Dose número 28
Quatro horas depois, Ayla apareceu do outro lado da tela do notebook, enfiada no prédio do namorado, com uma gosma branca cobrindo todo o rosto. Suas mãos apalparam o líquido antes de xingar baixinho, com os olhos voltados para o espelho.
— Droga, não tá dando certo.
— Que merda é essa Ayla?
—É leite. Leite com maizena e clara de ovo, vi num site de fofoca que ajuda a controlar as linhas de expressão — Ela fitou a câmera do seu computador e me encarou pela primeira vez, parecendo uma múmia desenterrada. — UAU, se eu não gostasse tanto do Armane eu casava com você! Você está espetacular!
Meus cabelos estavam soltos, divididos em múltiplas ondas e eu estava com uma maquiagem leve, embora o batom vermelho destacasse em minha boca. O vestido não era novo mas tinha os seus encantos e marcava boa parte do meu corpo. Embora dona Lúcia tivesse preferência pelas roupas decotadas, eu sabia que ela estaria orgulhosa de mim, depois de me ver anos longe dos holofotes enquanto me escondia atrás das T-shirts e da famigerada calça jeans.
Ayla puxou a gosma do seu rosto, desconectando um fio bem longo do restante da máscara.
— Como você se sente?
— Me sinto como um boi, um boi indo pro abate — Minha voz tremeu.
Eu estava mais nervosa do que quando fiz minha primeira entrevista de emprego, aos 15 anos, numa confeitaria do meu bairro.
— Ah é — gargalhou. — Com certeza pro abate.
Estreitei meus olhos e ela rapidamente deu um jeito em sua risada histérica.
Alguns minutos depois, lá estava eu, me arrastando pelo corredor do prédio do meu chefe. Confesso que apesar do medo, não pude conter meu sorriso quando o vi abrir a porta com um avental nos ombros. Seus cabelos estavam bagunçados, os olhos mais claros do que o normal e o perfume amadeirado me embriagou no mesmo tempo que o cheiro que vinha da cozinha. As mangas da sua camisa estavam cuidadosamente dobradas até os cotovelos e aquelas covinhas destruidoras de coração apareceram em seu rosto assim que ele sorriu. Ergui meus olhos para os dele quando vi o desejo e a entrega escancarada em sua íris.
— Você está linda.
— Obrigada — respondi, entrando no apartamento.
Que por sinal, era infinitamente mais agradável e amplo do que o nosso. Mas de fato, não foi a decoração que me chamou atenção. Observei atentamente cada uma das velas distribuídas sob os móveis, as únicas responsáveis por cortar a escuridão. Marcos era um romântico, afinal, e confesso que tal descoberta me deixou surpresa, depois de anos convivendo com o seu lado badboy narcisista.
— Tá tentando me impressionar?— apontei para o avental e ele sorriu enquanto fechava a porta.
— Talvez mais tarde.
Tá aí, uma frase ambígua que meu cérebro acabou não processando muito bem.
Tinhoso do jeito que era, Marcos se afastou com aquele sorriso despretensioso no rosto, me deixando à mercê dos meus pensamentos conflituosos. Talvez ele estivesse falando da sobremesa, ou talvez a sobremesa fosse eu! Arregalei os olhos, assustada e irritada por estar pensando na sua tentativa barata em me seduzir quando meu chefe resolveu me tirar à força dos meus devaneios.
— Quer uma taça?— perguntou ele, atraindo minha atenção para o vinho jogado sob a ilha da cozinha.
A grosso modo, em termos estéticos, a bebida parecia ser uma daquelas extravagantemente caras, provavelmente originada de algum cantão da Itália e conservada por 1200 anos, na adega de um porão de um colecionador fanático.
— Quero, quero sim.
Observei-o rasgar o lacre com uma faca e em seguida rosquear a rolha com facilidade. Marcos retornou sua atenção para mim quando o aroma da bebida se espalhou, e empurrou a taça em minha direção, depois de despejar uma quantidade ínfima de bebida.
— Obrigada— respondi, ignorando o seu olhar predatório. — E então, qual é o menu de hoje chefe?
Me joguei sob a bancada tentando espiar o culpado de instigar o meu olfato, me sentindo um pouco mais relaxada e aberta às possibilidades.
— É uma receita de família, espero que não seja alérgica a camarão.
— Droga! Eu sou — arregalei os olhos, assustados, quando ele ergueu a cabeça em minha direção, com uma expressão genuinamente ansiosa, de dar pena. Não consegui conter o meu sorriso, segundos depois de vê-lo se embaralhar atrás do balcão — Te peguei.
— Isso não se faz, me lembre de colocar esse episódio na sua carta de recomendação.
— Tá pensando em me demitir, Sr. Piccinconini?
Suas mãos ágeis cortavam os legumes com agilidade enquanto dividia a atenção entre mim e as panelas.
— Não, só se não gostar da minha comida.
— Eu posso fingir— Ele me encarou, os olhos febris travados nos meus, trazendo à tona aquela mesma sensação de sempre. Um calor desconhecido percorreu pelo meu corpo e arrepiou a minha espinha quando ele resolveu jogar um balde de água fria nas minhas preocupações.
— Eu sei. Mas por enquanto não tenho problemas com relação a isso.
Será que não?
Poucos minutos depois, ele terminou com a sessão tortura e eu pude finalmente colocar à prova os seus dotes culinários. O sabor incrível invadiu meu paladar e aquela sem dúvida se tornou a combinação de temperos mais absurda e deliciosa que eu já tinha provado.
Que inferno! A cada tentativa de não gostar daquele pedaço de mal caminho, mais eu tropeçava e mais eu caía...bem nos braços dele.
— Céus, isso é maravilhoso, onde foi que você aprendeu a cozinhar assim?
Um sorriso satisfeito brincou em seus lábios enquanto analisava as minhas reações.
— Quando eu era criança, eu costumava cozinhar lá em casa. Roberto sempre estava fora por causa do trabalho e as meninas passavam o dia todo na rua. Então quando chegavam os feriados, essa era uma forma que eu tinha de conseguir reunir o pessoal e me sentir o mais próximo do que eu conhecia como definição de família.
— Eu sinto muito.
— Não, tudo bem — respondeu, sem emoção, embora um mix de angústia e gratidão tenha surgido seu semblante. — Antes de entrar na faculdade, gastronomia era a minha primeira opção. Talvez eu ainda faça algum dia.
— Porque desistiu?
Ele se jogou contra o encosto da cadeira e me encarou pensativo, segundos antes de ver os seus lábios se esticarem em um sorriso pretensioso.
— Percebi que eu tinha um dom e que eu me daria bem dando ordens e deixando meus funcionários desesperados.
Revirei os olhos, irritada, embora sua diversão tivesse me contagiado. Me peguei imaginando, por breves segundos, como seria a minha vida se ele tivesse escolhido outros caminhos. Talvez não existisse estágio, nem editora, Cinderela e muito menos um livro a ser publicado. Na verdade, eu nem mesmo estaria ali, naquele momento, sentada de frente pra ele. De alguma forma aquilo me incomodou, a ponto de sentir meu peito se apertar diante da possibilidade de nunca o ter conhecido.
— Que afirmação cretina— sorri.
— Mas como o seu chefe, tenho que te alertar — Seus olhos brilhantes e travessos cruzaram os meus. — Você é uma péssima funcionária. Você é mandona, não respeita as minhas ordens e ainda tentou me envenenar. Isabela, você é o caso mais complicado que já passou naquela editora e o mais intrigante na minha vida. Você me fascina.
Senti cada pelo do meu corpo arrepiar. Uma sensação boa demais pra quem jurou que iria se afastar.
Mulher, se recomponha!
Eu tentei, eu juro. Mas acabei me embaralhando e metendo os pés pelas mãos. De modo oposto aos meus desejos, a mentira cabeluda que eu inventei gritava em minha mente, e me jogava contra a parede: Marcos estava ali, com os sentimentos expostos sob a mesa, aberto a um relacionamento enquanto eu continuava mentindo sobre tudo. Situações que eu sabia que ele nunca seria capaz de me perdoar, se as coisas se tornassem mais sérias entre nós.
— Eu...eu não posso — gaguejei em surto. — Eu não sou quem você pensa e eu não posso, não quero te perder. Pelo menos não dessa forma — abaixei os olhos incapaz de encarar os seus. — Me desculpa, mas eu preciso ir.
Me levantei apressada, sentindo minhas pernas bambas. Andei a passos rápidos em direção à porta e lutei com a maldita chave, travada na maçaneta. Girei-a sob os meus dedos e sacudi a porta, com medo de não ser capaz de resistir aos meus impulsos. Mais alguns minutos naquele lugar, e meu corpo viraria chama, nas mãos de quem eu menos podia e mais desejava. Vi minha mente cair em tentação quando Marcos se aproximou das minhas costas e destravou a chave — destruidora da paz — facilmente. Seu corpo colado ao meu e sua respiração ofegante, tanto quanto a minha, me fizeram desmanchar, e dar fim ao meu sofrimento.
— Não há lugar no mundo onde você possa se esconder do que eu sinto por você — sussurrou contra a minha pele — E por mais que você fuja, eu sei e você também sabe, que distância nenhuma vai ser o suficiente para esquecer.
— Marcos...— praguejei baixinho, quase como uma reclamação.
Suas mãos escorregaram dos meus ombros para os pulsos arrepiando todo o meu braço, quando ele me virou de frente para si. Marcos me prensou delicadamente contra a porta antes de segurar o meu rosto entre as mãos e olhar bem no fundo dos meus olhos, como se pudesse escancarar toda a minha alma.
— Eu não sei o que aconteceu com a gente, e isso me consome toda vez que vejo você fugindo de mim. Mas eu não consigo mais viver com a ideia de não te ter — Ele uniu nossas testas, enquanto acariciava meu rosto com o polegar — Você consegue ser o meu céu e o inferno, e eu desisto de tentar esconder isso. Desisto de tentar controlar o meu coração quando você tá perto, quando tudo o que ele faz é bater mais forte por você. Eu amo você, Isabela — confessou, contra a minha boca. — E nada vai ser capaz de mudar isso.
Ergui meus olhos para os seus, sentindo toda aquela tensão me puxar cada vez mais para ele, quando cedi aos meus impulsos e me deixei levar pelo momento. Nossas bocas se uniram, desesperadas uma pela outra, quando ele afundou os dedos em minha cintura, me trazendo para mais perto. Uma explosão de sensações acometeram o meu corpo. Eu estava totalmente entregue a ele e nada seria capaz de me parar. Nem mesmo os pensamentos indesejados e nem as ameaças de Amanda eram suficientes para conter aquela vontade louca de senti-lo cada vez mais e mais. Eu era dele, sempre fui e sempre serei dele e não tinha lugar nenhum no mundo onde eu gostaria de estar agora que não fosse nos seus braços.
Embolei meus dedos nos seus fios bagunçados no mesmo momento em que Marcos percorria suas mãos pela minha pele, lentamente. Ele puxou os meus cabelos para o lado e deslizou a boca para a base do meu pescoço, distribuindo uma trilha de beijos ao redor, enquanto iniciava, com apenas uma mão, uma luta incansável com o fecho do meu vestido. Eu já não era mais a dona de minhas ações e comecei a perceber o quanto fui tola ao negar tudo aquilo que existia dentro de mim.
Depois de me libertar daquela peça indesejável, Marcos mordiscou meu lábio inferior, irradiando as sensações para outros pontos da minha pele exposta. Retirei sua camisa sem dificuldade e analisei cada músculo que saltava de seu abdômen. Um gemido baixinho escapou da minha boca no momento em que ele me ergueu do chão e me carregou em seu colo até o quarto, uma distância considerável para o tamanho do meu desejo e para o tamanho do incêndio que se espalhava por todo o meu ser.
Meu chefe empurrou a porta com o pé mantendo os olhos fixos e ardentes nos meus e me colocou delicadamente sob a cama macia. Não fui capaz de conter o meu sorriso, ao me sentir pela primeira vez, desejada e analisada de uma forma que ninguém nunca foi capaz de fazê-lo. Havia paixão, ternura e admiração todas as vezes que ele me observava.
Uma onda de desespero me invadiu, quando ele abruptamente interrompeu o beijo, sem a minha permissão.
— Me diga se quiser que eu pare.
Afundei meus dedos em seu corpo, ansiosa para consumir aquela distância que nos separava.
— Eu não quero, nunca.
Marcos enterrou o rosto em meus cabelos e beijou novamente o meu pescoço.
— Eu amo você — repetiu, minutos antes de me tornar só dele.
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