanto tento ensinar alguns truques a ela até que Genevieve nos grita de lá de dentro.
— Desculpe, devia ter perguntado se você precisava de ajuda — digo assim que entramos na cozinha.
— Você pode lavar a louça. — Genevieve procura por algo e eu presumo que seja sua filha, que subiu para lavar as mãos. — Precisamos conversar.
— O que foi? — Lavo minhas mãos na pia da cozinha depois de tirar meu terno.
Genevieve não diz nada e quando viro para ela outra vez, há um envelope aberto na ilha da cozinha e Genevieve está de braços cruzados.
— Recebi hoje. Mandaram para o meu antigo endereço. Parece que Freya ganhou uma bolsa integral na escola — diz ela, a voz serena demais.
— É mesmo? Isso é ótimo, não é?
— Não seja cínico, Eros. — Sua calma vai embora demais e seu olhar endurece. — Eu sei que foi você. E vai desfazer isso.
— Não sei do que está falando. — Seco minhas mãos, não encontrando meus olhos.
— Eros.
Inspiro fundo, conhecendo esse tom de voz.
Eu a encaro.
— Eu fiz por Freya.
Genevieve bufa, balançando a cabeça.
— Você é impossível. Não pode se meter na minha vida assim, tomar decisões sem me consultar.
— Você teria aceitado se eu tivesse oferecido? — Nós dois sabemos que não e foi por isso que pedi a Kate que conseguisse o número da diretora da escola. Fiz uma generosa doação e pedi para permanecer anônimo.
— Não sei! Talvez. Mas devia me perguntar. Freya é minha filha, minha responsabilidade.
— Aceitar minha ajuda não vai invalidar isso.
— Sério que você vai usar esse argumento outra vez?
Dou de ombros. Não tenho mais o que dizer, não me sinto arrependido e posso aceitar sua raiva sem problemas.
Freya entra na cozinha saltitando e é só por isso que Genevieve deixa eu me safar. Mas ainda digo a ela, minha voz baixa:
— Eu não irei desfazer nada.
Freya não percebeu a tensão entre sua mãe e eu e fiquei grato por isso. Ela é esperta demais, e isso só reforça minha decisão de não me arrepender. Freya merece ter uma boa educação e Genevieve não precisar se virar nos trintas para isso.
No meio do jantar, meu telefone toca. Além da minha família e Kate, ninguém mais me liga. Nem Genevieve. Todas as ligações relacionadas a trabalho vão diretamente para minha secretária.
E é por isso que eu estranho e demoro dois segundos decidindo se irei atender.
Por fim, aceito a ligação.
— Sim?
— Sr Blackburn? — um homem pergunta do outro lado da linha. Minha confusão só aumenta.
— Sim. Quem é?
— Arnold Corbett, senhorio do prédio do seu irmão, o senhor Khalil.
Reconhecimento passa por mim, então fecho os olhos, beliscando a ponta do meu nariz. Lembro-me de dar meu número a Corbett, mas ele só devia me ligar em emergências.
— O que aconteceu?
O homem pigarreia e apesar de não poder vê-lo, minha intuição me diz que ele está nervoso.
— O senhor Khalil está com o som ligado desde às 15h00. Eu já pedi para ele abaixar, mas nem sei se ele me ouviu. Está muito alto e já é tarde… Os vizinhos querem chamar a polícia, mas eu pedi que esperassem até que eu falasse com o senhor. — Ele faz uma pausa. — O senhor pode vir aqui resolver ou…
— Eu estou indo. — Então acrescento: — Obrigado por me ligar primeiro.
— Sem problemas, Sr Blackburn.
Encerrando a ligação, fico de pé. Tinha esquecido de Genevieve e Freya, que agora me olham com curiosidade.
— Tudo bem? — A primeira pergunta, aparentemente esquecendo nosso pequeno desentendimento minutos antes.
— Khalil. Eu preciso ir. Lavo a louça quando chegar. — Sorrio para Freya, que também parece preocupada comigo. — Tchau, Spider.
— Você vai voltar para me dar boa noite?
— Provavelmente não, mas vou trazer um doce para você, que tal? — Ergo as sobrancelhas e sorrio quando vejo que ela se anima com a ideia.
— Um pirulito bem grande? — Seus olhinhos brilham.
— Com certeza.
— Fechado. — Ela estende o dedão para mim e eu pressiono o meu no dela.
Puxo sua trança antes de ir, dando um breve aceno a Genevieve.
❦︎
O prédio onde fica o apartamento de Khalil é luxuoso, mas não tão pomposo quanto a maioria das pessoas esperaria de um dos filhos de Enrico Blackburn. Mas foi Khalil quem escolheu e meu pai não se importou, feliz que o filho tivesse um lugar bom para morar.
Quando chego ao saguão, Arnold — um homem baixo e rechonchudo — já está me esperando.
Aperto sua mão, agradecendo-o outra vez e avisando que ainda tenho a chave.
Quando chego no andar de Khalil, respiro fundo ao ouvir o barulho da música alta. São quase 20h00 e ele está com esse som ligado desde às 15h00… Jesus. É muita sorte mesmo que os vizinhos não tenham chamado a polícia. Eu certamente deixaria Khalil passar uma noite na prisão apenas para ver se ele aprendia alguma coisa. Considerando que ele já foi preso por pequenas infrações antes e continuou a mesma coisa, não acho que seria diferente agora.
Quando abro a porta do apartamento, o som fica mais alto e eu estremeço, praguejando.
— Khalil! — grito por meu irmão, fechando a porta atrás de mim.
O apartamento está um completo caos, com móveis arrastados e embalagens de comida pelo chão e em cima dos móveis. Peças de roupas não ficam muito atrás e sinto que estou andando por um lugar abandonado após uma invasão zumbi.
Vou diretamente para a TV e os aparelhos de som e tento desligá-los. O som está alto demais e eu perco a paciência com os botões, então arranco tudo da tomada.
Dou-me um segundo para sentir o silêncio, antes de ir atrás de Khalil.
Eu o acho atrás do sofá, jogado no chão.
O medo congela meu sangue quando o vejo estirado lá, vestindo apenas uma cueca, com uma garrafa de whisky vazia ao seu lado
Ajoelho-me ao seu lado, meu primeiro passo sendo checar sua respiração.
Quase desabo de alívio ao ver que está respirando.
— Khalil. — Checo também seus braços, procurando por furos de agulha, não achando nada.
Meu irmão abre os olhos, finalmente, encarando o teto por alguns segundos antes de seus olhos deslizarem para os meus. Estão vazios, sem nenhuma emoção.
— Consegue me ouvir? — pergunto, segurando seu rosto com ambas as mãos e examinando seus olhos atentamente. Apesar do vazio, estão com suas cores normais.
— Sim — murmura, rouco.
— Quantos dedos tem aqui? — Mostro dois dedos a ele.
— Dois.
— Bom. Está sentindo alguma coisa? Preciso levar você ao hospital?
Ele demora um tempo para responder e eu suponho que esteja fazendo uma análise do próprio estado.
— Minha cabeça está doendo.
— Você acha que bateu em algum lugar?
— Não lembro.
Pondo a mão em sua nuca, suspendo-o um pouco, até sua cabeça não estar mais no chão e eu poder examiná-la. Com cuidado, pressiono meus dedos por todo seu couro cabeludo. — Diga-me se doer.
— Não dói.
— Ok. Consegue ficar de pé?
— Acho que sim.
Eu o ajudo a sentar, lhe dando um minuto para se ajustar antes de ajudá-lo a ficar de pé. Seguro-o quando ele oscila, então nós caminhamos devagar para o seu quarto.
Levo-o diretamente para o banheiro, ignorando a bagunça em seu quarto. Há quanto tempo ele está vivendo assim? Não me lembro da última vez que vim a esse apartamento, provavelmente quando Khalil se mudou. É sempre assim ou aconteceu algo específico hoje?
Coloco meu irmão sentado na tampa do sanitário e vou preparar um banho de banheira.
— Ela sempre preferiu você. — A voz rouca de Khalil me chama atenção e eu viro para encará-lo. Está com a cabeça apoiada na parede, os olhos fechados. — Você era o garotinho de ouro dela.
— Ela amava você também — digo com cuidado. Eu deveria imaginar que ela seria a causa disso. Ela sempre foi a fonte da autodestruição de Khalil.
Meu irmão ri, mas obviamente não acha graça.
— Ela só sabia gritar comigo e dizer que eu era parecido demais com o papai. — E mesmo assim ele fazia de tudo para agradá-la e está se destruindo agora. — Eu vi quando ela foi ao seu quarto naquela noite. Eu pedi para ela me levar também, mas não fui o suficiente para ela. Nem naquela noite e nem antes. Então chamei o papai.
— Eu sinto muito. — Não tenho muito o que dizer. Nossa mãe, por mais que eu odeie admitir, era boa comigo. Ela me colocava para dormir e contava histórias. Isso não significa que eu não percebia que ela era mais dura com o meu irmão, mas eu tinha seis anos e não entendia.
— Você a odeia? — Khalil abre os olhos para me encarar.
— Sim. — Não só por ter ido embora, mas pelo trauma que causou ao meu irmão.
— Ela teria levado você.
— Eu não iria a lugar algum sem você, Khalil.
Nós nos encaramos por um longo momento. Um momento raro onde não estou gritando com ele ou ele está tentando me estrangular. Eu teria apreciado isso se a situação fosse outra.
Quando ele desvia os olhos e não diz mais nada, eu checo a temperatura da água antes de desligar a torneira.
Deixo ele sozinho para que possa tomar banho e vou até a cozinha.
Apoiando minhas mãos no balcão, abaixo a cabeça e suspiro. O que não disse a Khalil é que eu a mataria se ela aparecesse em minha frente. Não ligo se esse pensamento faz de mim um homem violento. Ela destruiu a vida dele. Quase. Você vai ajudá-lo a encontrar seu caminho.
É isso que me faz respirar fundo e começar a abrir os armários para preparar alguma coisa para Khalil.
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Depois do banho, Khalil parece um pouco melhor. Achei seu frasco de aspira e deixei duas para ele na cama com um copo de água. Agora ele come os sanduíches sem dizer nada. Tudo que achei — que não estivesse com a validade vencida — foram o pacote de pão, presunto, alface e tomate, além de uma caixa meio cheia de suco de laranja. Tenho a impressão de que tudo o que ele tem comido ultimamente são sanduíches e comida de fast food.
Enquanto ele come, limpo sua cozinha, jogando no lixo o que está passado da validade. Khalil não se importa, se é que percebe o que estou fazendo. Está mais uma vez distante, mas pelo menos não está drogado, é o que fico lembrando a mim mesmo. Podia ter sido pior, eu podia tê-lo encontrado tendo uma overdose ou podia ter chegado tarde demais.
— Obrigado. — Isso me tira dos meus pensamentos e eu olho para ele. Pela primeira vez desde que cheguei, ele está expressando alguma emoção: vergonha.
Apenas anuo, sabendo que ele odiaria se eu dissesse alguma coisa.
Khalil passa a mão pelo cabelo molhado, uma mania irritante que ele e eu temos, mas que também confunde as pessoas. Apesar da nossa diferença de idade e as cores dos olhos, somos bastante parecidos. Não ajuda muito que ele também tenha tatuagens, bem mais que eu, já que me limitei apenas ao meu braço, peito e mão. Khalil tem tatuagens por todo o corpo, menos o rosto.
— Eu vou dormir. Tranca a porta quando for embora — diz, já deixando a cozinha.
Anuo novamente e o observo sumir no corredor.
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Tentei não fazer muito barulho enquanto limpava todo o apartamento, apesar de saber que as duas aspirinas farão Khalil dormir por bastante tempo. Três sacos de lixo já estão esperando para serem levados embora amanhã.
Quando já estou exausto, meu paletó abandonado e a camisa desabotoada em cima e nos pulsos, vou para a sacada para tomar um pouco de ar. Sento-me em uma das cadeiras que tem aqui e tiro meu celular do bolso.
Hesito, pensando se devo ligar para Anthony e nosso pai. Khalil não gostaria disso e ele já está envergonhado apenas de eu estar aqui, tendo-o encontrado ele em tal situação. Contar ao nosso pai só pioraria, fora que já resolvi a situação, acho. Ele está bem agora, então vamos conversar sobre tudo isso. Com Anthony eu falo quando for para a empresa.
Porém, me encontro pairando com o dedo acima de um contato diferente.
Foda-se, penso e estou quase apertando o botão quando sua foto preenche a tela e seu nome brilha no identificador de chamadas, assustado-me.
Aperto o botão verde e levo o celular à orelha.
— Você não deveria estar dormindo? — Olho o relógio em meu pulso. 23h09. Ela geralmente já se recolheu para o quarto antes das 22h.
— Por que você atendeu tão rápido? — Posso sentir a suspeita em sua voz.
— O celular estava perto. — Uma mentira, claro, pois eu estava prestes a ligar para ela mesmo sabendo que podia estar dormindo.
— Mentiroso. Você ia ligar para mim — ela fala brincando, mas não imagina que está certa. — Enfim, não estou conseguindo dormir. Khalil está bem?
— Está. Obrigado por perguntar.
— E você, está bem?
Não respondo imediatamente, fechando os olhos ao recostar minha cabeça na cadeira. Falar da mamãe fez a lembrança daquela noite estar mais vívida agora.
— Minha mãe queria me levar com ela — não sei porque estou contando a Genevieve, mas continuo falando. — Ela e meu pai tiveram uma briga feia naquela noite. Não foi a primeira vez que ela ameaçava ir embora, mas foi a primeira vez que ela fez as malas. Ela esperou meu pai dormir, então foi ao meu quarto e me pegou. Meu pai apareceu antes que ela chegasse ao carro. — Expiro, as lembranças borradas passando por minha mente como num filme. — Khalil me contou hoje que pediu para que ela o levasse. Mas ela escolheu a mim.
Genevieve não diz nada, eu nem sei se ela ainda está na linha, muito menos porque contei a ela. Não falo sobre isso nem mesmo com meu pai. Pelo menos não desde que eu não sou mais uma criança frequentando terapia.
— A culpa não é sua, Eros — Genevieve diz. — Você era apenas uma criança.
— Ele também.
Conheço Genevieve o suficiente para saber que ela está planejando um argumento e é por isso que mudo de assunto.
— Freya já dormiu? — pergunto então. Pelo seu suspiro, deve ter percebido que não quero mais falar disso.
— Sim. Você não deveria ter prometido nada a ela. Agora com certeza vai sonhar com isso.
— Está presumindo que vou esquecer? — Arqueio a sobrancelha mesmo sabendo que ela não pode me ver. — Acho que você só está com inveja porque não vai ganhar um pirulito também.
— Ha, ha. — Ela fica em silêncio novamente e eu juro que posso sentir a sua tensão através do telefone. — Sobre hoje mais cedo…
— Você quer ter essa conversa por telefone?
— Você só está arranjando tempo para me enrolar e nós dois sabemos disso. Ainda estou brava com você.
— Ok.
— Você não pode sair se intrometendo na minha vida assim.
— Ok.
— E precisa prometer que não vai mais fazer coisas assim sem me consultar.
— Ok. — Pigarreio. — Eu prometo.
Silêncio outra vez.
— Isso significa que você vai deixar seu orgulho de lado e aceitar minha ajuda? — pergunto. Estou brincando com fogo, praticamente posso ver seus olhos incendiando com a provocação.
— Isso significa que estou pensando no bem da minha filha.
— Foi o que eu quis dizer.
— Estou dando língua a você nesse exato momento.
— Muito maduro. — Faço uma pausa. — Você deveria ir dormir.
— Não estou em horário de trabalho, não tenho que obedecer a você.
— E quando você obedece?
Genevieve solta uma risada.
— Verdade.
Contra minha vontade, um sorriso cruza meu rosto.
Ficamos em silêncio novamente, mas é confortável.
Fico observando as estrelas e ouvindo sua respiração até meus olhos ficarem cansados demais e eu fechá-los em algum momento.
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Oioi, como passaram o final de semana? Espero que bem.
O que acharam desse capítulo? Eu queria trazer um pouco mais do Khalil para vocês, então aí está.
Espero que tenham gostado. Talvez não tenha capítulo sexta-feira, então já vou pedindo desculpas 😢.
É isso, até! ♥️
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