6. UM DEUS IMPERFEITO
OS DIAS SEGUINTES À INTRODUÇÃO DE TÁSSIA AO "ASSUNTO BRENO CERES" FORAM DE EXPECTATIVA. Informações sobre ele pipocavam por todo lugar, seja presencialmente, seja nos grupos de WhatsApp. Aqui e ali, surgiam boatos sobre as qualidades do novato, mas não apenas sobre isso. Diferente do que todos achavam, um atleta exemplar e estudioso, Breno se provou um festeiro de mão cheia. As segundas-feiras desde a chegada dele eram permeadas por fotos do garoto em algum bar do Centro Histórico, farreando e abraçado a muitas pessoas. Às vezes, até com um beque entre os dedos.
No início, muitos disseram que ele havia "se perdido" e que aquele estudante "exemplar e estudioso" havia ficado naquela reportagem de um ano antes. As fotos dele com cigarrinhos de maconha, então, pareciam comprovar qualquer suposição. Porém, foi só o primeiro simulado geral acontecer para que os boatos sobre a possível degeneração do rapaz caírem por terra.
Breno Ceres gabaritou a prova.
— Ôxi, mas como pode isso? — Diante da folha pregada no mural, Raquel colocou as mãos na cintura. O nome do garoto se destacava na companhia do número 01 no alto da lista. — A gente se mata de estudar, os olhos só faltam cair da cara de tanto passar noite lendo, e no dia antes do simulado ele tava bebim num dos bancos lá do Reviver! Jesus, me arrebata! Eu quero nascer de novo.
— Bom — Tássia iniciou em uma tentativa de esconder que também estava surpresa. Ela mesma ficara na décima sétima posição —, vai ver ele consegue estudar e ir pra farra sem problema...
Raquel olhou para ela com a frase "tá zoando, né?!" estampada no olhar.
— Então, mulher, cachaça anda grudando conhecimento na cabeça de gente. Só pode! Pois vô começar a beber é já!
— Larga de ser exagerada — as duas se afastaram e foram em direção à sala.— E outra: eu acho que o pessoal todo também anda exagerando quando fala desse menino.
— Por quê?
— Ora por quê! — Tássia jogou sua mochila em uma carteira na terceira fileira, ao lado de onde sabia estar as coisas de Fernando e as de Hilton. — Porque não é possível que alguém que "só vive bêbado", como todo mundo diz, consiga um desempenho desse no simulado. Tem alguma coisa muito mal contada nessa história, isso sim. Pessoal se baseia em boato de WhatsApp e acaba com a vida das pessoas.
— Tá, eu até que concordo com tua prosa. Mas — sentou-se na carteira logo atrás da de Tássia, apesar de toda aquela fileira estar com placas de "não sentar" — onde tem fumaça tem fogo. Alguma coisa tem de ser verdade.
Hilton se aproximou das duas já com uma opinião na ponta da língua.
— O bofe era um tesouro na escola dele, faladoras! Estudar ele estuda. Aquele monte de reportagem sobre ele não ia mentir, né, suas loucas?
— Tá — Raquel cruzou os braços. — Tudo bem. Mas tu tem que admitir que alguma coisa deve ter rolado. As fotos antigas dele são tão calminhas, só paisagem, desenhos...
— Hum, safadinha! Tu já foi stalkear o Instagram do bofe, mana? Te apruma, mermã!
Raquel ficou um pimentão, Mesmo assim, não perdeu a pose.
— Eu vou fazer CFO, esqueceu? Preciso treinar minhas habilidades investigativas.
— Hum, eu sei muito bem o que tu quer treinar...
A garota ia dizer algo quando Tássia pigarreou e olhou para a última porta, na parte mais alta da sala. De repente, todos silenciaram e, como em um gesto ensaiado, se viraram para acompanhar enquanto Breno entrava. Calça jeans, moletom, óculos escuros, máscara toda preta, boné virado pra trás, o garoto entrou e logo tratou de sentar na primeira cadeira que viu pela frente. Quando acomodado, baixou a cabeça e começou a mexer no celular.
— Minha Santa, o bicho é gato até acabado de sono, veja só que belezura!
O peteleco na orelha de Hilton fez o garoto gemer. Fernando se sentou ao lado do namorado com um sorriso brincalhão no rosto.
— Sossega teu facho, Ton Ton.
— Tu também disse que achava ele gato, chuchu! — Hilton provocou.
— Sim, eu disse mesmo. Mas daí pra ficar praticamente secando o menino a cada vez que ele aparece...
Raquel sorriu.
— Ôxi, pois eu olho é mesmo! — virou ainda mais para trás e apoiou o queixo na mão. — Pra limpar a vista.
A atenção de Tássia, contudo, começou a se distanciar da conversa dos três. Enquanto observava o novato, pensou nas suposições levantadas sobre a vida de Breno. Não confessara para ninguém, talvez nem mesmo para si, mas ficou encantada com o modo como ele havia conseguido conciliar os estudos com a vida de atleta. Ela nunca teria pensado em manter duas rotinas assim. Tanto é que, ao tentar conciliar estudo e namoro, o resultado foi uma nota vergonhoso no simulado de Física. Olhou Breno passar a mão pela nuca. A manga do moletom abaixou um pouco e ela viu parte de uma tatuagem.
"Ele é tão... normal.", pensou.
Sentiu certa vergonha de si mesma. Pouco antes do início da pandemia e de todo o confinamento, quando Raquel foi fazer a primeira tatuagem — uma estrelinha na nuca —, a amiga a convidou para fazer uma também. Tássia recusou. Deu uma desculpa para a amiga e culpou os pais de serem "tradicionais". No fundo, porém, tinha o preconceito de associar tatuagens ao símbolo de uma vida desregrada e nada condizente com alguém estudioso. E agora, ali, na sua cara, estava Breno Ceres, inteligente, atleta, aparentemente festeiro, tatuado, descolado.
"E eu acabei um namoro por causa do ENEM..."
Desviou o olhar de Breno em direção ao outro canto da sala. Quase isolado, meio escondido de todo mundo, estava Patrick. Desde o término, nunca mais tinham se falado. De fato, o ex tinha até trocado seus horários de chegar no cursinho para evitar de se encontrar com Tássia. Antes, dona Gigi, a mãe dele, aproveitava o percurso que fazia para o trabalho e dava uma carona para o filho. Agora, após o término, Patrick passara a ir de ônibus. Assim, chegava trinta minutos depois da garota.
— Tá sentindo saudade do ex?
Ela olhou para Fernando alarmada por ter sido flagrada. Hilton e Raquel agora debatiam qual era o melhor filme de anime de todos os tempos.
— Tá doido, Fê? Pra lá! Deus me livre...
— Tá bom... — o amigo olhou para Patrick e avaliou o rapaz por uns dois minutos. Afastou o olhar apenas quando o garoto percebeu que era observado e encarou Fernando de volta. — Acho que o pé na bunda que tu deu nele até que serviu pra alguma coisa, sabia?
— Tá falando de que?
— Já notou como o Patrick mudou nessas últimas semanas? — Tássia negou. — Pois mudou e mudou muito. Ele tá até mais forte. E já percebeu que ele não fica mais com o grupinho dos jogos?
— É... É sério?
Fernando afirmou com um aceno, mas foi obrigado a deixar a amiga com seus próprios pensamentos quando Hilton e Raquel pediram a opinião dele sobre A Viagem de Chihiro e Orange.
Tássia tentou se segurar, porém, mesmo com a entrada da professora de Redação, não pode evitar de dar mais uma espiada no ex. Sim, concluiu, Patrick estava bem diferente. Mais forte, roupas que não tinham estampas de jogos de videogame, cabelo com corte diferente. Só então, ela notou que ele havia deixado de fazer a barba. Uma penugem já crescia para emoldurar o maxilar do garoto. E ele estava estudando (ou assim parecia), o lápis rabiscando algo enquanto a outra mão fazia contas em uma calculadora.
Fernando lhe deu um cutucão quando a professora chamou seu nome quase aos berros para ver se a aluna voltava à Terra ("A aula é aqui na frente, senhorita. Deixe a paquera pra lá fora"). Sob risinhos dos outros alunos, Tássia abaixou a cabeça imediatamente. Se tivesse esperado cinco segundos mais, veria que Patrick ergueu a cabeça e olhou para ela.
E Patrick, se tivesse olhado para o outro canto da sala, veria que Breno, sem óculos, um brilho nas pupilas, observava tanto a ele quanto a Tássia com um interesse, no mínimo, peculiar.
***
[Tem algo no ar. Consegue sentir? Consegue apontar para onde os ventos dessa história sopram? Prepare-se. Temos muita coisa para resolver... Clique na estrela abaixo para deixar seu voto, arrume as malas e não esqueça de colocar um guarda-chuva. A tempestade se aproxima...]
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