5. O OUTRO
TÁSSIA ENTROU NO PRÉDIO FEITO UM FURACÃO. Não olhou para ninguém, não falou com ninguém, desviou das pessoas como se fosse o Cristiano Ronaldo em um jogo de futebol. Ao chegar próximo às portas da sala de aula, no costume, entrou na primeira delas, que dava para as últimas fileiras no alto. Parou e respirou fundo. Alguns rostos se viraram para olhar a recém-chegada.
"Ou seria a recém-separada?", perguntou-se.
Por sorte, Patrick não estava por ali. Olhou Fernando e Hilton na segunda fileira na parte de baixo e caminhou para se sentar junto aos amigos.
— Bom dia, flor do dia.
— Oi, Fêfê.
Jogou a mochila sobre a mesa e sentou-se como se estivesse tudo normal. Hilton, porém, só faltou quebrar o pescoço e fazer os olhos saltarem das órbitas ao se virar para trás. Fazendo jus ao apelido de Tonto, o garoto olhou, olhou e, quando se deu conta do óbvio, seu queixo despencou.
— Gente do céu! Vocês terminaram mesmo!
— Hilton.
— Espera, chuchu. Eu pensei que não ia acontecer porque tu sempre foi meio...
— Hilton! — Fernando berrou.
— O que é!?
— Tem um mínimo de bom senso, homem de Deus! Faz mais escândalo que gato no cio! — Olhou para a amiga, tenso. Falou com ela quase em um sussurro. — É verdade mesmo?
— É. Eu terminei com o Patrick.
Hilton esticou o pescoço na direção dela.
— Por causa da nota no simulado?
— Também — ela notou que só aquela resposta monossilábica não iria satisfazer os anseios do garoto. — Foi o principal motivo, Hilton. Mas não o único. É uma série de coisas que já vinham de acumulando e não deu mais pra aguentar.
— E ele? — Fernando quis saber.
— Não sei. Ele... — pensou se deveria dizer aquilo ou não, mas sabia que precisava desabafar com alguém. — Na sexta-feira, depois da nossa conversa, eu vi ele na praça aqui em frente, sentado e... E ele parecia chorando.
— Chorando?
A voz de Hilton saiu tão alta que até os alunos na última fileira ergueram a cabeça para saber quem havia gritado. Quando Fernando abriu a boca para repreender o namorado, Tássia foi mais rápida.
— Eu não tenho certeza! Calma.
— Calma? — O olhar de Hilton teve um quê de desespero. — Menina, tu faz ideia do que significa um hétero criado pra ser "mais um machão" no mundo chorar em público? É dez vezes mais grave do que parece.
A garota sentiu uma brisa de preocupação passar por sua mente. Por mais que o comentário estivesse impregnado por suposições exageradas, ela não podia ignorar as verdades presentes naquela fala. Patrick não podia ser apontado como um "hétero top", o típico "machão", mas, sem dúvida, trazia dentro de si resquícios da sociedade machista onde nascera. Muitas pessoas acham que o fato de ser nerd o blindava contra esses defeitos. Não blinda. Algumas atitudes dele ainda eram de misoginia, mesmo que Patrick não percebesse, e o fato de o garoto se recusar a demonstrar sentimentos na frente das pessoas era um indício disso.
"Sim", Tássia concluiu, "aquela cena de choro foi de uma gravidade absurda."
— Ele vai ficar bem — ela disse mais para si do que para os dois amigos. Não conseguiu impedir que a frase transmitisse a apreensão que sentia. — Ele sempre ficava bem depois de perder nos jogos.
Fernando e Hilton se entreolharam.
— Tu sabe que isso é mentira, né?
— Fê, aquela vez foi... foi...
— Sem querer? — Hilton completou. — Criatura, ele passou três dias de cama por causa de uma partida que perdeu! Ficou pior do que eu quando a Lady Gaga cancelou o show no Rock in Rio.
— Era um torneio importante. Valia dinheiro...
— Quanto? — Ela olhou para Tonto e sentiu o rosto esquentar. Ele insistiu. — Quanto era o prêmio? Mil reais?
— Cinquenta reais.
Fernando quis evitar a revirada de olhos, mas a mania de Tássia de às vezes superproteger o namorado era demais pra cabeça dele.
— Tássia, tu sabe que o Patrick é meio carente de atenção, não sabe?
Hilton balançou a cabeça.
— Meio carente tu tá sendo bonzinho, né, chuchu? Por isso que eu sempre disse que ele namorava com a Tássia mais por egoísmo do que por gostar dela. É como diz o ditado: nem cagava e nem liberava a moita.
— Meu Senhor de Nazaré!
— E não é verdade?
Ele olhou para a amiga com um jeito de pena. Ela, porém, preferiu dar a conversa por encerrada. Se prosseguisse, suas preocupações com Patrick aumentariam ainda mais. Não podia deixar isso acontecer. Havia terminado o namoro com o objetivo de ter mais foco nos estudos. Portanto, era isso o que faria.
Abriu o caderno nas anotações de História e começou a reler os apontamentos sobre a Política do "Café com Leite". Contudo, enquanto os olhos passeavam por nomes de fazendeiros e personalidades da época, sua audição estava atenta aos sons vindos da parte de trás da sala, ávida por pescar comentários e fofocas que envolvessem seu nome.
De fato, terminara com Patrick para estudar melhor. Agora, porém, percebia que seria necessário um esforço um pouquinho maior para alcançar o objetivo.
***
TÁSSIA AGRADECEU PELO FATO DE AS PESSOAS ESTAREM MAIS ATENTAS A OUTROS ASSUNTOS DO QUE À AUSÊNCIA DE PATRICK. Em uma sala onde noventa por cento das pessoas eram adolescentes, com uma variação de idade entre os dezesseis e os vinte e quatro anos, fofocas como aquela, fresquinhas, fora das redes sociais, eram uma oportunidade única para impulsionar teorias e passar o tempo. Ainda bem, havia um outro assunto que escalou a escala de interesses das pessoas e ganhou as rodas de conversas durante o primeiro intervalo.
Quando a garota saiu da sala, apostila do cursinho à tiracolo, pronta para vinte minutos de leitura e estudo, deu de cara com risinhos contidos, cochichos e dedos agitados enquanto tocavam nas telas dos celulares em busca de algo. Por onde passava, Tássia via páginas do Instagram, Facebook e Twitter abertas nas abas de busca das redes sociais.
Até Raquel, que chegava a ser até mais paranoica com os estudos do que Tássia, estava num canto com o celular nas mãos ao invés de um livro.
— Quem morreu? — Tássia perguntou ao encontrar Fernando e Hilton no vão sob a escada para o terceiro andar. Fernando franziu as sobrancelhas.
— Por quê?
— Bom, tá todo mundo de olho no Twitter, buscando por alguém. Eu achei que algum artista tinha morrido...
— Ah — Tonto soltou um sorrisinho e ficou vermelho —, deve ser por causa do carinha novo.
Fernando olhou para o namorado de um jeito que Tássia julgou ser de repreensão. Não percebeu quais seriam os motivos para essa atitude.
— Que cara novo, gente?
— Pelo amor de Deus, Tássia! Em que mundo tu vive?
— É óbvio, né, chuchu. No planeta Patrick da galáxia dos jogos.
Tássia olhou para Hilton, os olhos em chamas.
— Rá, rá, rá, que graça! Pra informação de vocês dois, eu estudo. Não tenho tempo pra saber nome de quem acabou de chegar.
— Acabou de chegar, mulher? Tá pirada nos livros, mesmo. O menino entrou semana passada.
— Quê?
— Ele até sentou ao teu lado e do Patrick um dia.
Tássia tentou puxar alguma imagem das memórias, porém, não podia negar que as únicas cenas que lhe apareciam eram relacionadas aos estresse com o ex e a nota tirada no simulado de Física. De fato, perguntou-se se alguma vez tinha ao menos virado para dar um bom dia para alguém daquela sala que não fosse Patrick, Fernando, Raquel ou Hilton.
"... no planeta Patrick da galáxia dos jogos", a frase do amigo martelou em sua cabeça. Fugiu do pensamento e folheou a apostila.
— Tá. E o que esse cara tem de tão especial pra ficar todo mundo nessa loucura toda só depois desse tempo todo desde que ele entrou aqui?
— Depois desse tempo todo? Tássia, o pessoal tá assim desde semana passada.
— E com razão... O bicho é gato, viu? — Hilton soltou, voltando a ficar vermelho e receber uma olhadela de censura do namorado. — Ah, chuchu, vai dizer que é mentira?
Fernando também ficou meio vermelho.
— É, tá, tá bom. Ele é... simpático.
— Simpático sou eu, projeto de inocência! Um morenaço daquele, olhos cor de mel... Vixe! — e se abanou, afetado.
Fernando abriu a boca para reclamar, mas Tássia se adiantou às reclamações.
— Ok. E esse "deus grego" descido à Terra tem alguma coisa de especial além da beleza pro povo todo tá falando sobre ele?
— Óbvio, né, mulher? Além de toda capa, ele já apareceu no jornal.
Tássia sentiu um tédio lhe invadir. Suspirou.
— Ele é o que, vamos ver: ex-BBB? Viralizou com dancinha no TikTok? Lacrou sobre algum assunto?
E sorriu com o próprio sarcasmo. Porém, não foi acompanhada pelos amigos. Pelo contrário, Fernando ficou até sério.
— Ele foi o único de São Luís a tirar nota mil na redação do último ENEM. E isso enquanto ainda era atleta de ponta e participava dos Jogos Escolares.
— Não só participava como foi campeão do JEMs — Hilton lembrou.
Tássia despregou os olhos da apostila. Aquela novidade pescou sua atenção.
— Mas... E o que ele faz aqui no cursinho?
— Pois é, esse é o mistério — Fernando cruzou as pernas e Hilton deitou a cabeça em seu colo. — Por isso que o pessoal tá nessa investigação toda. Nota pra entrar na universidade ele teve. Até em Medicina ele conseguia. Mas por algum motivo ele não entrou, desistiu, sei lá...
— Quanto ele tirou na prova?
— Espera... — Fê puxou o celular do bolso e procurou por algo. Um minuto depois, encontrou. — Tá aqui. Pessoal se empolgou. Passou o print pra tudo que é grupo. Olha aí.
A garota pegou o celular. O print era do site do principal jornal da cidade. Datava de um ano antes da pandemia. Na chamada da reportagem, o destaque era "Estudante maranhense tira nota máxima na redação do ENEM". Abaixo, o texto evocava a outra qualidade do garoto: "Conciliando vôlei e estudos, estudante tirou nota mil na redação ao mesmo tempo em que foi campeão e atleta destaque nos Jogos Escolares Maranhenses".
O texto descrevia parte da rotina do garoto, trazia falas dos professores dele e dos pais, e foto do time de vôlei com a taça do JEMs. Mais abaixo, havia uma foto dele com a medalha de Melhor Atleta da competição. Moreno, olhos amarelados, cabelo encaracolado, sorriso sereno com covinhas nas bochechas, ele posava em frente a uma prateleira onde havia livros, dezenas de medalhas e aqueles chapéus de neon usados em festas. Na legenda da imagem, veio a informação que justificou o frenesi em torno dele.
"Breno Ceres harmonizou a rotina como atleta, o lado adolescente e a vida de estudante. O resultado foi certeiro: medalha no JEMs, destaque estadual e uma nota total no ENEM de 958,7 pontos."
Tássia piscou. Muitas vezes. A boca entreabriu. Como se lesse os pensamentos da amiga, Hilton sorriu.
— Entendeu agora a situação em torno do bofe?
Ela se limitou a assentir. Como todos os demais mortais do cursinho Geração, acabara de ser infectada pela pergunta que rodopiava por entre todas as rodas de conversas:
"O que Breno Ceres, com aquela pontuação toda, fazia em um cursinho intensivo pro ENEM?"
A concentração de Tássia foi pelos ares.
***
[Qual o mistério de Breno? Por que alguém tão "genial", nota mil na redação do ENEM, jogaria tudo para o alto? É, a vida de estudante é cheia de reviravoltas... Vamos para o próximo capítulo?]
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