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22. CÉU EM QUEDA

SÃO LUÍS É UMA CIDADE COM PROBLEMAS GRAVES DE DEMOCRACIA CLIMÁTICA. A situação é tão peculiar que muitas das vezes acontece de, em um mesmo bairro, chover em uma rua e na rua vizinha não. A rotina de sair de casa com chuva, chegar a um lugar com o sol a pino e, metros adiante, encarar um paredão de tempestade era bem conhecida dos habitantes. Seria algo normal se a cidade fosse grande, como São Paulo ou Rio de Janeiro. Porém, por ser uma ilha mediana, essa característica fazia a capital ficar ainda mais diferenciada.

Tássia acordou com o sol no rosto. Era o anúncio de um sábado de céu bonito, clima tropical e brisa fresca. Assim que acordou, mandou mensagem para os amigos perguntando se estava tudo de pé para o encontro na Biblioteca dali a algumas horas. Todos confirmaram. Todos menos Breno. Na madrugada, ele havia publicado uma foto no Castelo do Rock, casa de shows no Centro Histórico. Para o quarteto não foi surpresa e, sem remorsos, se aprontaram para o grupo de estudos.

Quando saiu do quarto, a garota vestia uma bermuda jeans pouco acima do joelho, camiseta, chinelos e um boné. Foi dona Selma olhar para discordar da escolha.

— Tu vai assim?

— Sim, ora essa! Num calor desses, pegando ônibus e ainda de máscara... Eu preciso respirar. E, depois do estudo, a gente tá combinando de almoçar lá no Centro Histórico.

— Com essa chuva que tá vindo?

Tássia olhou pelo basculante da cozinha.

— Chover? Onde?

— Tássia, me escuta. Tua avó mesma já dizia que aqui em São Luís até São Pedro mente. Procura é levar teu guarda-chuva.

— Ah, não! Já tô levando as apostilas e ainda vou andar com um trambolho desse tamanho?

— Mas vocês não tão indo pra uma biblioteca, gente de Deus?

— Sim, mãe. E a senhora já viu biblioteca pública ter tudo o que cai no ENEM? A gente precisa se virar como pode. A Benedito Leite é grande, mas não é garantia ter o que a gente realmente precisa.

— É, faz sentido — bebericou o café e espiou a filha. — O Patrick vai?

— Ai, de novo esse assunto?

Desde que contara para a mãe que o namoro havia terminado, dona Selma parecia ter desenvolvido todo um amor especial pelo ex-genro. Se já gostava dele antes, depois que soubera sobre a sexualidade do menino e a barra que passava em casa devido ao fanatismo religioso da mãe, ela virara fã de carteirinha de Patrick. Chegou até a brigar com a filha ao alegar que Tássia "não se deu nem ao trabalho de chamar o coitadinho para morar com eles".

— Mãe, o Patrick tá cuidando da vida dele. E ele mesmo disse que universidade não é prioridade pra ele.

— Eu fico indignada, sinceramente. Ele era um menino de ouro. Sempre te tratou muito bem, muito respeitoso, delicado, sem passar dos limites...

— Ou seja: a senhora está feliz porque o Patrick não transou comigo.

Dona Selma quase se engasgou com um pedaço de pão. Foi preciso Tássia correr para lhe dar um abraço por trás e forçar o estômago a expelir a comida. Quando se recuperaram do susto, a mulher tomou longos goles d'água, esbaforida.

— Que coisa para se dizer, menina! Eu hein...

— É a verdade. E uma verdade bem mentirosa. Nada garante que um homem gay não transe com uma mulher. Quem pensa assim, não sabe nada sobre sexualidade.

— E tu sabe?

A garota ficou sem palavras. Gaguejou.

— Eu... Eu leio bastante.

A mãe balançou a cabeça e saiu da cozinha. Voltou com o guarda-chuva e entregou para Tássia. No hall de entrada do apartamento, porém, a garota deixou o objeto encostado à parede e correu para o elevador debaixo dos gritos de protesto de dona Selma.

***

SÃO PEDRO ESTAVA EMPOLGADO. Ou, talvez, só queria dar uma lição na garota. Como se uma bomba tivesse sido programada pelo santo, foi o ônibus parar no ponto onde Tássia desceu para as nuvens fazerem pilheria, fecharem-se em tons cinzas e o céu despencar. Desesperada para que as apostilas não molhassem, ela correu para a Biblioteca e jogou-se pela recepção.

A funcionária a olhou com censura.

— Um bom estudo começa com respeito pelos livros que lhe darão a oportunidade de conhecer algo a mais.

— Tá chovendo!

A mulher olhou pelos janelões atrás dela como se a informação fosse a coisa mais trivial do mundo.

— Tivesse se programado antes. Pessoas prevenidas não sofrem.

Um trovão fez o prédio histórico tremer para concordar com o discurso lacrador da bibliotecária. Tássia afastou um cacho do cabelo que descia pela testa.

— Desculpe. Eu errei em não ter trazido um guarda-chuva — disse, mais para o céu do que para a senhora ali na sua frente. — Posso entrar para me alimentar de todo o conhecimento disponível aqui?

A mulher deu de ombros. Já estava acostumada a adolescentes assim e ciente do quanto a proximidade do ENEM era capaz de deixar qualquer um naquela idade à flor da pele. Pediu a carteira de identidade da visitante, preencheu uma ficha, fechou a cara quando ela molhou o papel ao assinar seu nome e liberou seu acesso à biblioteca.

Mas, pensou enquanto via Tássia passar pela porta giratória, a menina encharcada era uma lady perto do garoto que ela havia encontrado na escadaria assim que chegara ao trabalho. "Esses jovens...", pensou com um sorriso. E voltou aos seus afazeres.

Entrar naquele ambiente tinha toda uma solenidade, uma aura de misticismo. Seja pelo fato de ser um prédio histórico, seja pela grandiosidade, a Benedito Leite emanava uma sensação de altivez que parecia impor silêncio aos seus frequentadores. Tássia caminhou por entre as mesas vazias do primeiro andar e seguiu para o segundo piso. Ela e os amigos gostavam mais dali, com a chance de sentarem perto de um dos janelões e terem uma visão privilegiada da Praça Deodoro ao redor da biblioteca. Contudo, ao chegar ali, encontrou-o tão vazio quanto o outro andar.

Pegou o celular e abriu o WhatsApp. Raquel, Hilton e Fernando haviam enviado mensagens dizendo que o mundo estava revoltado e que era melhor adiarem o grupo de estudos ou marcarem para o dia seguinte na casa de alguém.

— Você também não viu as mensagens?

O coração de Tássia quase saiu boca afora. De detrás das prateleiras, Breno surgiu feito uma aparição saída de dentro de algum livro. E não era para menos. As roupas estavam amarrotadas, o olhar envolto pelo tom arroxeado de alguém que havia passado a madrugada acordado. Bocejou, esfregou um olho e aproximou-se da colega. Trazia nas mãos o livro "Diário do Viajante Insólito" do Moacyr Scliar.

— Quer me matar de susto?

— Não precisa. Se você não morreu ao se olhar no espelho, não morre mais.

Tássia pensou que era algo muito agressivo e desrespeitoso de se dizer. Quando Breno notou a besteira que havia falado, empurrou a garota para frente de uma janela. Pelo reflexo, era viu o cabelo molhado descer pelas laterais do rosto, a maquiagem feto uma palhaça que passara o dia largada na sarjeta.

— Meu Deus do Céu...

— Não, não — o rapaz se sentou em uma cadeira próxima. — São Pedro do Céu. Mais próximo da humanidade, sabe?

— Não, não sei.

Ela tentou arrumar o cabelo durante minutos. Ao notar que não haveria jeito de ficar apresentável, desistiu. E naquele vazio, não tinha mesmo motivo para ficar "apresentável": apenas os bibliotecários seriam seu público naquela manhã.

As luzes oscilaram quando um raio passeou pelo céu.

— É — ele deu outro bocejo. — Acho que vai ser só a gente mesmo, né?

— Bom, pode ser. Mas eu vou aproveitar pra estudar. Tu... Eu já não sei.

Breno alongou os braços para cima. Então, fechou o livro com toda a calma do mundo, pigarreou e entrecruzou os dedos.

— Vocês têm uma imagem muito da errada sobre mim. O fato de eu não ser tão paranoico como vocês não significa que eu não estude.

— Ah, é? E quando tu estuda?

— Nos meus horários vagos, conforme a necessidade.

Tássia se sentou, descrente.

— No Castelo do Rock?

— Sim. Pode ser.

— Ambiente agradável para se estudar, né?

— Conhecimento vem de onde menos se espera, Tássia. E, diferente do que a maioria pensa, eu não perdi aquela chama que me levou a ser um aluno de destaque naquela época.

— Nem a humildade... — ela zombou.

O colega ergueu a sobrancelha. Puxou uma das apostilas e abriu de forma aleatória. Parou nos exercícios de Química. Pegou o caderno de dentro da mochila, uma caneta e começou a resolver todas as questões em uma velocidade digna dos professores do cursinho. Números e fórmulas escorriam pelos dedos dele sem titubear. Quando terminou, Breno empurrou para que a garota conferisse as respostas.

Ambos sustentaram seus olhares um no outro.

— Confere — ele insistiu.

— Eu não preciso.

— Por quê?

— Porque eu sei que estão certos. Eu fiz esses exercícios ontem.

— Ah, ótimo. Então — tornou a pegar o livro do Moacyr Scliar —, eu tenho razão.

Tássia respirou fundo. Seria uma manhã longa.

*** 

[Molhou aí? Espero que não. Se molhou, aproveite para dançar na poça d'água. Sempre válido. Vamos continuar essa conversa?]

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