Dose número 34
MARCOS
Eu devo ter jogado pedra na cruz.
Pedra não, uma pedreira inteira.
Na cruz, na igreja e no papa.
Era o único motivo pra eu estar me afogando naquela maré de azar. Não terminei a bienal com uma conta bancária recheada, com um sorriso imenso no rosto e metendo a mão naquela bufunfa, feito um garoto riquinho mimado. Não. Terminei pobre e puto.
Endividado até o último fio de cabelo.
Pra começar, uma palestra. Eu, um microfone e um bando de repórteres famintos por uma declaração que eu não estava nem um pouco a fim de dar. Depois de uma semana vivendo literalmente no inferno, enfrentando uma equipe enfurecida e convivendo com um jacaré abatido — Carmem conseguia assustar até as crianças com aquele mau humor — imaginei que o convite para aquele show de horrores ainda teria a chance de dar certo. Talvez eles estivessem mesmo a fim de saber mais sobre “O papel das editoras na publicação de autores nacionais”.
E talvez, sendo bem otimista, eu ainda tivesse a chance de atrair um pouco de atenção para os nossos livros e subir as vendas.
Otimismo que não durou nem dois minutos.
E depois de quase duas horas sendo bombardeado pelas perguntas — todas sobre Isabela — vi o motivo de todas as minhas noites de sono perdidas, cortar a sala e ir em direção ao palco. Depois de nove dias sem vê-la.
Como ela se atreve a chegar naquela sala sem ser convidada? Com toda aquela pose de dona de si, aquelas bochechas rosadas que eu tanto queria tocar. Como ela se atreve a roubar a minha atenção, mesmo depois de tudo o que ela me disse e atrair os meus olhos para aquela beleza que eu jurei nunca mais admirar? Aquele rosto que eu tanto queria tocar...e aquela boca…tão desenhada…tão…
Merda.
Pronto, nada seria capaz de desviar a minha atenção. Era como se naquela sala barulhenta fossemos somente eu e ela. Sem ruídos, sem Amanda, sem repórteres. Somente Isabela e aquela sua mania irritante de demonstrar que ela sempre tinha razão. E para a surpresa de todos naquela sala, ela subiu ao palco e mostrou que ela novamente, tinha razão.
Você é uma besta, Marcos.
As duras palavras apareceram em minha mente repetidas vezes antes de ser levado pelas sensações.
Primeiro o orgulho. Ferido, doía o meu peito. Como raios eu fui tão idiota a ponto de acreditar que ela tinha um caso com o Bruno?
Depois, a raiva. Correndo veloz pela minha corrente sanguínea e tomando conta da minha visão, a ponto de não conseguir enxergar nada além do rosto hipócrita da Amanda. Sempre soube que ela era uma medíocre da pior espécie, aquele ar de superioridade marcado em seu olhar torto e em sua forma de andar, como se nada no mundo fosse mais importante do que ela. E olhando para o seu semblante contorcido no chão, comecei a refletir sobre como fui um imbecil durante todo esse tempo, por ter me relacionado com ela e por a ter deixado se enfiar nos negócios da editora.
Astuta como somente ela sabia ser, Amanda estava sempre ali à espreita, esperando o momento certo de atacar. Mas eu não soube enxergar. E isso era o que mais me doía.
Em questão de segundos, tudo virou um grande borrão. Eu já nem me importava mais com aquela bomba de perguntas em minha direção e me concentrei na única pessoa daquela sala, capaz de me libertar de todo aquele inferno e culpa.
Culpa por eu ter sido um idiota e não ter lido as entrelinhas. Culpa por não ter lhe dado uma oportunidade logo no primeiro ano de estagiária. Culpa por ter transformado a sua vida em um verdadeiro desastre, quando me deixei levar pelo orgulho e pelas suas provocações. Culpa por tê-la amado demais e mesmo assim não ter sido capaz de adivinhá-la. E vê-la encolhida dentro daquele redemoinho de repórteres e jornalistas só aumentou ainda mais a minha dor. Eu precisava tirá-la dali. Eu precisava arrastá-la para qualquer outro lugar que fosse seguro e implorar pelo seu perdão. E foi no meio de todo aquele tumulto que consegui me aproximar, em vão.
Ergui as mãos em sua direção, quando levei, sem entender, um golpe contra o meu rosto.
— Céus! — gritei em meio a multidão.
Eram apenas oito horas da noite e eu já tinha perdido 90% do meu nariz. Perdi a dignidade também, ao descobrir que a garota — um monstro de apenas 1.60 metros de altura — poderia facilmente participar de um campeonato de luta livre depois de quase ter me derrubado no chão.
Observei seu olhar confuso se arrastando pela multidão enquanto seu corpo era jogado cada vez mais distante do meu. Uma pequena distância que aos poucos se tornou tão gigantesca, que mal consegui enxergá-la. De volta à estaca zero, e sendo brutalmente atacado pelas perguntas dos repórteres que ficaram para trás, refiz o caminho inverso e encarei Carmem e Amanda atracadas no chão. Talvez eu não fosse um editor-chefe tão bom assim, afinal.
As provas eram claras: refletidas na conta bancária da editora e jogadas contra o chão, uma cena que estava sendo transmitida para o Brasil inteiro ver. Eu mal conseguia dar conta de uma equipe e como se não bastasse, Nelson, o famigerado dono ganancioso, ainda me comeria vivo assim que descobrisse. Eu já podia escutá-lo irromper sua voz grossa contra os meus ouvidos “você deveria ter previsto isso“, enquanto fuma incontáveis maços de cigarro. Uma discussão que me faria facilmente perder a cabeça e pedir demissão.
Fiquei com olhos grudados naquele cenário grotesco, os ombros caídos e a ressaca moral sob minha mente quando vi Carmem — ainda vestida com aquela fantasia horrível — se levantar com dificuldade e alisar o tecido verde com a palma das mãos, tentando amenizar todo aquele estrago. A cauda estava rasgada e seus cabelos vermelhos, antes escondidos abaixo da cabeça do jacaré, se embolaram acima dos ombros. Um dos olhos fictícios acabou sendo arrancado e agora estava no chão. Nada seria capaz de impedir a explosão de notícias no dia seguinte.
Estávamos ferrados. Na lama. Acabados. Em todos os idiomas possíveis.
Olhei para o lado oposto, procurando por Isabela quando vi a multidão de fotógrafos migrando para longe, tão ansiosos por ela quanto eu. E mais a frente, longe de todo aquele tumulto, os olhos assustados que em poucos segundos roubaram a minha atenção.
Achei você.
Me joguei contra os convidados e corri em sua direção, embora seu corpo, em constante movimento, estivesse muito longe do meu. Senti a adrenalina invadir os meus sentidos quando a vi colidir com um grupo de jovens parados na entrada da sala e deixar metade dos seus pertences caírem no chão. Mas sua liberdade estava tão próxima que ela mal se deu o trabalho de voltar para buscá-los. Acabou. Isabela desapareceu do meu campo de visão e partiu para longe de tudo que a ligava a mim. E naquele momento, a sensação estranha socando o meu estômago me dava a certeza de que aquela era a última vez que eu iria vê-la.
Me aproximei da porta sentindo a brisa fria contra o meu rosto. Uma leve dormência tomou conta das minhas mãos e me peguei pensando se algum dia ela seria capaz de me perdoar. A garota que destruiu meu carro, meus sentidos e agora meu coração. E não havia lugar no mundo onde eu pudesse me esconder da dor de tê-la perdido.
Observei os repórteres se dispersando. Lá fora, tudo normal. Estandes lotados, leitores animados e as editoras satisfeitas pelos resultados dos nove dias de evento. A música ambiente ecoava pelo ambiente e se misturava aos ruídos, poucas horas antes do término. Tudo tão tranquilo, mas tão desastroso aqui dentro, como se eu estivesse vivendo em um universo paralelo, um pesadelo do qual não conseguia acordar. Suspirei profundamente antes de decidir voltar para o caos. Esperava ao menos encontrar todos vivos, em perfeitas condições — pelo menos minha equipe — e foi nesse momento que vi algo fluorescente, caído no chão, chamar a minha atenção.
Só pode ser brincadeira.
Sorri.
Isabela não deixou somente o meu coração partido para trás. Não. Ela deixou muito mais do que isso quando decidiu ir embora. E seria uma crueldade do destino se ela tivesse esquecido naquele lugar qualquer coisa que não fosse aquele maldito sapato de salto rosa, o mesmo que havia me pertubado durante tantos anos.
Companheiro de todas as nossas doses de tequila.
A garota que acabou esquecendo o sapatinho.
Uma pena não ser de cristal.
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— Aquela garota insolente — Nelson engoliu de uma só vez o seu brioche e me encarou por cima dos óculos escuros, pela milésima vez. Permaneci em silêncio, encarando a tela do computador enquanto lia os e-mails promocionais. Na verdade, até mesmo os spams eram mais interessantes do que escutar novamente a sua boca proferindo xingamentos contra a Isabela. Ignorei suas reclamações quando vi uma nova notificação apitar na caixa de entrada. — … ela foi muito esperta, muuito esperta. E se ela acha que vamos nos rastejar atrás dela e implorar pela sua atenção ela está muito, mas muito engan…
— Ela respondeu!
Suas pernas minúsculas dispararam em minha direção, deixando com que alguns farelos de pão caíssem sobre o chão. Em questão de segundos vi suas mãos puxarem a cadeira numa velocidade escandalosa e seu corpo se acomodar no espaço vazio ao meu lado enquanto tentava bisbilhotar a caixa de entrada do email da editora exposto na tela do notebook.
O fato é que após a bienal, Nelson surtou. Seu nome foi parar no horário nobre das emissoras e depois de ter sido associado ao escândalo que envolveu a equipe, resolveu cortar qualquer tipo de relação com Isabela e quebrar o contrato de autor.
“Foi tudo culpa sua”, disse ele, depois de gritar ao telefone repetidas vezes que não queria vê-la nem pintada de ouro.
Acabou que no fim, cinco dias depois, o discurso dela durante o evento viralizou, provocando um surto coletivo no país e no Nelson também. Isabela se tornou um fenômeno. A história de vida da Cinderela vendeu tanto que o resultado foram leitores fanáticos implorando pela a sua admissão na porta da editora. Emails pedindo o retorno do livro e Nelson perdendo os poucos cabelos que tinha. Agora ele estava ali, mordendo a própria língua embora demonstrasse tranquilidade e autocontrole, esperando que ela aceitasse o pedido de desculpas e retornasse para a equipe da Contágio, dessa vez como autora.
— E então? O que foi que ela disse?
Esfreguei os olhos, como se tal ato pudesse aliviar o cansaço e apoiei o rosto na mão, iniciando a leitura. Nelson se esticou até a mesa, ficando a poucos centímetros de distância do meu corpo.
— Ela ficou muito contente com a sua retratação e disse que é uma honra receber o convite de se juntar à nossa equipe…hmm — estreitei os olhos para o email e comecei a ler as palavras na íntegra. — Esperei por esse reconhecimento há bastante tempo e fiquei impressionada ao receber diretamente o seu pedido de desculpas. Sinto muito por tê-lo decepcionado e por termos rompido o contrato…
— Hehehe, essa tá no papo! — interrompeu, recostando-se no encosto da cadeira, vitorioso. Ignorei sua risada irritante e voltei a atenção para o email.
— Espero que possamos encerrar este desentendimento por aqui. No mais, agradeço a preocupação, mas você pode enfiar a sua proposta medíocre no… — sorri debochado, para a expressão indevidamente colocada ali. Pela visão periférica vi Nelson arregalando os olhos em minha direção segundos antes de se jogar sob a tela, só para se certificar do conteúdo que eu havia acabado de ler. Ele contraiu a mandíbula e torceu a boca, pálido — Ela recusou — falei por fim.
— Droga, essa infeliz quer me torturar! DROGA!
Com os pulsos cerrados, Nelson se levantou e cravou uma linha imaginária no chão, com os próprios pés enquanto andava de um lado para o outro. Não havia nada que o irritava mais do que ser contrariado. E Isabela estava sabendo fazer isso muito bem.
Encarei o e-mail todo formalizado e aquela palavra em Capslock — uma palavra indecente que só existia no seu vocabulário. Sorri para a tela do notebook e imaginei se o xingamento também se estenderia a mim. Ainda não tínhamos nos falado. E não havia um dia sequer que eu não pensasse nela. Seu nome havia se tornado um fantasma em minha mente, assombrando os meus sentimentos nos momentos mais inoportunos. Nem mesmo o trabalho estava sendo capaz de me fazer esquecê-la. Tudo me lembrava ela. Ayla mal tocava em seu nome e depois de ter voltado para a editora e feito as pazes com o Armane, imaginei que eu teria alguma notícia sua. Mas não. E foi num ato de coragem, com apenas uma dose de tequila que decidi fazer alguma coisa. Pelo menos agora, o que me parecia ser o certo a se fazer.
OLÁ BBSSS, COMO ESTÃO? Estamos no penúltimo cap agora e espero que estejam gostando do rumo que as coisas estão tomando. Para críticas, elogios e dicas, é só me mandar uma mensagem que terei o maior prazer para respondê-los. Essa é a primeira história que eu escrevo "pra valer" e espero que esteja ficando legal hahahahah. Um beijão e até a próxima 😘
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