
2. CULPAS
TÁSSIA NÃO QUIS DAR ALARME. Pensou em correr porta afora, mas sabia que isso só faria as atenções se voltarem ainda mais em sua direção. Ficou na cadeira. Ao seu lado, Patrick lhe lançava olhares de esguelha, a tensão a cada respirada mais forte da namorada. Em certo momento, tentou pegar na mão dela. Tássia deu-lhe um safanão. A prova de Física agora estava dobrada e guardada no bolso da calça.
O que faria com aquilo, ela ainda não havia decidido. Pensou em queimar, esquecer, picotar e jogar ao vento; fingir que fora um lapso de memória, apenas. Para alguém tão acostumada a aplausos, um vacilo como aquela nota soava quase como o fim do mundo. E o Cavaleiro do Apocalipse estava ali ao seu lado. Não era a Morte, nem a Peste, nem a Guerra e muito menos a Fome.
Era a Jogatina, o quinto Cavaleiro do Apocalipse.
Associar o namorado ao resultado do simulado foi algo automático. Enquanto o professor Clóvis explanava a resolução correta de uma questão que ninguém, a não ser Tássia, conseguira responder, ela viu a mente explodir em cálculos. Se alguém tirasse uma foto sua, veria o próprio meme da Nazaré Tedesco envolta em números, olhar perdido. Fórmulas, equações, conjuntos, probabilidades, tudo passava pela sua cabeça, mas não em prol da Matemática.
Tássia se lembrou do dia em que Patrick inventou de gazear aula do cursinho para assistirem a uma final de um jogo online no shopping.
Lembrou-se de como, sempre que ela programava tardes de estudo na casa dela ou na casa dele, o garoto dava um jeito de jogar alguma coisa.
Lembrou-se da camisa do cursinho, que ela teve de pagar para ele porque Patrick gastara o dinheiro comprando "gemas especiais" de um jogo de luta.
E Tássia se recordou dos próprios equívocos naquela relacionamento. Entre eles, coisas como nunca ter insistido para ele estudar com ela e ter-se deixado levar pelo discurso de "somos jovens e não precisamos ficar nessa paranoia com estudo". Pior ainda, chegara a oferecer beijos e outras coisas em troca de uma simples hora de estudo.
Como Fernando sempre lhe dizia, parecia que ela tomara para si o papel de tutora de Patrick, algo que nem dona Gigi, a sogra dela, fazia.
"Mas ela nem tem cabeça pra isso.", ela tentara justificar na ocasião em que foi confrontada pelo amigo.
"Por quê?", Fernando cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha. Tássia nunca se esquecera disso. "Só porque a mãe dele ficou viúva tu pensa que dona Gigi vai mimar o Patrick, é? Vai deixar ele fazer o que quer?"
"Bom, tem muitas que fazem isso. Pra, sei lá, compensar a ausência do pai. Ainda mais do jeito que morreu, ele nem se despediu, nem viu o corpo, caixão lacrado e..."
Fêfê colocou uma das mãos sobre o ombro de Tássia.
"Mulher, não vai me dizer que tu deixa o Patrick fazer o que bem quer contigo só por pena."
Naquele dia, Tássia não respondeu. Pelo contrário, chegou a ficar duas semanas sem falar com o amigo. Em sua cabeça, ela, tão inteligente, sempre primeira da turma, altas notas, perceberia se estivesse acorrentada a um sentimento que achava tão "besta" e "banal". Agora, contudo, ao pegar peças do quebra-cabeça da vida e remontar sua jornada até ali, era impossível não admitir o óbvio: sim, estava com Patrick por pena.
Coincidência ou não, ele a pediu em namoro um mês depois que o pai morreu. E, diferente das outras vezes, quando outros garotos a pediram em namoro e ficaram sem resposta durante semanas, ela aceitou sem pensar duas vezes.
"Aceitei por pena", concluiu.
Olhou para o lado. Patrick estava com a cabeça abaixada. Quem visse de longe, pensaria que estivesse com os olhos pregados nos estudos, garoto dedicado às anotações da aula. Contudo, com uma pilha de livros à frente do caderno para esconder o que fazia, ele estava em mais um momento de jogatina.
— De novo? — Tássia sussurrou, agressiva.
— Ah, qualé, Tassinha? Clóvis nem tá explicando coisa nova.
— Mas tá explicando questões que todo mundo errou.
Sem desviar a atenção da tela, Patrick sorriu.
— Todo mundo não. Eu não fiz simulado nenhum.
Tássia segurou a vontade de enfiar aquele celular pela goela dele.
— Pois deveria ter feito. Pelo menos, pra saber como anda o teu nível de estudo em Física.
Um menino três fileiras à frente olhou de cara feia para ela e fez um gesto de silêncio. A raiva, contudo, a impediu de perceber que estava prestes a falar alto demais.
— Pra quê? Eu vou fazer Direito. Não preciso de Física.
— Mas no ENEM...
— Vocês dois aí — o professor Clóvis chamou a atenção deles —, eu sei que os pais de vocês é que pagam o cursinho, mas, diferente da escola, aqui é livre para sair, viu? Fiquem à vontade. Agora, atrapalhar os outros alunos é, no mínimo, egoísmo.
Alguns alunos aplaudiram. As duas meninas mais atrás olharam para Tássia com uma expressão de "nós somos superiores a essazinha, professor". Sem saber onde enfiar a cara, Tássia afundou na cadeira. Patrick, porém, não pareceu nem um pouco abalado por aquela chamada de atenção. Continuou a jogar.
O professor voltou ao curso da aula e o silêncio reinou na sala. De vez em quando, só era possível escutar a respiração mais ofegante do garoto quando algum dos seus monstrinhos morria no jogo. De fato, não era algo inédito. O problema é que, naquele dia, naquelas circunstâncias, qualquer faísca saída do namorado seria o início de um incêndio do lado de Tássia.
Uma hora e meia depois, quando o sinal do intervalo tocou, ela foi a primeira a correr porta afora. Precisava respirar, gritar, desabafar, vomitar sua raiva.
— Nota baixa? — Fernando e Hilton se aproximaram dela, sentada debaixo da escada de acesso ao terceiro andar.
— Foi.
— Quanto?
Tássia puxou a dobradura de papel de dentro do bolso e entregou ao casal. Fernando desdobrou a prova. Ao ver a nota, soltou um assobio. Não queria ter feito isso, é claro. Mas foi inevitável. Alguém cuja vida era baseada em notas nove e dez, tirar nota um, era assustador. Equivalia ao Papa chegar à Praça de São Pedro e começar a falar sobre Satanás.
Hilton foi quem resumiu a situação com uma expressão.
— Puta merda!
E foi a deixa para Tássia cair no choro. Fernando se sentou ao lado dela e deu-lhe um abraço.
— Mulher, calma.
— Pois é! — Hilton se sentou do outro lado da colega. — Olha: 01 nada mais é do que um 10 ao contrário.
A garota redobrou a quantidade de lágrimas. Fêfê repreendeu o namorado.
— Hilton, pelo amor de Deus! Por isso que te chamam de Tonto!
— Ué, e num é verdade?
Fernando revirou os olhos e tornou a se dedicar a consolar a amiga.
— Tássia, não é por causa da nota. — A garota negou, cabeça escondida entre os joelhos. — A ficha caiu, né?
— A... culpa... é minha...
— Por quê?
— Porque... porque eu devia... eu devia ter feito ele estudar... exigido que... que a gente só ficasse junto... só se ele... se estudasse comigo...
O queixo de Hilton despencou.
— Mas tu tá te culpando por causa do Patrick?
Tássia chorou mais ainda.
— Tonto!
— O que é agora, chuchu?
— Pelo amor de Deus, criatura! Tu é mais sem noção que surdo em dia de bingo!
Hilton ficou vermelho, mas não de vergonha.
— Ora, mas fala sério! — Ele se ajoelhou diante da colega. — Tássia, esse menino não te merece. A gente sempre te disse isso. Ele pode ser bacana e tudo, mas é um filhinho de papai que não tá nem aí pra ENEM. Ele só vive dizendo que vai fazer faculdade particular. Nem sei o que ele tá fazendo aqui.
Fernando ficou com uma expressão estranha no rosto. O canto dos lábios tremeu. Tássia ergueu a cabeça, olhou para ele e respirou fundo.
— Fui eu.
— Foi tu o quê? — Hilton franziu a testa.
— Fui... Fui eu que convenci o Patrick a vir pro cursinho. — Se a sobrancelhas de Tonto não fossem pregadas na testa, teriam despencado de tanto que se ergueram. — Sabe, eu pensei que ele podia... podia mudar e até gostar e... e começar a me acompanhar. Aí, o namoro faria mais sentido.
Fernando tomou fôlego. Não conseguiu controlar a língua.
— Quando tu me disse que tinha convencido o Patrick a se matricular aqui, eu te avisei que era jogar pérolas aos porcos. — E a língua dele quis trabalhar mais um pouco. — Olha, eu acho que se um namoro começa com um se anulando para deixar o outro tomar conta da relação, tem alguma coisa errada.
Os olhos de Tássia marejaram.
— Ele tava tão... vulnerável...
Hilton pegou na mão dela.
— Sim, a gente lembra. Mas, diante disso, nem eu nem e nem o Fêfê fomos lá namorar com ele pra compensar a dor de perder o pai.
— Nossa, Hilton, que comparação besta.
— Tu entendeu muito bem onde eu quis chegar, chuchu.
— Isso não faz sentido, homem de Deus! O Patrick fica órfão de pai e vai atrás de um namorado? Tu comeu cocô, foi?
— Bom, vai saber. Tem gente que muda por causa do choque...
Tássia se ergueu e interrompeu o falatório dos dois.
— Eu já sei o que vou fazer — declarou e olhou ao redor em busca do namorado.
— Eita, vai ter morte!
— Mulher, não faz nada de cabeça quente.
— Eu não tô de cabeça quente, Fernando. Eu tô com a cabeça muito é decidida sobre o que fazer.
Arrumou o cabelo, desamassou a blusa e foi em direção ao banheiro.
— Espera: ela vai cagar?
— Hilton, definitivamente tu precisa aprender a filtrar teus pensamentos.
— Ah, mor, vou esperar é até quando tu for psicólogo. Consulta grátis.
Fernando mostrou a língua para o namorado e sorriu. Por baixo do sorriso, contudo, estava a preocupação com a amiga.
Certas pessoas têm motivações estranhas, coisas que as impulsionam a agir, a sair da inércia. Com Tássia não era diferente. A questão era que, pelo fato de sua motivação vir dos estudos, a garota colocava as notas à frente de tudo, seja os pais, seja os amigos, seja o namoro. Não ficara solteira por tanto tempo à toa. Patrick tinha sido o ponto fora da curva, um desvio. Cinco minutos depois, ao ver Tássia sair do banheiro com o rosto sem marcas de choro, Fernando soube que aquele ponto voltaria aos eixos da curva.
E não sobraria pedra sobre pedra.
Isso, é claro, se o intervalo não tivesse acabado no momento em que ela localizou o namorado e marchou em direção a ele. Hilton espalmou a mão sobre o peito ao ver Tássia parar no meio do corredor enquanto Patrick entrava na sala acompanhado dos companheiros de jogo.
— Menino, quase que vomito o coração pela boca!
— Não é pra tanto. Tássia pode estar com raiva, mas ela nunca foi de fazer barraco. Ainda mais em público.
Fernando se levantou e Hilton o acompanhou.
— Tu tá preparado pro que vem pro teu lado, chuchu? Quando tua amiga terminar com o namorado, ela vai precisar de muito apoio.
— Pior que eu acho que não, sabia?
— Por quê?
— Porque Tássia sempre me disse que namoro não era prioridade pra ela. Eu tenho a impressão de que ela vai ficar é muito, muito bem mesmo. Isso se ela terminar mesmo...
Os dois entraram na sala e viram quando a amiga, cara de decisão, sentou-se em sua cadeira. Patrick veio logo em seguida e começou a falar alguma coisa, mas desistiu ao ver que a namorada não lhe dava ouvidos. Fernando se sentou, preocupado.
— Agora uma coisa eu te digo: o Patrick vai dar trabalho.
— O Patrick? — Hilton deu mais uma olhada para trás. — Ele me parece mais preocupado com os jogos dele do que com esse namoro.
— Eu acho que ele ainda não se tocou que gosta dela.
— Como assim?
Fernando olhou para o namorado e sorriu. Adorava quando tinha a oportunidade de ter com ele o que chamava de "conversas psicológicas". Dizia que era quase um treinamento para o que viria na universidade e depois no mercado de trabalho.
— Eu acho que o Patrick pediu a Tássia em namoro porque pensou que isso faria a dor dele de ter perdido o pai desaparecer.
— Mas ele já tinha pedido antes. Lembra que ela contou pra gente?
— Sim. Mas sempre foi de um jeito meio brincalhão, né? Era mais como se ele dissesse "Ah, a gente já ficou, bora namorar, Tassinha!" — Tonto sorriu da imitação feita pelo namorado. — Mas dessa vez é diferente. Ele pensa que não, mas ele gosta dela de verdade.
A professora entrou na sala e a conversa acabou. Antes de afundar de volta nos livros, Fernando olhou para Hilton. Tinha orgulho do que tinham. Ergueu a mão e fez um carinho no cabelo dele. Tivera sorte de ter encontrado alguém tão parecido com ele mesmo, estudioso e, principalmente, disposto ao diálogo. Isso fazia com que fossem a prova de que era possível, sim, conciliar namoro com estudos de alto nível. Só esperava que Tássia, se quisesse, encontrasse alguém assim, companheiro.
Acima disso, que ela não desistisse de ser feliz.
***
[Tássia está em um momento decisivo que ela mesma nunca encarou como devia. Agora, as consequências batem na porta. Muitos segredos estão guardados por aqui. Deixe seu voto e continue conosco. Precisamos desbravar os mistérios do amor juvenil...]
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro