14. O PONTO DE NÃO-RETORNO
UM DOS MAIORES PROBLEMAS DAS REDES SOCIAIS É QUE, APESAR DE MUITOS TEREM FOTOS DE PERFIL COM OS PRÓPRIOS ROSTOS, O AMBIENTE VIRTUAL DÁ ÀS PESSOAS A FALSA SENSAÇÃO DE QUE PODEM FALAR TUDO O QUE LHES VEM À MENTE. E se veem, inclusive, livres para "incrementar" a realidade.
A cena entre Breno e Patrick extrapolou os limites do cursinho Geração. No mesmo dia, à noite, a notícia era a de que Patrick conversava com os colegas sobre "os direitos da comunidade gay" quando Breno, ao escutar a conversa, chegou perto do ex-namorado e falou como ele era "covarde e medroso por nunca ter assumido o amor entre eles". Em outras versão, já no dia seguinte, uma menina, que se dizia "testemunha ocular do fato", afirmava que Patrick havia encontrado o ex-namorado no banheiro e tinha "feito um carinho no rosto de Breno e pedido perdão".
Tássia sabia que a tal garota nem tinha ido à aula naquele dia.
Os mais criativos, pelo menos, aproveitaram a oportunidade para exercerem seus dotes literários. Em três dias, no que Fernando chamou de "rompante de criatividade LGBTQIA+", surgiram fan fics sobre o mais novo casal. Em uma delas, publicada no Wattpad, a autora tinha feito descrições sexuais tão fortes (e com direito a ilustrações realistas dos garotos) que levou os leitores que frequentavam o cursinho a passarem dias sem coragem de olhar na cara de Breno e de Patrick. Em outra plataforma já havia um romance com cinco capítulos publicados.
— E capítulos gigantes! — Patrick reclamou. — As pessoas não têm medo de um processo?
Sim, em tese caberia um processo por difamação, uso indevido de imagem, algo assim. Isso se os dois citados estivessem de fato dispostos a encarar a briga, algo que nenhum deles demonstrava.
Patrick, apesar de reclamar para seus novos amigos sobre o quanto aquilo era constrangedor e do medo que tinha que a história chegasse aos ouvidos da mãe ou de alguém da igreja, parecia travado na demonstração desse dito incômodo. Raquel dizia que era uma estratégia correta de ignorar o assunto e "deixar morrer". Hilton afirmava ser "medo de falar alguma coisa e as pessoas descobrirem que há um fundo de verdade no que até então era só boato".
Entre a sensatez e a especulação, a maioria das pessoas ficou com a teoria de Ton Ton.
Breno, pelo seu lado, revelara uma máscara bem diferente da que vinha apresentando até o surgimento daquele fato. Deixando de lado sua forma de agir voltada para "se manter quieto e parecer Invisível", o novato começou a alimentar os boatos. E, como muitos notaram, fazia isso com um prazer típico daqueles que esperam há anos por uma oportunidade de vingança.
Em uma dessas vezes, quando um garoto se aproximou dele para perguntar algo sobre uma questão da aula, Breno fez questão de aumentar o tom de voz. O espetáculo todo foi para dizer que "não sei, sabe. Tudo o que tem acontecido, essas coisas do coração, têm feito minha atenção variar bastante." E lançou um olhar tão amoroso na direção de Patrick que estimulou o surgimento de muitos capítulos das fan fics.
O ponto de não-retorno, porém, só veio alguns dias depois.
Tássia lavava a louça do almoço de sábado, perdida na peculiar arte de esfregar pratos enquanto dançava ao som do reggae da Tribo de Jah, quando a mãe entrou na cozinha, esbaforida.
— Tássia, tu já viu isso aqui?
A garota pensou que seria mais um meme enviado em algum grupo de WhatsApp ou alguma fake news que ela teria de passar o resto da tarde gastando saliva para desmentir. Enxugou as mãos no avental e, sorrindo, olhou para a tela do celular nas mãos de dona Selma.
O sorriso evaporou.
Era uma foto. Na imagem, um Breno claramente bêbado abraçava uma garota com o braço direito enquanto puxava Patrick com o braço esquerdo e lhe dava um beijo na bochecha, quase na boca. Ao lado de Patrick, um outro rapaz sorria e aplaudia a cena.
Em um primeiro momento, Tássia não viu nada demais.
— Sim, mãe, Pessoas se abraçando. Que bom. Homens também se abraçam, sabia? Tem países onde até se cumprimentam com beijos nas bochechas.
— Tássia, eu sei. Pelo amor de Deus. A questão não é o que teu namorado fazia ou deixava de fazer. O problema é a legenda.
Só então, a garota atentou para uma segunda imagem na sequência da publicação. Era um mini texto.
"Para quem acha que não tem fogo onde tem fumaça, taí a prova. Breno Ceres e Patrick Forin não só já se conheciam de tempos como eram íntimos. E até acho que, vai saber, o Patrick usa a namorada atual só pra se fingir de hétero. Quem conhece o passado do cara sabe que tem muita coisa escondida. Fica um recadinho pra namorada dele: o Patrick só tá te usando, como sempre faz. Foge!"
Tássia empalideceu.
— Isso tá onde?
— Foi o pai da Raquel quem me enviou agora a pouco. Ele disse que já está em tudo que é grupo do cursinho e até no Twitter — Dona Selma estava tensa. — Tu acha que as pessoas sabem que é tu a tal namorada dele?
— Mãe, a senhora tá preocupada é com isso?
— Ora, sim! É uma humilhação pública.
— Humilhação e boato pra cima do Patrick, né, mãe? Ele é que é a vítima aqui. Isso dá polícia, até.
— Tá, tá... Mas quem será que divulgou essa foto? Parece coisa antiga... O Patrick tá bem mais novo aqui...
— Eu desconfio de alguém — e olhou para o rosto de Breno.
Na segunda-feira, foi pôr os pés no cursinho para, feito uma leoa, Tássia partir pra cima de Breno quando o viu parado no bebedouro. Aproximou-se e deu um empurrão no peito do atleta. Algumas pessoas assobiaram, outras puxaram os celulares e começaram a filmar.
— Tu é idiota, é?
— Q-Quê? — Ele conseguiu equilibrar o copo nas mãos e, por segurança, deixou-o na bancada da recepção. Por mais garantia ainda, Cíntia, a vigia, levou o copo para longe das mãos de Tássia. — Você chega do nada e me acusa assim? Tá doida?
— Ah, que inocência, né? Tu faz as coisas e não assume, é?
— Você tá falando de quê?
Tássia puxou o celular e mostrou a foto. Breno abriu e fechou a boca diversas vezes. Parecia tão alarmado quanto todos os outros.
— Eu... Eu não sei de onde saiu essa foto!
— Dos teus arquivos, será?
— Me diz pra que eu ia fazer isso!
— Pra provocar o Patrick, será? Qual o teu problema com ele, afinal?
Breno não exibiu o ar de sarcasmo com o qual vinha lidando com a situação. Pelo contrário, estava preocupado, tenso. Olhou para as pessoas que tinham feito um semicírculo em torno deles dois e deu um passo para ficar mais perto de Tássia.
— A gente pode conversar sem plateia? — Sussurrou. Tássia quis dizer algo, mas o garoto insistiu. — Por favor, Tássia. É sério
Ela cedeu e os dois foram para a velha conhecida biblioteca. Algumas pessoas reclamaram do fim do que seria um barraco promissor. Cíntia os dispensou.
***
BRENO DEIXOU A GAROTA ENTRAR PRIMEIRO E, AO PASSAR, FECHOU A PORTA. O eco do clique indicou a seriedade do que viria pela frente. De fato, o rapaz estava com feições franzidas e mordia o lábio inferior sem conseguir disfarçar a tensão. Tássia pensou se deveria se sentar ou não. Porém, ao concluir que aquela não tinha nada para ser uma conversa cordial entre amigos, preferiu permanecer de pé. Virou-se para o outro e cruzou os braços.
— Sem plateia. Agora, fala.
— Olha, não fui eu quem publicou essa foto, tá bom?
— Breno, depois desses dias todos provocando o Patrick, tu é a única pessoa que fica como suspeito. Se não foi tu, foi quem?
Diferente da garota, Breno optou por sentar. Puxou uma cadeira próxima e deixou-se cair ali. Naquele instante, assim como aconteceu ao ver o namorado de longe, ela viu alguém cansado, tão mortal como qualquer outra pessoa daquele cursinho.
— Eu prefiro não entrar em muitos detalhes sobre a vida de ninguém — olhou para a companheira de conversa e enfatizou: — Você entende isso?
— Sim, eu entendo. Ok. É sobre... sobre o Patrick que tu fala?
— É. Tu é a namorada dele, então, ele é que deve decidir o que deve te contar ou deixar de contar.
Ela balançou a cabeça.
— Justo.
— Pois é. Eu tenho quase certeza de que quem divulgou essa foto na internet foi o Hélio, o outro cara que aparece na foto com a gente.
— E quem é esse Hélio?
— É um amigo comum a nós dois. Ele sempre saia com a gente e... E eles, bem, brigaram feio há algum tempo. Creio que a mágoa não foi superada.
Tássia assentiu, devagar. Refletia sobre as peças daquele quebra-cabeça e tentava fazer alguns encaixes. Ia fazer a pergunta seguinte, mas parou por um instante ao se dar conta de uma obviedade que, por mais óbvia que parecesse, nunca tinha lhe passado pela mente: ela não conhecia praticamente nada sobre a vida de Patrick.
Sentou-se, esquecida de onde estava. Sim, conhecia o garoto há anos, pode-se dizer que desde o segundo ano do ensino fundamental. Mesmo assim, ali naquele momento, à menção da frase "ele sempre saia com a gente", foi como olhar para a tela em branco que era Patrick. Dessa vez, não poderia fugir dos pensamentos repetitivos que tentavam preencher aquele vazio com mentiras. A verdade era apenas uma: ela não o conhecia. Ponto.
Além do contato que tinham na escola e da posterior relação mais próxima devido ao namoro e ao luto, Tássia não sabia o que Patrick fazia quando não estava jogando ou no cinema. Não sabia o que gostava de comer, quais músicas escutava e nada sobre seus medos e esperanças. E agora que se forçava a lembrar dos anos anteriores, acabara de chegar à conclusão de que ele fazia questão de manter a pose de "nerd viciado em videogame". Assim, pensou, o preconceito das pessoas acabou se tornando um muro que impedia que ele recebesse muita atenção.
O que Patrick Forin fazia por trás desse muro, quem conhecia, quais lugares eram esse aonde ele tanto ia com Breno, ela nunca soube – e nem conseguia imaginar.
— Tudo bem contigo? Você ficou calada de repente esse tempo todo.
— Er... Há quanto tempo tu conhece o Patrick?
Breno não titubeou na resposta.
— Há uns sete, oito anos. Quando meus pais vieram pro Maranhão e me matricularam na escola onde eu estudava, eu logo entrei no time de vôlei. Mas como a gente precisava treinar e o colégio tinha só uma quadra disponível, eles fizeram parceria com esse clube de esportes que ficava perto da minha casa. E o Patrick fazia natação no mesmo lugar.
— Certo — "Pelo menos, da natação, eu sei", disse para si mesma. — Aí, vocês ficaram amigos?
— Na verdade, não. O Patrick já era amigo do Hélio e da irmã dele, aquela que aparece na foto. A Élida era do time de vôlei da escola dela e também treinava lá no clube. Eu fiquei amigo dela e do irmão e o Patrick meio que veio como bônus — Breno olhou para cima, pensativo. — Pra te dizer a verdade, agora que eu lembro, a gente nunca se deu muito bem desde essa época.
— Por quê?
— Ah, sei lá. Ele fazia umas besteiras, umas atitudes que eu não concordava e... — titubeou. Tássia se surpreendeu ao ver o rosto dele ficar vermelho. — Bom, a gente não se bicava. É isso.
— E vocês mantiveram contato até quando?
— Até um pouco antes da pandemia começar. Eu tive uns... problemas e saí do clube, me afastei e perdi contato com todo mundo.
Antes que Tássia pudesse refrear a intenção de dar uma guinada no assunto e fugir do foco daquela conversa, a pergunta jorrou boca afora.
— Foi por causa desse problema que tu desistiu de entrar na faculdade?
— Eu não... Eu não desisti de entrar na faculdade! — A resposta saiu alta e Breno notou o tom agressivo. — Desculpa. Desculpa. É que, sabe, é cansativo ter de repetir sempre as mesmas coisas. Pessoal só fala disso.
Tássia sentiu a garganta secar.
— Sim, eu... eu sei. Desculpa também.
Ficou um silêncio constrangedor. Breno suspirou, a garota analisou a situação das unhas, angustiada pela sua língua grande. Foram cinco minutos sem que ninguém ousasse nem dizer que a conversa estava encerrada. Até que ela criou coragem para voltar ao motivo de eles dois estarem naquela biblioteca.
— Por que o Hélio faria uma coisa dessas? Que eu saiba, isso pode dar uma treta absurda se o Patrick quiser, sei lá, processar ele.
— O Patrick não vai fazer isso, Tássia. E, pelo que eu lembro do Hélio, ele sabe disso.
— Por quê? — Tássia insistiu na pergunta.
— Porque o teu namorado, não sei se tu já notou, gosta de se esconder das pessoas.
A garota sorriu.
— Se esconder? — Ela usou seu tom mais descrente possível, apesar de o coração ter ficado apertado ao ver que Breno sabia do que ela só tinha percebido há pouco. Contudo, ela não estava disposta a soar como uma péssima namorada. — Que besteira! O Patrick pode ter um jeito complicado, até, mas é bem sociável. Ele não se esconde...
— Tássia, você notou que ele te usava como escudo?
Ela prendeu o fôlego. Engoliu em seco.
— De onde foi que tu tirou isso?
E foi nesse instante que a garota notou que Breno escondia algo muito, muito íntimo; o tipo de coisa que, apesar de estar enterrado por camadas e mais camadas de terra, florescia independente da vontade dele. Quando o novato fechou os olhos em uma clara tentativa de se concentrar para o que quer que viesse em frente, ela sentiu o seu pulso acelerar. Sentou-se na cadeira como se o corpo também já se preparasse para o pior. Um prego parecia ter surgido no encosto. Incômodo.
A atenção dele caiu com tudo sobre ela. Havia ardor ali.
— Pergunta pra ele sobre o Hélio – limitou-se a dizer.
— Por quê? — E antes que Breno falasse alguma coisa, ela jorrou. — Por que tu tá fazendo isso? Qual o teu objetivo em ficar fazendo intriga contra o Patrick? Contra mim?
— Não é intriga, Tássia. Se fosse, eu te garanto, seria muito mais simples.
— Qual o motivo, então? Fala!
Os olhos dele brilharam.
— É só que eu já tô cansado das consequências que as mentiras podem provocar. E... — entristeceu. — E eu já perdi muita coisa por causa das mentiras dos outros.
— Das mentiras dos... Do Patrick?
— Principalmente as dele.
Assentiu e levantou-se. Parou por um instante diante dela, como se não soubesse o que fazer – ou, talvez, por desejar falar mais alguma coisa. Mas desistiu. Tornou a assentir, um jeito preocupado nas expressões faciais, e caminhou para a porta.
Quando Breno saiu da biblioteca, Tássia voltou a respirar.
Precisava conversar com Patrick.
O quanto antes.
***
[Cuidado com boatos. Em um mundo onde todos falam tudo o que vêm à mente (e ainda publicam sem filtro algum), uma vírgula a mais ou a menos pode destruir a vida de alguém. Essa relação do Patrick com o Breno tem muitas arestas... Vamos ver o que Tássia fará - e o que irá descobrir.]
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