Dose número 6
Meus pés estavam morrendo.
A cada minuto.
E eu já imaginava que não teria mais nenhum dedo quando finalmente pudesse arrancar aqueles malditos sapatos de salto.
O fato é que eu não dei a mínima para a nota, escrita em tamanho mínimo logo abaixo do anúncio. A exigência do traje formal foi um dos inúmeros motivos que me fizeram questionar se aquele emprego não era furada, logo pela manhã, quando decidi novamente dar uma bisbilhotada no jornal. Tudo bem, eu não iria aparecer de chinelos e traje de banho, mas eram tantos requisitos que me senti indo cozinhar para o próprio presidente da república.
Eu encarei o retrovisor descontente e levantei uma das sobrancelhas para o taxista que não tirava os olhos do meu rosto, coberto pelo sol da manhã de sábado.
A dor era tanta que eu estava de cara feia durante toda a viagem.
— Me desculpe, mas a senhorita está passando mal?
Eu xinguei, desistindo do silêncio, dando lugar à ansiedade.
— Sim, são esses malditos sapatos — Ele me encarou por cima dos óculos. — Me obrigaram a usar, tenho uma entrevista de emprego e esse era um dos requisitos, acredita?
Apoiei os cotovelos no banco da frente enquanto esperava por uma resposta que não veio. O homem apertou fortemente o volante com as mãos e continuou encarando o engarrafamento. Mas era difícil me manter calada, principalmente quando eu estava nervosa.
— Fala sério, quem exige isso de uma cozinheira particular? O que estão achando? Que vou cozinhar todos os finais de semana de salto? É a família real e ninguém me avisou?
O enfeite extravagante do retrovisor me chamou atenção. Mesmo com o carro parado, a vaquinha colorida e gigante balançava demasiadamente enquanto segurava uma plaquinha escrita "seja bem vindo" nas patas.
— Se você não se sente bem, porque aceitou a entrevista?
Eu apertei os olhos para ele, debochada.
— Muito bom Sherlock, acredite ou não, eu preciso desse emprego. Na verdade eu já tenho um emprego, mas esse não me paga tão bem, por enquanto — sorri, deslumbrada. — Sabe, estou quase publicando um livro.
Dei um tapinha de leve em seu braço no mesmo momento que senti um sorriso enorme preencher o meu rosto, mas o homem de um metro e oitenta estava tão mau humorado que ele ficou ali, me observando pela visão periférica com aquele olhar assassino.
Procurando por algo no porta luvas, ele sacudiu as mãos inchadas lá dentro e deixou cair metade dos objetos no chão, quando um caminhão de quase dois metros de altura, parado em nossa frente, ressoou uma buzina extravagante para sabe-se lá quem. Na traseira, a frase “só Deus pode me julgar” apresentava um erro grotesco de ortografia onde o s de Deus foi brutalmente assassinado e substituído pelo z. Voltei a atenção para o celular e encarei as horas, sentindo o meu coração arder dentro do peito.
— Estou 10 minutos atrasada. Não tem um jeito de ir mais depressa?
— Só se eu abrir um buraco no chão — Ele lançou a cabeça em direção ao engarrafamento e acendeu um cigarro, irritado.
— Droga!
— Você pode esperar e perder a grana, ou ir à pé e perder o pé. Qual você prefere?
— É sério que está me perguntando isso?
— Me desculpe, mas estamos perto do destino. Se você quiser esperar, tudo bem. Mas se quiser ir andando…
Eu inspirei o ar relutante enquanto tentava me decidir. Lá na frente, os carros de polícia tentavam organizar uma fila única para a passagem da ambulância enquanto as buzinas cortavam a rodovia e se estendiam em uma fila sem fim. Não dava pra esperar mais e perder a única oportunidade de emprego que me apareceu depois de semanas. Abaixei os olhos para a minha bolsa e retirei o suficiente para pagar a viagem. Minhas mãos foram de encontro ao taxista quando escutei a porta se abrindo do meu lado.
Mas que porcaria é essa?
— Poderia por favor me levar até a rua sete de abril?
Parei incrédula e me encolhi no banco traseiro tentando entender o que meu chefe estava fazendo ali. Instintivamente fui jogada para o outro lado do banco enquanto o motorista lhe encarava confuso. Nem nos meus piores pesadelos eu fui tão perseguida por alguém como eu estava sendo por aquele homem. Como se já não bastasse ter que aturá-lo durante o expediente, agora eu tinha que engolir as coincidências do destino e suportar a sua presença até nos finais de semana.
Eu recolhi a mão com o dinheiro, empinei o nariz e o encarei cruzando os braços.
Só pode ser brincadeira!
— Você não acha que errou de carro não? Não viu que este já está sendo usado?
Ele me lançou um olhar surpreso depois de finalmente notar a minha presença.
— E você, tá fazendo o que aqui? — perguntou, desconfiado. — Tá me espionando?
— Não foi pra te ver e não tenho interesse em dividir a viagem.
— Não, mas você ia sair, eu vi você pagando a viagem.
Arrumei a postura tentando parecer mais alta.
— Não, eu não ia.
— Será que vocês podem, por favor, se decidir? Eu não tenho o dia todo e os carros estão começando a andar. Não quero ser xingado.
Ignorando totalmente os fatos, Marcos jogou o seu corpo contra o assento e colocou o cinto de segurança, como se aquele pedaço de tecido de fato fizesse alguma diferença. Pra começo de conversa se ele queria segurança ele nem deveria ter entrado dentro daquele bendito carro! Comigo dentro!
— Me leve por favor.
Estreitei os olhos para aquele rosto perfeitamente desenhado. Não surta, respira, não surtaaaaa…, disse a mim mesma, repetidas vezes, como um mantra, enquanto imaginava minhas mãos ao redor do seu pescoço — um desejo que eu vinha reprimindo desde o primeiro dia que o conheci.
Um pequeno bico se formou em meus lábios no momento em que ele me encarou, com aquele sorriso indecente no canto da sua boca. Eu estava a ponto de explodir, feito uma latinha de refrigerante.
— O que foi?— perguntou. Torci a cara, e o encarei como se oito tentáculos estivessem saindo dos seus ouvidos. — Podemos ir por favor? Eu pago o dobro que ela vai te pagar. Estou atrasado para um compromisso — falou ao taxista. — Vamos Isabela, escute a voz da razão, no caso o seu chefe.
— Não! Que saia você!
O homem me observou por cima dos ombros, soltando aquela fumaça branca em minha direção. De olho no parabrisa, ele girou o corpo de frente para mim, tragando novamente o cigarro.
— Filha, sinto muito, mas você já estava descendo e eu preciso do dinheiro, então se você não se importar…
Filho da mãe.
Isso era muito injusto. Porque raios todo mundo estava contra mim e a favor dele? Quando foi que fui condenada a cruzar o seu caminho só pra ver aquele sorriso devasso em seu rosto todas as vezes que resolvia transformar a minha vida num inferno? Porque ele tinha que ser daquele jeito? Tão…tão…insuportavelmente metido!
Dono de uma beleza impecável, Marcos era a escória da sociedade, com todo aquele senso de humor e aquela pompa de dono do mundo só porque sabia que era bonito. Como se isso tivesse alguma importância! Tá legal, tinha importância, mas ele não precisava saber disso!
Ele torceu o nariz e limpou a garganta enquanto se ajeitava no banco do carona, até aquele momento utilizado e esquentado por mim.
Puxei minha bolsa com força e entreguei o dinheiro ao motorista.
— Espero que você chegue bem atrasado.
Ele piscou os olhos para mim, com toda aquela rebeldia e deboche, e acenou com a mão.
Descarado!
Longos 20 minutos haviam se passado desde o início daquela inútil discussão, o que significava mais trinta minutos de atraso. Como se eu fosse uma maratonista correndo pelos 15 quilômetros do são silvestre, cheguei ao endereço anestesiada, o corpo dormente e com medo de ser desclassificada da entrevista.
Não foi difícil encontrar a casa. Apesar de ser um pouco afastada do centro, ela era imponente, com um jardim que parecia cinematográfico e com cores que chamavam a atenção. Sua aparência era semelhante à de um chalé, com detalhes coloniais, mas com uma estrutura infinitamente maior. Enfiada num terninho — comprado no camelô — passei os olhos pela construção e comecei a contar quantos cômodos caberiam ali dentro. Um total de oitos quartos, certeza. Uma suíte e três banheiros. Duas salas e-e…abaixei o olhar para a senhora paralisada na porta, sibilando xingamentos baixinhos para si mesma. A estatura baixa, os cabelos brancos presos em um coque e as roupas, lhe davam a impressão de ter saído direto de um desenho animado.
Observei a sua expressão irritada se tornar mais branda, assim que me viu correndo em sua direção.
— Atrasos não são permitidos e se você continuar a ter esse comportamento, sugiro que dê meia volta — Ela encarou a prancheta e ajeitou os óculos.— Isabela, certo?
Concordei lhe estendendo a mão.
— Isso, desculpe o atraso, tive um imprevisto.
— Não importa, só espero que ele não se repita. Me chamo Ester — respondeu, esmagando os meus dedos com os 20 anéis em sua mão direita. — É a quarta cozinheira em duas semanas e eu não quero ter que me deslocar novamente para esse tipo de serviço. Venha comigo.
Ester deixou suas anotações de lado e desfilou para dentro da casa enquanto repetia um discurso decorado sobre sua função. Ela trabalhava como governanta do Sr. Pinciconini e costumava ser a responsável por cuidar da demissão e admissão dos funcionários.
— O que aconteceu com as outras? — perguntei, distraída.
Ela voltou o seu rosto para mim, desconcertada pela intromissão e me lançou um olhar no estilo “isso não é da sua conta”.
— Você não vai querer saber — respondeu, da forma mais educada que conseguiu. — Bom, é necessário que você se atente para as regras, elas são muito importantes. O senhor Pinciconini é um homem muito ocupado e meticuloso e se você ao menos leu as observações do anúncio, deve ter percebido que irá trabalhar somente nos finais de semana. Esta casa só é utilizada aos sábados e domingos e é por isso que seu horário será reduzido.
— Ele não mora na cidade?— perguntei, os olhos presos na decoração.
— Mora, mas essa casa tem um valor sentimental pra ele e como ele não quis se desfazer dela, ele costuma vir nos finais de semana pra trabalhar. É mais afastado da cidade, é tranquila, então ele faz questão de manter os funcionários — Ela me encarou. — Ele não gosta de intromissões, de bagunça e muito menos de ser importunado. Aconselho a diminuir as perguntas e focar no seu trabalho caso queira continuar.
O olhar agressivo de Ester não combinava em nada com a sua aparência e essa peculiaridade me provocava uma vontade de rir todas as vezes que ela fazia alguma reclamação. Embora o meu humor estivesse ácido naquele dia, fui obrigada a deixar de lado o meu deboche e ignorar as alfinetadas, já que a oportunidade era boa demais para ser desperdiçada. Eu a segui pelo corredor estreito e observei a decoração incrivelmente brega para uma casa tão bonita. Algumas fotografias antigas se estendiam pelas paredes. Imagens em preto e branco, pinturas abstratas e um quadro, me chamaram a atenção. Em uma delas, um idoso de no máximo 70 anos segurava uma criança no colo enquanto duas garotinhas corriam em direção à câmera. Confesso que fiquei tentada a perguntar se o sr. Pinciconini tinha filhos, mas resolvi sufocar a minha curiosidade.
— E aqui está a cozinha.
Segui Ester para dentro do cômodo e encostei meu corpo contra o balcão vazio. O espaço era amplo, arejado e muito bem iluminado, totalmente diferente da decoração do restante da casa.
— E por favor, em hipótese nenhuma mexa nas coisas do senhor Pinciconini! — disse, com um tom especial na voz. — Em nada! Se comprometa a ficar somente na cozinha, fazendo o seu trabalho e tudo ficará bem. Entendeu?
— Entendi, mas e se eu tiver algum problema e precisar...
— Você não vai! Jamais! — respondeu. — Qualquer coisa que acontecer, você deve imediatamente me ligar. E mais uma coisa. Seu horário de trabalho será restrito, como ele não gosta de ser incomodado, eu preferi arrumar os horários dos funcionários de forma que não o encontrem em casa. Então não faça horas extras nem nada do tipo que não vamos lhe pagar mais. Essa semana você ficará somente no sábado. Caso seja contratada, você terá um quarto onde poderá se estabelecer nos finais de semana. Se restrinja a ficar no quarto quando não estiver no seu horário de trabalho, ou pelo menos evite encontros indesejáveis.
Ester continuou o seu discurso sobre os meus horários e funções até que estivesse convencida de que eu havia entendido, o que estimulou ainda mais a minha curiosidade a respeito da história da casa e me fez criar diversas teorias dignas de um livro de romance.
— Bom, agora eu preciso ir. Faça a sua mágica e boa sorte! Qualquer dúvida, olhe a lista de regras que deixei em cima do balcão — falou, antes de sair pela porta lateral.
Apesar de gigante e bem equipada, a cozinha do Sr. Pinciconini parecia um lugar extremamente inabitável. Não havia nada fora do lugar, nenhuma poeirinha sobre o balcão e nenhuma baguncinha que eu chamaria de normal. Mas apesar da organização extrema ter me incomodado, minha atenção estava em outro local, que eu sabia que era a melhor parte daquele emprego. Ayla sempre me disse que as melhores geladeiras se encontravam nas maiores casas e minhas mãos não esperaram nem um segundo para tocá-la.
Assim que abri, me deparei com um pequeno bilhete colado junto à jarra de suco.
"Favor não consumir os alimentos, grata. Ass: Ester".
Avarento!
Rapidamente, com um chute, me livrei dos sapatos apertados, fiz um coque e coloquei uma música, ansiosa para cozinhar a minha primeira receita de sucesso.
Minhas mãos alcançaram uma das infinitas panelas que encontrei e comecei a picar os ingredientes do que seria a minha nova invenção culinária. Apesar de ser um desastre na cozinha, eu gostava de inventar as coisas, mesmo quando o resultado não ficava bom. Depois de me aventurar pela cozinha do nosso apartamento, Ayla nunca mais deixou que eu me aproximasse do fogão e eu tinha a certeza de que ela sempre jogava a comida que eu fazia pro gato do vizinho.
O gato morreu.
E agora eu entendia o motivo.
Eu mexi meu quadril ao som da música, apressada com o tempo. Eu tinha apenas 2 horas para me desesperar com a receita, preparar a comida, arrumar a mesa e ir embora sem ser vista pelo dono da casa.
E obviamente ir embora sem ter botado fogo na casa.
Eu coloquei os ingredientes na panela e deixei que cozinhassem. Eles dariam um ótimo molho para o frango e com sorte, o Sr. Pinciconini não me incluiria na lista das suas ex-funcionárias. Eu li e reli repetidas vezes aquele caderno de receitas enquanto sentia o cheiro agradável que saia da panela e imaginava o destino que aquele salário teria. Obviamente grande parte do dinheiro seria direcionado ao aluguel, já que Ayla estava cobrindo boa parte das contas. O que eu recebia na editora mal dava pra pagar o condomínio, internet e luz e a maior parte dos meses, era ela quem estava segurando as pontas. Raphael, o dono do apartamento, era como uma pedra no sapato e acampava na frente da nossa porta todas as vezes que atrasávamos o aluguel. Eu não o julgava, ainda mais sabendo que o grande culpado dessa história era o Marcos, que insistia em ignorar os meus talentos. Eu retirei alguns temperos do armário, posicionando-os ao lado do prato e aproveitei o jardim gigantesco para colher algumas flores para a mesma. Minha esperança era que o ambiente decorado e colorido fosse o suficiente para distraí-lo caso eu tivesse fracassado.
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