30. A VÉSPERA DO ENEM
A MENTIRA PODE SER ALGO DELIBERADO. Ou então, pode ser fruto de uma mera conjuntura que leva a pessoa a mentir. No caso de Tássia, foi autoproteção. Quando chegou ao cursinho na segunda-feira, todas as pautas de assuntos giravam em torno de três pontos: as provas do Simulado Geral, a ausência de Breno e, é claro, a falta de uma das alunas mais empenhadas do Geração. Foi colocar os pés no cursinho que até Cassiana, a segurança, veio lhe perguntar se estava tudo bem.
O que aconteceria se contasse que acordara tarde e depois ficara até de madrugada na casa de Breno?
O jeito foi mentir. Inventou que tivera um jantar com muita macarronada no sábado, coisa que estimulou uma diarreia homérica no dia seguinte. Segundo deu a entender, passara o dia inteiro sentada no vaso sanitário. "Emagreci uns quatro quilos", argumentou.
Porém, nem todos acreditaram nisso.
— Tá, fala a verdade.
Tássia olhou para Fernando e fingiu inocência. Tomou mais goles de suco do que era preciso e quase se engasgou. De longe, Hilton e Raquel, empolgados em uma conversa com um grupo de professores, olharam para ela.
— De novo? Isso é uma investigação?
— Não. Isso é uma amizade. Tu mudou muito nos últimos meses — ela ergueu os ombros. — E coincide com a chegada do Breno.
— Tu quer dizer o que com isso?
— Que talvez tu tenha, finalmente, encontrado alguém que te impulsione pra algo que realmente faz sentido pra ti.
Ela tornou a beber de seu suco.
— Só tem uma coisa que faz sentido pra mim, Fernando. E ela vai acontecer daqui a quinze dias.
— É um aniversário? — Ele brincou.
— Aniversário? Que aniversário?
— Do Breno.
Tássia recuou o corpo, testa franzida. Aquela era uma informação nova.
— Aniversário do Breno? Como tu sabe disso?
— Ora, como todo mundo: pelos lembretes do Facebook.
— Meu Deus, quem ainda usa Facebook?
— Cada vez menos pessoas, é certo. Mas muita gente abandonou o Face sem excluir a conta, e o Breno é uma dessas pessoas.
— E pra que mesmo tu quer saber do aniversário dele?
Fernando fez um gesto de enfadado.
— Eu não fui atrás dessa data. Saber disso foi mera consequência daquela busca por informações que o pessoal fez. Ao invés de escutar boatos, eu fui até a fonte atrás de fatos concretos.
— E eu é que vou fazer Jornalismo...
Fernando massageou o pescoço e deu uma olhada no namorado, que agora falava tão alto sobre uma das questões da prova que já atraía um grupo de alunos para o seu entorno. Sorriu para a amiga.
— Tu te conectou a ele, não foi?
— Sabe o tipo de pessoa que parece ter um mistério em torno de si que atraí todo mundo? O silêncio dele faz isso.
— E tu foi atrás desse silêncio.
— Não. Eu não fui atrás. Só... Só aconteceu.
O amigo olhou para ela com ainda mais atenção. Passou algum tempo antes de falar.
— Engraçado.
— O quê?
— Bom, se parar pra pensar, eu lembro que a conexão com o Patrick veio exatamente desse jeito misterioso que ele tinha. E deu no que deu, né?
— Eu não tô interessada no... no Breno!
O garoto ergueu uma sobrancelha.
— Tu sabe que um dos sinais de interesse de uma pessoa por outra é exatamente começar a se espelhar nela, né? É por isso que, por exemplo, alguns casais parecem — fez aspas com os dedos — "feitos um para o outro". Não são. O caso é que, no subconsciente, as pessoas acabam absorvendo os hábitos umas das outras em uma tentativa de se conectar. E até deixam para trás muitas coisas que são de sua própria personalidade.
— Bom, o nome disso é amizade.
— Também. Mas, e tu sabe disso muito bem, é mais fácil um casal fazer essas concessões do que amigos.
— Isso não é ruim? — E se lembrou de uma conversa nesse mesmo caminho que tivera há tempos com o pai. — Digo: se anular em prol do outro?
— Eu não falo de se anular. Eu falo de se adaptar. É diferente.
Tássia cruzou os braços.
— E qual adaptação foi essa que tu fez na tua vida, senhor psicólogo? Porque, sério!, tu não mudou nada depois que começou a namorar com o Tonto.
— Como não? — Fernando fingiu choque. — Eu era muito, muito mais paranoico com carinho em público, expor minha sexualidade, essas coisas. Depois dele — e olhou para a empolgação de Hilton metros adiante —, eu fiquei mais seguro de quem eu sou.
Ela acompanhou o olhar.
— É, isso eu não posso negar. E ele também ficou mais responsável depois que vocês ficaram juntos.
— Pois é. Um absorveu coisas dos outros, tanto qualidades como defeitos também. — Fernando tocou na mão de Tássia e apertou. — Amiga, a gente se conhece desde pequenininhos — ela assentiu. — Tu absorveu coisas do Patrick de forma consciente porque queria entender as atitudes dele. Tu te forçou a isso. Mas agora, com o Breno, tá na cara que essa mudança, o teu jeito mais leve com os estudos, as faltas, a forma como não tem falado tanto em ENEM e futuro e essas coisas, é óbvio que isso começou desde que vocês ficaram mais próximos.
Ela tomou fôlego. Quis evitar, mas o olhar de Fernando era como um divã que chamava o paciente para se desnudar sem medo. Voltou-se para aceitar aquele convite.
— Sabe, eu comecei a pensar se realmente vale a pena tudo isso — admitiu ao indicar o cursinho com o olhar. — Não o ENEM em si, não isso. Mas a obsessão, as pressões, tanta expectativa como se uma prova só já fosse definir toda a trajetória de nossas vidas para sempre.
Ele sorriu.
— Essa é a Tássia que o Breno despertou.
— Pior é que eu gosto dela, sabia? — sussurrou.
— Ainda bem, né? Eu confesso que eu gosto dessa Tássia mais segura de si. Muitas pessoas veriam isso como fuga, mas eu acho que tu fizeste foi amadurecer. Talvez não esteja consciente do que, afinal, quer ou não fazer da vida. Mas, pelo menos, tem mais segurança de que, independentemente do que escolher, defenderá essa escolha com unhas e dentes.
— Tu vai ser um médico incrível, Fê!
— Vou colocar teu nome no meu consultório, isso sim.
— Eu vou é cobrar, meu bem! Tá me usando como cobaia há mais de dez anos.
Ele riu.
— Promete pra mim que, não importa a tua escolha, que tu não vai se sentir culpada por causa dela?
— Sim, eu prometo. E dessa vez eu vou cumprir. Mas por que tu tá dizendo isso?
— Porque o aniversário do Breno é na véspera da primeira prova do ENEM.
Ela titubeou.
— E... E daí? Tanta gente faz aniversário até no dia do ENEM e sobrevive... — forçou um sorriso amarelo.
— Tássia, tem gente dizendo que ele vai comemorar naquele bar pra onde ele sempre vai, lá perto do Castelo do Rock, no Centro Histórico. Parece que um colega dele toca em uma banda que se apresenta por lá e tá preparando uma homenagem, alguma coisa assim.
— Certo. E eu volto a perguntar: e eu com isso?
— Pessoal tá achando que ele faltar ao Simulado foi grande coisa, um impacto. E foi mesmo, a gente sabe. Mas eu acho que o verdadeiro tapa na cara que o Breno quer dar nas pessoas é não ir fazer o ENEM. — E, antes que a amiga viesse com mais um "e eu com isso?", Fernando acrescentou: — E eu vejo nos teus olhos que tu está cada vez mais disposta a fazer a mesma coisa.
Ela negou com a cabeça e fingiu que as palavras de Fernando eram a coisa mais sem sentido do planeta. Contudo, quando pegou o copo de suco e deixou-o cair de sua mão, sujando o chão e a barra da sua calça, ela teve noção de que as preocupações do amigo tinham um fundo de verdade.
Uma verdade que retumbava dentro do peito dela.
***
OS BOATOS SOBRE O ANIVERSÁRIO SE MESCLARAM AO CHEIRO DO ENEM QUE SE AVIZINHAVA. O ambiente era de tal expectativa que os quinze dias passaram num voo. Nessas duas semanas, Breno não deu mais sinal de vida. Por mais que Tássia fingisse não se importar, o fato de ele visualizar as mensagens dela e não dar nenhuma resposta a deixava com raiva. Mesmo assim, ela se forçou a se manter focada na prova, apesar de a vontade de ir até a casa dele competir de forma cada vez mais desleal com suas obrigações com o ENEM.
Na sexta-feira antes do provão, o dia foi de confraternização no cursinho. O que era para ser um momento de despedidas e diversão por ter concluído aquela etapa, tornou-se para ela uma mistura de sentimentos conflitantes. Estavam em uma dinâmica musical no auditório do Geração quando ela escutou um grupo de garotos cochichar. Ao prestar mais atenção ao falatório, soube que um deles tinha recebido um convite para ir ao tal bar comemorar o aniversário de Breno. E, quase no mesmo momento, outras pessoas também receberam o tal convite.
Algumas fizeram troça, perguntando-se quem seria maluco de farrear na véspera do ENEM. Outros, porém, pareceram instigados (e até encantados) por terem sido convidados para o que chamaram de "ato de protesto contra a opressão da sociedade".
Exagero ou não, Tássia não recebeu convite.
Naquele dia, os pensamentos se agitaram como se fossem um pêndulo entre o que deveria fazer e se teria coragem de fazer o que seu coração mandava. Dormiu com esse pensamento, acordou na mesma vibração e passou todo o sábado num pé e noutro de agonia.
— Isso é só ansiedade por causa de amanhã ou tem mais alguma coisa?
Tássia olhou para o pai, deitado na rede na varanda. São Luís se espreguiçava para fazer o sol se afogar no horizonte e empurrar a lua cheia para surgir no céu.
— É aniversário de um amigo meu hoje.
— Hum, certo.
— Bom, sabe... É que eu fico nessa agonia se faz bem eu ir ou não...
Abel balançou um pouco a rede.
— Filha, tu só deve explicação a uma pessoa.
— O senhor ou a mamãe. Eu sei.
— Não. A tu mesma. — Ela ficou intrigada. — Sim, Tássia. A única pessoa que vai realmente ser impactada pelas tuas decisões é tu. Somente tu. Eu e a tua mãe, teus amigos, tua família, nós podemos até sofrer porque tínhamos uma expectativa em relação à ti, mas até isso é errado. A expectativa é só nossa. Cada um deve lidar com sua própria expectativa e seus próprios incômodos e deixar o outro trilhar seu caminho como melhor entender. Tu não pode viver dependente da opinião dos outros, Tássia.
— Mas é o ENEM!
— Tudo o que tu estudou nos últimos anos vai sumir em uma noite? Tu estudou ou tu só decorou?
— Eu estudei! — A resposta saiu em um tom de indignação.
— Então, pronto. Importa é o que tu faz conscientemente, sem ligar para os dedos apontados. E outra — sentou-se na rede e encarou a filha —, a vida é uma série de escolhas, Tássia. Cada uma com suas consequências, é óbvio. Mas também, cada uma com sua dose de aprendizado e de oportunidade.
Ela mordeu o lábio, pensativa. Olhou para aquele céu que se pintava para o anoitecer. Voltou-se para o pai.
— O senhor pode me levar...
— Nem pensar. Cada escolha, uma consequência, Tássia. Hoje eu já combinei de sair com tua mãe.
— Pra onde?
— Vamos comer uma pizza lá na Litorânea, passear pelo Espigão Costeiro e, talvez, pegar um cinema.
— Na véspera do meu ENEM?
— Pois é, filha. Cada um com suas escolhas. Viu só?
Tássia sorriu e levantou-se para ir se arrumar. Mas foi interrompida por uma pergunta de Abel.
— É o menino daquele dia?
— Como... Como o senhor sabe?
— Ora, se fosse o Fernando ou o Hilton, tu logo diria, né?
Tássia prendeu a respiração.
— É, sim. É ele. Mas dessa vez eu prometo chegar cedo e...
— Tássia, sem promessas de novo, por favor. A escolha é tua.
Ela concordou e correu para o quarto. No corredor, encontrou dona Selma, que escutara a conversa. A mãe sorriu para a filha e disse ter colocado "uma coisa" dentro da bolsa dela. Tássia estranhou, mas não perguntou o que era.
Lá fora, na varanda, o pai olhou para a natureza e sentiu-se em paz. Não era fácil, mas sabia que havia chegado a hora de soltar certas rédeas e deixar a filha trilhar o próprio caminho. Dezessete anos depois, era hora de saber quais resultados teria tudo o que haviam ensinado à garota até ali.
"Que Deus te abençoe, filha. Que Deus te abençoe..."
***
[Como disse seu Abel, "cada um com suas escolhas". Tássia parece ter despertado para a necessidade de viver de peito aberto, ciente das consequências de suas escolhas e de como elas terão influência no futuro apenas se ela permitir que isso aconteça. E aí, você iria para o Centro Histórico, à noite, na véspera do ENEM?]
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