33. OITO MESES DEPOIS
TÁSSIA CUTUCOU O PEDAÇO DE CARNE E SENTIU O ESTÔMAGO EMBRULHAR. De novo. Há meses, andava daquele jeito. As pessoas diziam que ela tinha de se acostumar, que era comum ficar desse jeito nos primeiros meses daquela novidade. Mas para ela vinha sendo algo muito difícil. Em alguns dias, a depender da comida, até conseguia lidar bem com a refeição. Porém, quando era carne, as coisas não lhe caíam muito bem.
Brincou com o arroz e com as verduras cozidas no vapor, grata por ter aquela saída para sanar sua fome. O copinho com a gelatina de cereja ali ao lado soava como uma compensação. Parecia que a própria equipe de nutrição do Restaurante Universitário da UFMA tinha noção de que, nos dias de carne assada, precisavam presentear os alunos com um mimo a mais.
— Ôxi, oito meses de universidade e tu ainda não te acostumou, criatura? — Raquel se sentou ao lado dela e olhou para o prato da amiga.
— Pelo amor de Deus, né? Nem a faca corta essa carne!
Um grupo de garotas na mesa ao lado ouviu e gargalhou. A situação da carne assada do RU era famosa. Raquel espetou o seu pedaço de carne e ergueu diante dos olhos.
— Eu pergunto se fiz a escolha certa de ter vindo pra Direito ao invés de continuado com o plano do CFO na UEMA...
— A comida lá é melhor?
— Sei lá! Mas a Universidade Estadual é mais perto da minha casa. Qualquer coisa, eu podia simplesmente sair e comer.
— Bom, mas as outras coisas estão ótimas — Tássia indicou. — Tu nem vai sentir falta da carne.
— Eu preciso de energia, amiga, é sério. Os professores são tudo psicopatas! — Ousou cortar a carne e a faca descartável quebrou. Ela desistiu. — Eles pensam que a gente não tem vida! A sem noção da professora de Introdução ao Direito I passou dois seminários pra mesma semana, acredita?
— Ô, se acredito. Eu tenho um pra apresentar amanhã e mais três trabalhos pros próximos dias.
— O Hilton é que tem se dado bem.
— Isso é. O Fernando praticamente já leu todos os livros de Psicologia existentes na face da Terra. Os dois vão acabar como melhores alunos do curso.
— Inveja total. — Raquel terminou de mastigar, engoliu com uma careta e olhou ao redor. — Ave Maria, uma hora dessas é que eu queria um namorado inteligente também.
— Pra te passar as respostas?
— Seria bom, né? Absorver conhecimento por todos os buracos.
As duras sorriram com a piadinha infame. Terminaram de almoçar, levaram os pratos para a área de descarte das bandejas e saíram do R.U. Tássia olhou para o relógio em seu pulso e verificou que ainda tinha pelo menos uns quarenta minutos até o início das aulas.
— Por que mesmo é que tu veio de manhã pra cá? — Raquel perguntou após comprar uma bomba de chocolate em uma barraquinha ao lado do restaurante.
— O Breno inventou de a gente se encontrar hoje.
— Pra quê?
— Só Deus sabe. Eu desconfio que ele anda fazendo alguma coisa. Diz que é um presente pra mim, mas até hoje não faço ideia do que seja.
— Ele tava meio bêbado quando te prometeu isso, lembra?
Tássia assentiu.
Há seis meses, quando os resultados finais do ENEM saíram e Breno soube que havia passado em primeiro lugar em Biologia (além de, novamente, ter tirado nota mil na Redação), a mãe dele fez questão de vir para São Luís e fazer uma festança para comemorar. E foi nessa oportunidade que o rapaz prometeu que faria "uma surpresa" para a namorada.
Meses depois, ela ainda não fazia ideia do que era.
As duas se sentaram em um banco à sombra de uma amendoeira e esticaram as pernas . O clima universitário lhes fizera muito bem. Raquel estava mais corada e ganhara alguns quilos. Tássia havia ficado mais despojada. Ver o fluxo de alunos, escutar as conversar sobre os mais variados temas, a diversidade de sexualidades e gêneros, tantas pessoas, tantas vidas, tantas cores, tudo fazia a garota se sentir feliz por ter tomado aquela atitude.
Não certa ou errada, mas, como Fernando lhe dissera há muito tempo, uma atitude da qual ela se apoderara.
Deitou-se no banco e olhou para a folhagem da árvore. Sim, estava feliz. Sorriu ao relembrar daquele primeiro domingo de ENEM, quando ela chegou em casa na companhia de Breno. O rapaz insistiu em ir com ela até em casa para garantir a seu Abel e dona Selma que "só queria o bem para a filha deles". E conversaram. Quando ele foi embora, os pais caíram na gargalhada. Disseram que nem mesmo eles, na época em que se conheceram, fizeram isso. Abel disse que era, já naqueles tempos, era algo "muito cringe".
Tássia sorriu embalada por essa lembrança. E já estava quase fechando os olhos para tirar um cochilo antes das aulas quando escutou três vozes que conhecia muito bem. Ergueu a cabeça e viu Fernando, Hilton e Breno juntos vindo na direção delas. Pelo visto, discutiam sobre música.
— ... mas querido, alô-ôu! Se tu cantar Lady Gaga na tua apresentação vai ganhar todo mundo assim, ó — e estalou os dedos na frente do rosto do aspirante à biólogo.
— Cê tá doido? A Lena me mata se eu chamar a banda dela pra calourada geral e inventar de cantar Lady Gaga.
— Ah, que heterozice! Quer coisa mais rock n'roll no pop do que Lady Gaga, meu filho?
— Madonna e Cher — Fernando sugeriu.
— Rihanna e Beyoncé — Breno palpitou.
— Joelma Calypso! — Raquel gritou.
Os três olharam para a amiga como se ela fosse um ET. Sorriram.
— Tá, miga. Também não exagera.
Breno se sentou ao lado da namorada e colocou a cabeça dela no seu colo. Fernando e Hilton sentaram-se no chão mesmo, o lugar preferido da maioria dos estudantes. Raquel olhou para os dois casais e bufou.
— Ave Maria, eu não vou mais sair com vocês não! Ficar segurando vela toda vez é muito chato. Não fiz ENEM pra isso, não!
— A gente pode fazer um trisal. — Hilton sugeriu. Raquel olhou pra ele com um olhar de censura.
— Pra quê? Aí mesmo é que eu ia segurar vela. Ou melhor: "vela" é a única coisa é eu ia segurar nas mãos, né? Vocês já ficam com todas.
Gargalharam.
— Pede uma vaga pro Breno e pra Tássia, então — Fernando brincou.
Breno fez não com a cabeça.
— Impossível.
— Por quê?
— Porque a gente vai ficar juntos a vida inteira e é complicado um trisal se sustentar por tanto tempo. Mas eu vou arranjar um namorado pra você, Raquel. — Breno prometeu. Mas foi o início da fala dele que fez Tássia se levantar.
— Pra vida inteira? Quem te garante?
— Ah, sei lá. Os sinais?
— Quais sinais? — Ela questionou, brincalhona.
— As mudanças que um promoveu na vida do outro, talvez?
A garota olhou para ele. Breno estava com camiseta de manga curta e havia aprendido a sorrir sem que fosse para ironizar alguém. As cicatrizes, ao invés de motivos de esconderijo, agora já o tinham levado até para dar um depoimento nas campanhas do Setembro Amarelo, mês de prevenção ao suicídio. E ela aprendeu a conciliar as coisas.
No final das contas, nem o exagero de Breno em relação a se afastar das pessoas, nem os exageros dela quanto a estudar tanto ao ponto de ficar doente foram o ideal. Tudo na vida precisava de meios termos.
"A vida em si é um grande meio termo.", concluiu.
Olhou para Fernando e para Hilton, para Raquel e Breno. Após tantas coisas, tantas dores de cabeça, estresse e ansiedade, tudo se ajustara e o rio da vida encontrara seu próprio caminho.
Pegou a mão do namorado e apertou. Ainda tinham um longo percurso pela frente, tanto nos estudos, quanto no relacionamento. Contudo, ela sabia, estavam dispostos a tentar. Finalmente, agora de verdade, ela estava preparada para abrir mão de algumas coisas de sua "estante-vida" para dar lugar às coisas que viriam da "estante-vida" de Breno. E vice-versa.
Enquanto os cinco conversavam, ele tocava no anel no dedo anelar da mão direita dela. De esguelha, ela viu uma cópia da joia na mão direita dele. Algo de comum acordo, sem alardes, sem espetáculo.
Há anos, se alguém se aproximasse e dissesse que, aos dezoito anos, ela estaria com um anel de compromisso no dedo e disposta a viver um romance do modo mais intenso que pudesse, Tássia riria da cara dessa pessoa. Sem dúvida, questionaria questões como "futuro" e diria que "sua prioridade era apenas os estudos"; que, depois de formada, "teria muito tempo para pensar nisso, se é que pensaria um dia!".
Sorriu. Nunca se sentiu tão bem de ser quem era, do jeito que era e com a pessoa que escolhera amar.
Sim, Tássia aprendeu a amar sem fardos.
Graduou-se na arte de amar-se do jeito que era.
E a vida, simplesmente, fluiu.
*
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